Gestação de substituição: uma análise a partir do direito contratual

AutorTaisa Maria Macena de Lima/Maria de Fátima Freire de Sá
Páginas461-479

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Ver Nota1

1. A evolução das normas deontológicas sobre gestação de substituição no Brasil

No Brasil, tornou-se muito conhecida a expressão “barriga de aluguel” para designar a possibilidade médica de uma mulher ser mãe em decorrência da gestação de outra mulher. Esta realidade já expõe duas questões jurídicas relevantes.

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A primeira é a quebra de paradigma milenar das relações materno-filiais segundo o qual a maternidade é sempre certa; a segunda questão diz respeito à possibilidade de uma mulher, mediante pagamento, gestar filhos de outras pessoas.

Diante da novidade da prática, foi necessário reinterpretar as normas jurídicas sobre o estabelecimento da filiação para viabilizar a utilização dessas técnicas de reprodução assistida, independentemente de alteração legislativa. Com efeito, pode-se afirmar que o Brasil se alinha entre os países que considera lícita a gestação de substituição, a despeito de inexistir norma legal sobre o tema. Toda regulamentação está contida em normas deontológicas do Conselho Federal de Medicina.

Em 1992, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução n. 1.358 que, durante dezoito anos, disciplinou a prática da “doação temporária de útero”, expressão utilizada para referir-se à gestação de substituição. É interessante notar que a utilização da palavra doação (contrato gratuito nos moldes do Direito Civil) revela que o próprio Conselho Federal de Medicina proibiu o ajuste de pagamento pela gestação entre a gestante e os futuros pais da criança. Além disso, ao permitir que clínicas, centros ou serviços de reprodução humana realizassem a técnica, limitou-a aos casos em que houvesse problema médico a impedir ou contraindicar a gravidez da doadora genética e, ainda, exigiu que a gestante tivesse parentesco até segundo grau com a doadora genética. Na realidade, a doadora genética seria a futura mãe da criança e a gestante somente poderia ser mãe, filha ou irmã da mãe genética e jurídica. Abriu-se, no entanto, a possibilidade de os Conselhos Regionais de Medicina avaliarem outros pedidos de utilização da técnica em gestante que não atendia o requisito do parentesco com a mãe genética até segundo grau.

A Resolução n. 1.358 foi substituída pela Resolução CFM n. 1.957/2010 que, no entanto, quanto à gestação de substituição, manteve as mesmas regras. Somente em 2013, com a publicação da Resolução n. 2013, é que foram introduzidas alterações significativas na disciplina deontológica da gestação de subs-tituição, sobretudo, em decorrência da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar (ADI 4.277 e ADPF 132).

Dentre essas modificações destaca-se: a) a extensão do uso da técnica pelos parceiros homoafetivos; b) a possibilidade de a gestante pertencer à família de qualquer um dos pais jurídicos, e a ampliação do parentesco consanguíneo do

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segundo para o quarto grau civil; c) a limitação da idade da gestante a cinquenta anos.

Das regras introduzidas pela Resolução CFM n.2013/2013, a fixação da idade máxima da gestante a cinquenta anos foi a que suscitou grande controvérsia, porquanto “a limitação de direitos das pacientes não pode ocorrer por intermédio de uma normativa de órgão autárquico, que tem abrangência tão somente de regulação interna”2. A imposição da idade feita pelo Conselho Federal de Medicina não passou pelo crivo da juridicidade, como se percebe da decisão do TRF da 1ª Região3 que, baseando-se na Recomendação do Enunciado 41 da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, decidiu que a limitação de idade afronta a liberdade de planejamento familiar assegurada constitucionalmente.

Em 24 de setembro de 2015, foi editada a Resolução CFM n. 2121 que, se não afastou o limite etário para as candidatas para a gestação de reprodução humana assistida, abriu espaço para, caso a caso, verificar a possibilidade de aplicação da técnica a mulheres com mais de cinquenta anos: “As exceções ao limite de 50 anos para participação do procedimento serão determinadas, com fundamentos técnicos e científicos, pelo médico responsável e após esclarecimento quanto aos riscos envolvidos.” (n.3, Item I, Princípios Gerais).

