O Princípio da afetividade e seus impactos no Direito das Famílias - e um pouco mais: uma breve incursão na tutela do afeto familiar na área penal

AutorMaurilio Casas Maia
Páginas259-277

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Ver Nota1

1. Introdução

Nos tempos do “amor líquido2e das relações efêmeras, há um valor humano cada vez mais demandado, embora ele pareça, por vezes, escasso, por nem sempre ser praticado: o afeto. No contexto familiar e das relações amorosas, a afetividade vem conquistando novo significado e potência a partir da descoberta jurídica do seu potencial para efetivação dos valores da dignidade humana (Constituição
– CRFB/88, art. 1º, III) e da tutela familiar (art. 226).

O afeto, sempre que possível, deve ser abordado por uma abordagem multi ou transdisciplinar – explica-se: o afeto é “um fato social e psicológico, além de categoria filosófica, sociológica e psicológica”3. Embora reconhecendo a referida necessidade teórica, em razão das limitações e objetivos do presente trabalho, cuidar-se-á somente dos aspectos estritamente jurídicos da temática.

Com efeito, a afetividade vem servindo no cenário jurídico com múltiplos impactos, principalmente no Direito das Famílias, embora não somente neste, conforme será visto ao fim. A centralidade do presente texto, porém, é voltada ao Direito das Famílias por uma razão clara e simples: “(...) a família é o locus de realização da afetividade, pois nela que se realizam as experiências afetivas que vão moldar a personalidade e determinar a qualidade das relações a serem desenvolvidas pelos indivíduos na vida social e política”4.

No contexto supranarrado, o presente texto buscará expor a serventia da afetividade no cenário jurídico brasileiro a partir de dois enfoques: doutrinário e jurisprudencial, sendo este último a partir do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Obviamente, o presente texto não esgotará a temática proposta. Porém, pretende-se que este singelo artigo possa servir de base para futuras, novas e aprofundadas discussões sobre a relação entre Direito e Afetividade.

2. A afetividade no direito de família brasileiro: brevíssima apresentação

Etimologicamente, afeto deriva do latim em termos com significações conectadas a tocar, unir, fixar e ligar – de modo que a relação entre parentesco e afeto surge

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naturalmente nas relações familiares. Nesse sentido, ditou Christiano Cassetari5:

“Ao conceituar a afetividade, é nítido que tal conceito liga-se à ideia de parentesco”.

Portanto, inevitavelmente o primeiro impacto da noção de afeto no Direito, incide sobre o Direito de Família – área na qual a teoria jurídica tem sido mais generosa nos estudos da referida matéria.

A teoria jurídica brasileira tem tratado o afeto enquanto princípio jurídico, de modo a extrair força normativa para as relações sociais. Nesse sentido, leciona Carlos José Cordeiro6: “Portanto, a afetividade, como elemento basilar da formação e estruturação familiar, merece receber o reconhecimento de seu valor jurídico – verdadeiro princípio jurídico aplicado no âmbito do Direito das Famílias”.

Em harmonia com o entendimento supraexposto, ponderou Ricardo Lucas Calderón7: “A afetividade é um dos princípios do direito de família brasileiro, implícito na Constituição, explícito e implícito no Código Civil e nas diversas outras regras do ordenamento”.

Na mesma linha de raciocínio, exclama Rodrigo da Cunha Pereira8: “O afeto tornou-se um valor jurídico, e na esteira da evolução do pensamento jurídico ganhou o status de princípio jurídico. Ou seja, se falta o afeto, é uma desordem ou uma desestrutura. (...) A afetividade é um princípio constitucional da categoria dos princípios não expressos. (...) O princípio da afetividade se traduz também em regras, a exemplo do CCB”.

Segundo Calderón9, o princípio da afetividade é marcado por uma dupla face, por ser dever jurídico e ainda fonte geradora do vínculo familiar, além de possuir dimensão objetiva – concernente à existência de condutas aparentemente decorrentes do afeto –, e a dimensão subjetiva – referente ao elemento anímico do sujeito.

Retornando à lição de Rodrigo da Cunha Pereira10, o princípio da afetividade foi a grande base para a construção da “teoria da parentalidade socioafetiva”. Nesse quadrante, faz-se relevante afirmar que a abertura final da redação – na expressão

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ou outra origem” –, do art. 1.593 do Código Civil de 2002 (CC/2002) em muito auxiliou no reconhecimento das relações de parentesco decorrentes do afeto: “Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.

