Inconstitucionalidade do art. 1.790 do código civil: consolidação da união estável como entidade familiar

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas325-337

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Ver Nota12

Doutrina e jurisprudência pátrias são uníssonas em reconhecer que a Constituição Federal de 1988 foi responsável pela adoção, no âmbito do Direito de Família, do princípio do pluralismo das entidades familiares, pois reconhece, ao lado da família conjugal, a união estável (art. 226, §3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, §4º).3Assim, o texto

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constitucional vigente proporcionou importante transformação no conceito de família na ordem jurídica pátria ? transformação esta que já havia se instalado no âmbito social ?, na medida em que deixou de ser um organismo preordenado a fins externos, para se tornar “um núcleo de companheirismo a serviços das próprias pessoas que a constituem”.4De fato, não cabe ao Estado-legislador criar o fenômeno familiar, mas apenas tutelar as famílias que se formam naturalmente, de forma a proteger a dignidade de seus membros. Portanto, a família representa o ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização, por meio do relacionamento com outra, ou outras, pessoas, não se restringindo apenas ao casamento, estrutura familiar instituída pelo Estado.

Nesse contexto, especificamente quanto à união estável, é inquestionável que a união afetiva livre e informal sempre esteve presente na sociedade, não sendo a ausência de regulamentação legal capaz de impedir a sua constituição. E isto porque a família corresponde a um fato natural, enquanto que o casamento se resume apenas a uma convenção social que, por consequência, não abrange todas as espécies de manifestações afetivas. Por isso, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, a Carta Magna deixa indene de dúvidas a noção de que “toda e qualquer entidade familiar, seja matrimonializada ou não, merece especial proteção, não se justificando tratamento desigual e discriminatório que, em última análise, implicará em negar proteção à pessoa humana – violando a ratio constitucional”.5E, assim, em face das alterações introduzidas no Direito das Famílias ? nomenclatura à luz do princípio do pluralismo das entidades familiares ? pela Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 é responsável por regular – no bojo de uma codificação civil – a nova concepção de entidade familiar, a qual se caracteriza por ser pluralizada, democrática, igualitária substancialmente, além de representar um instrumento para realização pessoal de seus integrantes. Nesse passo, traz dispositivos específicos sobre a união estável (arts. 1.723 a 1727),

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reconhecendo-a como entidade familiar, caracterizada pela “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (art. 1.723).6Por decorrência, o Diploma Civil também se preocupou em disciplinar os efeitos sucessórios decorrentes da união estável, trazendo disposição específica sobre a questão em seu art. 1.790, com os seguintes dizeres, in verbis:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Apesar da relevância de se ter dispositivo legal que garanta, de modo expresso, a qualidade de sucessor do companheiro, verifica-se que, contudo, o Código Civil de 2002 não se preocupou em ter o companheiro sobrevivente na condição de herdeiro necessário, qualidade esta atribuída ao cônjuge, conforme previsto em seu art. 1.845. E, ainda, não incluiu a questão sucessória entre companheiros na ordem de vocação hereditária disciplinada no art. 1.829, que disciplina a sucessão legítima, estando o art. 1.790 alocado no Capítulo que trata das disposições gerais da sucessão hereditária.

Além disso, verifica-se que, segundo previsto no caput do dispositivo acima transcrito, a sucessão dos companheiros ocorre apenas com relação aos bens adquiridos durante a vigência da união estável, sendo que referida aquisição deve ser, apenas, a título oneroso. Ou seja, estão excluídos, mesmo que adquiridos durante o enlace informal, os bens adquiridos por doação, herança, fato eventual,

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etc., hipóteses em que a sucessão deverá observar a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829 do Código Civil, em que, conforme dito, o companheiro não está incluído.