Em que pese toda a controvérsia acerca da legitimidade de um Conselho profissional desenhar o regime jurídico da gestação de substituição em um país, não há dúvida de que, em face da ausência de norma legal, as prescrições deontológicas vêm desempenhando papel relevante na efetivação do direito ao livre plane-jamento familiar. Todavia, não há como deixar de enfrentar os problemas decorrentes da inoponibilidade de tais normas a todos, porquanto sua eficácia deveria limitar-se aos profissionais da Medicina. Assim, os Cartórios não estão sujeitos a respeitar tais resoluções, o que vinha gerando conflitos no momento de registro da criança, por exemplo, a recusa de fazer constar, como mãe, a mulher que não chegou a engravidar porque fez uso da técnica de gestação de substituição.

Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento
n. 52/2016 com a finalidade de uniformizar, nacionalmente, a emissão de certidão

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de todas as pessoas nascidas pelo uso das técnicas de RA, uma vez que era necessário disciplinar o registro de crianças nascidas de pares homoafetivos. Nos moldes do Regimento do Conselho Nacional de Justiça, compete ao Corregedor “expedir Recomendações, Provimentos, Instruções, Orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares e dos serviços notariais e de registro” (art. 8°, X). Sobressai a cogência dos atos normativos do CNJ perante os serviços auxiliares ao Poder Judiciário, o que inclui os Cartórios de Registro Civil. Essa Resolução, embora tente trazer soluções, não pacifica a questão trazendo outros problemas, o que não será objeto de análise neste texto.

2. O contrato e os direitos da personalidade

Tradicionalmente, a noção de contrato estava ligada à celebração de negócio jurídico bilateral, por meio do qual as partes regulavam os efeitos patrimoniais que visavam a atingir. Noutras palavras, a ideia de regulação de interesse patrimonial permeou a conceituação desta categoria jurídica.

Autores contemporâneos que escrevem à luz do Código Civil de 2002 adotam essa definição de cunho patrimonialista, a exemplo de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: “Contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo a auto-nomia de suas próprias vontades.”4

Caio Mário da Silva Pereira, autor clássico de Direito Civil, no entanto, conceitua o contrato de forma mais ampla: “Contrato é um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos.”5Essa formulação é suficientemente ampla para abrigar questões de natureza patrimonial e não patrimonial.

A extensão do conceito de contrato à autorregulamentação de interesses de natureza não patrimonial se, de um lado, encontra resistência pelos mais

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apegados à tradição, por outro lado, propõe a quebra de um paradigma e a evolução do conceito, que se justifica quando se constata quão intimamente ligados podem estar os interesses patrimoniais com os interesses não patrimoniais, também chamados existenciais.

Os contratos de direito da personalidade exemplificam essa nova realidade. Por eles podem ser prefixadas as consequências econômicas do exercício de direitos da personalidade, tais como direitos do autor, direito à imagem, direito a voz, entre outros. Também podem ser assegurados direitos e fixados deveres de conteúdo não patrimonial.

Quando se enfrenta a questão do útero de substituição à luz do direito contratual, o que se visualiza é um contrato de direito da personalidade, cujo conteúdo é o exercício do direito sobre o próprio corpo da gestante substituta.

Analisando a questão sob o ponto de vista da nova principiologia contratual, o contrato de útero de substituição deverá nortear-se por quatro princípios civilísticos, a saber: autonomia privada, boa-fé objetiva, função social e justiça contratual. Estes princípios serão fundamentais na tarefa de delinear os direitos e os deveres dos partícipes do contrato.

A autonomia privada é decorrência da transformação da clássica autonomia da vontade e uma superação da visão voluntarista do Direito. Hoje, não mais se defende que é a vontade a força motriz do surgimento de situações subjetivas, mas que os sujeitos jurídicos, dentro de um espaço de liberdade, podem compor as suas relações de vida.

A boa-fé, durante muito tempo, alicerçou-se em conceito negativo, o que levava à afirmação de que se agia com boa-fé quando não existia má-fé, ou seja, intenção deliberada de prejudicar, de ludibriar, de enganar. Contemporaneamente, a boa-fé ultrapassa a conceituação subjetiva para centrar-se mais no comportamento do que na intencionalidade do sujeito jurídico. Desse modo, mesmo não havendo intenção de prejudicar, é possível ferir o princípio da boa-fé objetiva, quando legítimas expectativas, criadas pelo comportamento do outro contratante, são frustradas.

A função social derruba a afirmação clássica de que o contrato somente produz efeitos entre as partes, reconhecendo, de um lado, o impacto eficacial sobre a sociedade e, de outro lado, a influência da sociedade...

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