Uma análise descritiva do texto 'fatos e conceitos' de Daniel González Lagier: aplicação prática à prova testemunhal no sistema processual trabalhista pós-reforma

AutorRicardo Georges Affonso Miguel
Páginas162-169

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Ricardo Georges Affonso MigueL

Juiz do Trabalho, titular da 13ª Vara do Rio de Janeiro. Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Mestrando em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Professor de direito desportivo e processo do trabalho da Universidade Cândido Mendes. Membro honorário do IAB. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo e da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo.

Ao tempo em que agradeço o honroso e lisonjeiro convite para participar desta prestigiosa obra, aproveito o ensejo para congratular os organizadores. Outrossim, registro a admiração que nutro pelo homenageado Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, em quem busco inspiração diária na carreira como magistrado, e em quem me inspirei quando, ainda jovem e iniciante advogado, tive o prazer de atuar em audiência presidida pelo então Juiz Titular da Vara do Trabalho de Teresópolis/RJ, cujas qualidades conciliatórias e conhecimentos jurídicos inerentes a um magistrado nato me fascinaram.

1. Introdução

O autor inicia seu texto dizendo o que é provar um fato, vale dizer, admitir a sua ocorrência, o seu acontecimento1.

Se há uma expressão que sintetiza o texto em comento é “inferência probatória”.

Basicamente trata-se de texto dividido em quatro partes. Na primeira o autor relaciona fatos a serem provados e provas e indícios capazes de demonstrar isso, analisando o fundamento, a finalidade e a força probante.

Na segunda parte o autor trata de elementos teóricos e de observação acerca dos fatos e provas. Em seguida, fala dos conceitos classificatórios da inferência probatória, que se traduzem no raciocínio que temos que fazer a fim de concluir pela ocorrência de um fato, a partir do momento em que se pretende provar sua ocorrência.

A quarta parte do texto é a conclusão, porém o autor traz novos conceitos, argumentos e exemplos, mantendo uma discussão viva e dinâmica a respeito da matéria.

Diante de toda análise jurisdicional em qualquer área do direito, principalmente na seara contenciosa, é indispensável a utilização da prova, bem como o que se considera verdade ou não, pois é o que se busca no ato de julgar.

O texto faz refletir acerca da existência de prejulgamentos, conceitos, preconceitos, e “pré-conceitos”. E a partir disso pretendo tecer uma análise exemplificativa e setorizada do comportamento da inferência probatória em determinadas questões afetas à seara trabalhista, no que concerne à prova testemunhal.

2. O texto “fatos e conceitos”: prova, verdade, relatividade

Segundo o autor, a inferência probatória se constitui em um raciocínio jurídico que separa três elementos: o fato a ser provado; a informação já conhecida (que são evidências e indícios); e a relação entre esses dois elementos. Materializada essa dinâmica, em princípio, ter-se-á o fato como provado2.

Entretanto, a análise dessa relação pode ser feita sob três aspectos, quais sejam, fundamento; finalidade e força. Por fundamento entende-se o que é necessário para relacionar fato e prova. A finalidade constitui o objetivo do ato de se provar um fato. Finalmente, acerca da força, tem-se a “credibilidade” da prova para demonstrar a ocorrência ou não de um fato.

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Naturalmente que se trata de um raciocínio que não é estanque, mas de correlação quase automática. Porém, em análise mais pormenorizada para avaliar a força probante, é possível tratar cada elemento isoladamente.

A inferência probatória pode decorrer de regras de experiência, que são situações cotidianas em que se admite que ocorram de tal ou qual modo3, denominadas pelo autor de epistêmica. Ou podem ser apresentadas ao juiz como já provadas. Por exemplo, o que consta no Código de Processo Civil Brasileiro como fatos que não dependem de prova. Já se admitem como tendo ocorrido4, denominada normativa. Nesses casos, portanto, o autor diz que a força probante decorre do caráter normativo do direito. Trata-se, portanto, de presunções.

Existem também as inferências probatórias interpretativas, que são o objeto de estudo do autor no texto em comento. Com efeito, os fatos são objeto de prova, vale frisar, o que se pretende provar são fatos, os quais dependem de quem os está analisando, pois haverá variação de percepção, de interpretação e de ocorrência de tais fatos. O que interfere nisso é a carga conceitual que cada “ator”, ou intérprete, carrega consigo.

Em outras palavras, a verdade de cada um varia de acordo com o conceito levado em consideração. Se se alteram os conceitos, muda-se a prova e, consequentemente, o resultado, isto é, a forma pela qual se vê o fato. Esse é um problema absolutamente recorrente em sede contenciosa trabalhista.

