A condição jurídica dos 'filhos de criação

AutorLuiz Carlos Goiabeira Rosa/Fernanda da Silva Vieira Rosa
Páginas237-257

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Ver Nota12

1. Introdução

O ser humano é pessoa não apenas porque tem personalidade, mas porque, por ser humano, possui atributos essenciais à vida que devem ser protegidos pelo ordenamento, para que tenha um mínimo de dignidade e, assim, condições de vida em sociedade. No ordenamento jurídico hodierno, a pessoa humana é considerada em razão de seus atributos humanísticos, e não somente em face de sua aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações.

Um desses atributos é a afetividade. Não pode o ser humano ser reduzido a um mero “animal racional” tal qual se observava no positivismo, em que atributos tais quais sentimentos, emoções e sensações, eram simplesmente ignorados. Eis porque o Direito pós-moderno alia a razão à afetividade, em face das lições dadas pela Psicologia no sentido de que ambas, razão e afetividade, são elementos indissociáveis da personalidade humana.

Nesse contexto, nas questões relacionadas à família o afeto possui importância singular, dado que é parte integrante da personalidade humana e atualmente consubstancia-se num valor jurídico e vetor das relações familiares. Notadamente nas relações filiais, em que vem se consolidando o entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da paternidade socioafetiva.

Entretanto, casos há em que aquele a quem se considera filho não possui vínculo jurídico ou biológico algum com nenhum de seus supostos pais, tal qual se dá com os “filhos de criação”, figura tradicional na cultura brasileira que se mantém até os dias atuais. Nesse caso, o tão-só liame afetivo entre o filho de criação e aqueles que o criaram é suficiente ao reconhecimento jurídico da relação paterno-filial?

É nesse mister o objetivo do presente estudo: reconhecer o afeto enquanto elemento configurador do vínculo entre o filho de criação e os que o acolheram e lhe criaram, bem como elemento suficiente ao respectivo reconhecimento jurídico de tal relação. Por meio dos métodos histórico, argumentativo e dedutivo, traçar-se-á breve panorama histórico acerca da família; discutir-se-á sobre os elementos configuradores do vínculo familiar; e ao final, discorrer-se-á sobre a condição jurídica do filho de criação, enquadrando-o como detentor de tantos direitos e obrigações quanto os filhos naturais ou os adotivos.

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2. Notas preliminares sobre a família

Os ensinamentos aristotélicos vaticinam a natureza social do ser humano: o homem é um animal político por natureza, que deve viver em sociedade (ARISTÓTELES, 2001, p. 4). Nesse contexto, a índole e o comportamento subjetivos individuais influenciam a vida dos outros membros da comunidade, tornando-se, assim, essencial à organização para se estabelecer e se manter a ordem, tornando-se estas mais complexas à medida que assim se torna a sociedade.

A esse respeito, observa-se que o pertencimento a um grupo é uma necessidade biológica do ser humano, dado que o instinto gregário é intrínseco aos mamíferos (PEARCE, 2009, p. 185). É nesse sentido o entendimento de Mello Neto (2000, p. 147): “[...] o “rebanho”, como um resultado evolutivo, em um sentido darwinista, seria o único meio pelo qual o espírito humano poderia funcionar de forma suficiente. É aí, na vida social, que o indivíduo encontra as suas próprias opiniões, suas crenças, seus julgamentos, seu poder e, indiretamente, a sua própria consciência”.

Nesse contexto, surge a família enquanto célula mater da sociedade, o primeiro e fundamental núcleo social a que pertence o indivíduo. Conforme o escólio de Engels (1984), no decorrer da evolução da humanidade até a modernidade, o modelo familiar estruturou-se em quatro formas: nos primórdios, consubstanciava-se no grupo elementar de seres humanos em que seus membros inicialmente possuíam laços biológicos (família consanguínea), unidos para o fim de autopreservação e reprodução da espécie, a ponto de serem permitidas relações sexuais entre parentes de forma livre; com o evoluir da Humanidade, a família passou a ser considerada além do mero viés biológico, adquirindo assim feições mais sociológicas e religiosas, vindo a se excluírem as relações incestuosas embora se mantivesse o sexo com outros membros da sociedade (família punaluana); na estruturação das sociedades, à mulher proibiu-se a poligamia permitindo-se tal prática no entanto ao homem (família pré-monogâmica); e por fim, com o advento das civilizações e a institucionalização do casamento, adotou-se a monogamia enquanto vetor da constituição familiar, surgindo assim a família monogâmica, restrita ao casal unido pelo matrimônio e caracterizada pela intensa influência religiosa e pelo patriarcado.