Fala-se então nos “filhos do afeto”11, “parentalidade afetiva” e em “famílias socioafetivas”, demonstrando com isso que “o conceito de família se destrelou do conceito de casamento (...). O novo paradigma está diretamente relacionado à afetividade, que se constitui em um dos elementos centrais identificadores do que se compreende por entidade familiar”12.

Nesse contexto, o parentesco com base no lastro afetivo, por exemplo, foi reconhecido expressamente via enunciado n. 256 da III Jornada de Direito Civil do CJF, o qual dispõe: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem”. E o STJ, por sua vez, reconheceu também o parentesco decorrente da afetividade – vide, em especial, os julgamentos exarados no REsp
1.217.415-RS e no REsp 1.500.999-RJ.

Com efeito, não se olvide a afetividade enquanto instrumento de possível (e polêmica) abertura do Direito das Famílias às “sociedades do afeto13, cujas espécies seriam a união poliafetiva e poliamorosas, caracterizadas pela multiplicidade de parceiros aparentemente afrontosa ao princípio monogâmico.

Tamanha a importância do afeto para o Direito de Família atual que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) editou diversos enunciados tangenciando a questão, tais como os direitos e deveres da autoridade parental na filiação socioafetiva14e os impactos do abandono afetivo na responsabilidade civil15, inclusive quanto aos idosos16.

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O afeto e o Direito de Família, em toda sua complexidade social, demandam perspectiva multisdisciplinar, inclusive a partir da “Análise Econômica do Direito”17(AED). Dóris Guilardi18, em obra merecedora de estudo, ressalta: “(...) a duplicidade do discurso afeto e economia no direito de família é de difícil contestação, restando mais do que comprovado que a economia exerce influência nos mais diversos setores, moldando a atuação dos indivíduos”.

Enfim, realizadas as ponderações iniciais, voltam-se os olhos à percepção da afetividade e seus impactos jurídicos no Direito de Família no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

2. 1 A afetividade no Supremo Tribunal Federal (STF)

O Supremo Tribunal Federal (STF) vem apresentando referência ao afeto em seus decisórios, inclusive em zonas de intersecção entre o Direito Previdenciário, de Família e da Criança.

No contexto supradescrito, o STF debateu a possibilidade de equiparação entre o prazo da licença-adotante e da licença-gestante (RExt 77888919), ocasião

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na qual foi determinada a equiparação dentre os referidos prazos em razão, dentre outros motivos, a fim de viabilizar os esforços familiares adicionais para a “criação de laços de afeto” – de modo a se perceber, já em ementa, a importância conferida à afetividade pelo STF.

Por outro lado, foi na questão do pluralismo familiar visualizado nas relações homoafetivas20-21. Na referida modalidade de relação afetiva, o STF visualizou

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de maneira incisiva a força normativa da21afetividade, apresentando-a inclusive

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enquanto instrumento da busca da felicidade22. Na ementa da referida decisão, o STF registrou o “reconhecimento do afeto como valor jurídico impregnado de natureza constitucional: um novo paradigma que informa e inspira a formulação do próprio conceito de família”. Além de ser visualizado enquanto “valor jurídico” de estatura constitucional, o STF registrou no multicitado decisório, a necessidade de “valorização desse novo paradigma como núcleo conformador do conceito de família” – ou seja, a afetividade passa a ser um dos eixos para apuração e depuração do conceito de família.

Ainda no cenário do STF, o afeto – ou melhor, a paternidade socioafetiva –, não foi visualizada enquanto óbice ao reconhecimento da paternidade biológica, nos termos de tese fixada no RExt n. 898.060-SC: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”23(setembro de 2016). Desse modo, é possível afirmar que a paternidade lastreada na socioafetividade não pode(ria) ser invocada para impedir o reconhecimento da paternidade biológica e seus respectivos efeitos jurídicos, sendo possível a existência de vínculo de filiação concomitante.

Para Christiano Cassetari24“ficou reconhecida pelo STF a existência da multiparentalidade ao admitir a concomitância de vínculo de filiação, biológico e

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afetivo”, razão pela qual esse entendimento deveria “ser adotado em todo país, sem rediscussão do caso já pacificado pelo STF” – e complementa: “Acreditamos, até, que com esse reconhecimento é possível a admissão da multiparentalidade diretamente no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, sem a necessidade de ação judicial e advogado, bastando ter a concordância do filho reconhecido, se maior, ou, se menor, da mãe ou de quem conste no registro”.

Por fim, um registro: o STF visualiza na análise da existência e comprovação da afetividade nas relações, uma questão eminentemente fática. Desse modo, a Primeira Turma do STF entendeu por negar seguimento a Recurso Extraordinário versando sobre o revolvimento da temática citada (AI n. 84631525).

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