Exemplificativamente, questões relacionadas à prova de subordinação para caracterização de vínculo de emprego, ou cargo de confiança, tangenciam de modo muito próximo questões pré-conceituais de cada testemunha apta a depor. O juiz, nesses casos, deve saber distinguir respostas direcionadas pelas próprias conclusões da testemunha, das respostas de mera ocorrência fática, o que a meu ver é o correto. Deverá o juiz, a meu juízo, inclusive indeferir perguntas cujas respostas sabidamente serão dotadas de forte carga personalíssima e subjetiva. Aliás, a própria CLT contém regra no sentido de repergunta a fim de impossibilitar a formulação do questionamento dire-cionado e a resposta induzida5. Já o art. 459 do CPCB admite a inquirição direta pela parte, mas permite o indeferimento pelo juiz de perguntas capazes de induzir a resposta.

Diz-se que a prova processual é a ponte entre os fatos e o juiz. Portanto, o ideal em sede de produção de prova testemunhal seria esta apenas narrar o fato. Considerações pessoais não devem ser objeto do depoimento. Porém, como bem observa o autor no texto em análise, a formação humana de mundo de cada um influencia diretamente na prova, em razão dos conceitos de cada um. “As verdades que temos dependem dos conceitos que utilizamos”, como lembra o autor.

Conforme já tive a oportunidade de escrever6:

Outra definição para prova “seria o meio lícito para demonstrar a veracidade ou não de determinado fato com a finalidade de convencer o juiz acerca da sua existência ou inexistência”7.

Contudo, em um conceito mais moderno e menos estanque, atualmente se entende como prova não apenas um meio de busca pela verdade, mas sim um meio de convencer o juiz da veracidade das alegações8.

O destinatário da prova, portanto, será sempre o juiz9. E o objeto da prova são os fatos envolvidos na causa10.

Parte da doutrina portuguesa distingue três sentidos para a prova, mas para o objeto do nosso estudo se destacam a prova como meio e como resultado11.

Como meio de prova analisar-se-á a fonte da prova, que pode ser pessoa ou coisa; ou o fator probatório, que é o ato de produção da prova12”.

É justamente a questão que o autor observa no texto que o resultado da prova varia de acordo com os conceitos adotados.

A doutrina brasileira não difere de todo dessa distinção também conceituando a prova nos sentidos objetivo (meio de prova) e subjetivo (certeza decorrente do ato de provar)13.

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Considero isso o maior problema na análise da prova.

Concordo com o autor que variações de conceitos fazem variar o resultado da prova e, por conseguinte, variam a verdade.

Alteram a forma como se vê um fato.

O remédio para esse problema ministrado pelo autor é o estabelecimento de critérios, com conceitos prévios, para aná-lise da prova14. Entendo por ser a diferença de se estabelecer pré-conceitos e não preconceitos!

Esses critérios pré-conceituais, segundo o autor, são subdivididos em classificatórios (divisões em classe, grupo etc.); comparativos (grau qualitativo do objeto); e métricos (grau quantitativo), sendo certo que todos se aplicam à prova.

Com efeito, a meu ver, isso nos remete ao Sistema de Valoração da Prova15.

O juiz não analisa os meios de prova de forma arbitrária, mas segue um sistema de valoração que se divide no direito processual em sistema legal, sistema da íntima (ou livre) convicção e o sistema da persuasão racional (ou livre convencimento motivado)16.

O sistema legal decorre da ideia de uma hierarquia entre os meios de prova. O valor de cada prova está fixado na lei. Para alguns está totalmente superado no direito brasileiro17, mas há quem defenda resquícios do sistema na prova tarifada, ou o depoimento do informante, por exemplo.

Já para a doutrina portuguesa não são idênticos os valores dos meios de prova, referindo-se à prova legal ou tarifada e classificando a prova em pleníssima, plena e bastante, na qual a primeira é a presunção, que não pode ser afastada; a segunda, que é a regra e admite prova em contrário de inocorrência do fato por outros meios; e a terceira, de menor valor, que diante da dúvida não se sustenta18.

Na verdade, entendemos que o direito processual brasileiro não difere tanto disso, pois temos aqui o mero indício, bem como as presunções absoluta e relativa.

Outro sistema de valoração da prova é o da íntima convicção. O juiz é soberano na análise da prova e aquela que melhor lhe convencer é a que formará a sua convicção, inexistindo regra a ser seguida na análise dos meios de prova19. No sistema brasileiro o resquício disso pode ser exemplificado pelo Tribunal do Júri, cuja competência é para julgar crimes dolosos contra a vida.

Finalmente o sistema da persuasão racional, no qual o juiz aprecia livremente as provas, mas constrói sua convicção de forma lógica e motivada de acordo com os elementos existentes no processo.20

No texto o autor propõe apenas a análise dos conceitos classificatórios, dada a necessidade de enquadramento como marco inicial do estudo.

Ocorre que, o estabelecimento de requisitos para a classificação pode ter tratamento interpretativo...

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