Bem assim, se inicialmente consubstanciava-se em fator de agregação da família, o afeto deixou de sê-lo. Nesse sentido, bem aduz Fustel de Coulanges (2006,

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p. 30) ao comentar sobre a família na Antiguidade: “O princípio da família não é mais o afeto natural, porque o direito grego e o direito romano não dão importância alguma a esse sentimento. Ele pode existir no fundo dos corações, mas nada representa em direito”.

Outrossim, a institucionalização do casamento pela Igreja Católica na Idade Média deu nova fundamentação à família: esta passava a ser formada não em razão do afeto, mas sim do matrimônio sagrado e indissolúvel e com vistas à continuidade da linhagem e da preservação do patrimônio no seio familiar.

Conforme o cânon 1.055 §1º do Código de Direito Canônico (CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, 1983, p. 185): “A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade do sacramento”.

O casamento era a união com vistas à procriação e educação dos filhos, sendo por isso indissolúvel exceto pela morte, conforme o cânon 1.056 (CONFERÊNCIA..., 1983, p. 187). Bem assim, a família só seria constituída e formada a partir do matrimônio, sendo tal, portanto, obrigatório. Posto de outra forma: de acordo com Fustel de Coulanges (2006, p. 37), casava-se não para se ter prazer ou para se ser feliz, mas sim para procriar e reproduzir, gerando-se assim herdeiros que continuassem as tradições familiares.

Denota-se, portanto, que a religião relegou o afeto a segundo plano e sacramentou a família, tornando-a uma união divina e abençoada pelos céus, e submetida ao poder paternal – o homem enquanto chefe de família. Conforme Dias (2015, p. 56), a ideologia patriarcal somente reconhecia a família matrimonializada, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual, atendendo à moral conservadora da época e asfixiando desta forma o afeto.

Gomes (2002, p. 40) elucida, a propósito:

A Igreja sempre se preocupou com a organização da família, disciplinando-a por sucessivas regras no curso dos dois mil anos de sua existência, que por largo período histórico vigoraram, entre os povos cristãos, como seu exclusivo estatuto matrimonial. Considerável, em conseqüência, é a influência do direito canônico na estruturação jurídica do grupo familiar.

Contudo, a partir do século XVIII e por ocasião da Revolução Industrial, iniciou-se uma mudança no enquadramento da família. Conforme explicam Bossert e Zannoni (2004, p. 5):

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A família monogâmica torna-se assim um fator econômico de produção. Não só atende às suas necessidades, mas são produzidos pela família bens ou serviços para negociar. É a longa etapa histórica de produção e fabrico na pequena oficina familiar. A família é nesta fase, o organizador dos fatores produtivos. E é também a fase em que o valor econômico mais importante corresponde à propriedade imóvel. Mas esta situação é invertida quando, a partir do século XVIII, as sociedades são transformadas pela ascensão do industrialismo. E a produção, exceto em áreas rurais, desenvolve-se fora do âmbito da família; concentrou-se em indústrias, no campo dos negócios, e são amplificados. Correspondentemente, a propriedade imóvel está dando lugar a valores mobiliários; os valores mobiliários, como ações de empresas, representam ações do capital social das empresas produtivas. É assim, então, que a família, desde a ascensão do industrialismo, perdeu o traço que se caracteriza enquanto uma organização central de produção; em termos econômicos, reduziu-se substancialmente a um nível de organização de consumo. Então, tendo perdido sua importância econômica, sua razão de ser foi confinada principalmente para o âmbito espiritual mais intensamente do que qualquer outra instituição social, desenvolvendo-se os laços de solidariedade, de afeto permanente, e a noção de um propósito comum de benefício mútuo entre indivíduos que a integram. (tradução nossa)

Essa mudança se fez mais presente no século XX, quando os horrores das duas Grandes Guerras e em especial da Segunda Guerra Mundial fizeram com que a humanidade despertasse efetivamente para a necessidade de tutela do ser humano quanto aos seus valores e individualidade: o nazismo e o fascismo, com suas ideologias racistas e xenófobas, permitiram atrocidades a tal ponto de simplesmente se ignorarem atributos como a individualidade, liberdade, consciência e tantos outros, desprezando-se por completo a importância da pessoa humana individualmente considerada no contexto da evolução social.

Por consequência, resgataram-se os ideais kantianos de ser humano enquanto centro do sistema social e normativo, erigindo a pessoa humana ao centro do sistema social e normativo. Houve, então, uma mudança radical nos elementos básicos e estruturantes do sistema: muda-se do patrimônio para a pessoa humana enquanto pedra angular do sistema jurídico; o “ter” dá lugar ao “ser”, provocando assim a proteção do ser humano e secundariamente do...

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