A consequência de tal disciplina legal se mostra, sem dúvida, extremamente danosa nas situações em que o companheiro que vem a falecer somente deixa bens adquiridos antes da união ou adquiridos a título gratuito. Com efeito, nesses casos, inexistindo testamento que beneficie o companheiro sobrevivente, este, mesmo que tenha vivido por longos anos com o de cujus, contribuindo para a manutenção deste patrimônio, não terá direito a receber nenhuma parcela dos bens deixados – ficando, pois, desamparado financeiramente após a morte do companheiro –, os quais caberão, integralmente, aos parentes sucessíveis (art.
1.829), sendo que, na sua falta, serão transferidos ao Estado (art. 1.844).7

Ainda sobre a disciplina delineada no art. 1.790, verifica-se que, segundo o seu inciso III, quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, o companheiro sobrevivente concorrerá com outros parentes sucessíveis, ou seja, colaterais até o quarto grau, hipótese em que terá direito a apenas um terço da herança. Fazendo o contraponto com o casamento, em situação semelhante, os colaterais estariam afastados da linha sucessória, tendo o cônjuge sobrevivente direito à integralidade da herança, independentemente da forma que tenha sido a sua aquisição durante o matrimônio.

Diante dessas breves considerações acerca das disposições do art. 1.790, do Código Civil, a conclusão a que se chega, diante da ordem jurídica ora em vigor, é a de que referido dispositivo se mostra inconstitucional, por afrontar o princípio da igualdade e a valorização da relação afetiva preconizada pelo art. 226, da Constituição Federal de 1988, além de representar verdadeiro retrocesso ao

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comparado com a legislação anteriormente em vigor, que trazia previsão muito semelhante à existente para a sucessão entre cônjuges.8

Com efeito, doutrina9e jurisprudência10que, desde a entrada em vigor do

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Código Civil de 2002, passaram a suscitar a inconstitucionalidade do art. 1.790, argumentam que: a) o texto constitucional não diferencia as entidades familiares formadas pelo casamento daquelas constituídas pela união estável, sendo a previsão da conversão da união estável em casamento apenas um permissivo legal para a formalização da união de fato, o que, contudo, não coloca o casamento em posição superior, conferindo-lhe mais direitos11; b) o art. 1.790 ofende a solidariedade familiar e a afetividade e, por consequência, a dignidade humana, na medida em que, impõe a concorrência de parentes distantes do de cujus ? colaterais ? com o companheiro sobrevivente, deixando-o desamparado financeiramente, mesmo tendo sido quem compartilhou a construção do patrimônio deixado; e c)

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as disposições do art. 1.790 violam o princípio da proibição do retrocesso ? também conhecido como princípio de contrarrevolução social ou princípio da evolução reacionária ?, pois, quando da vigência da Lei nº 8.971/94, o companheiro sobrevivente concorria apenas com descendentes e ascendentes do de cujus, sendo que, na falta destes, detinha direito à totalidade da herança.

Por outro lado, existem vozes significativas que defendem a constitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, as quais sustentam que, embora o Texto Maior tenha reconhecido a união estável como entidade familiar merecedora de tutela estatal, não promoveu, ao mesmo tempo, a sua equiparação ao casamento, mantendo as peculiaridades de cada um, motivo pelo qual são regidos por disposições distintas.12Assim, o casamento permanece como o paradigma do Direito de

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Família e, por isso, há a previsão de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, o que demonstra, portanto, que, para o constituinte, união estável não é casamento, estando este em posição superior ? pois a união estável será nele convertida ?, inexistindo equiparação, pois o constituinte, quando quis assim, o fez de modo expresso, como no caso da filiação. Por decorrência, segundo referido posicionamento, o tratamento diferenciado ao direito sucessório do companheiro não vulnera o princípio constitucional da igualdade, pois este não tem por fim tratar todos igualmente, senão naqueles aspectos em que as pessoas se encontram em situações idênticas, o que não ocorre entre o casamento e a união estável.

Inclusive, digno de nota destacar que Tribunais Estaduais pátrios chegaram a reconhecer, em sede de controle difuso de constitucionalidade, a constitucionali-dade do art. 1.790, do Código Civil, decisões estas que se basearam, em suma, na concepção de que o casamento encontra-se em posição superior à união estável, devido ao fato de a Constituição Federal dispor que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento.13

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Entretanto, à luz da ordem constitucional ora em vigor, impõe-se o reconhecimento de que os institutos da união estável e do casamento, como espécies de entidade familiar que são, detêm mais semelhanças do que diferenças...

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