Descolonialismo e migrações: um estudo comparado entre as bases legais existentes entre Moçambique e Brasil

AutorAne Elise Brandalise Gonçalves - Páscoa Raimundo Tiago - Eduardo Biacchi Gomes
Páginas62-68

Page 62

Ane Elise Brandalise Conçalves1

Páscoa Raimundo Tiaco2

Eduardo Biacchi Comes3

"Passando por uma placa que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e, mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos, presa aos limos de água, presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardénia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas".

(ANTUNES, Antônio Lobo. As naus. Lisboa: Edições Dom Quixote, 1988).

1. Introdução

No romance "As Naus" (1988), do escritor português Antônio Lobo Antunes, um encontro entre o passado e o presente da história de Portugal, marcada por sua antiga e peculiar colonização de países como

Brasil e Moçambique, dentre outros, nos atinge. Na leitura, Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Diogo Cão, Vasco da Gama, conhecidos como conquistadores e ca-tequizadores, chegam em locais desconhecidos e culminam por ter uma fusão social e intercultural, nas quais

Page 63

tais figuras históricas não seriam protagonistas plenos, mas anti-heróis, com vícios e fraquezas.

As desventuras trágicas narradas e a possibilidade de análise de múltiplas narrativas trazidas por Antônio Lobo Antunes são capazes de nos remeter à necessidade de analisar a questão da base jurídica conferida aos migrantes existentes no complexo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, mais especificamente, realizar um estudo comparado entre as bases jurídicas existentes sobre migrações no Brasil e em Moçambique.

A análise, portanto, pressupõe uma escolha consciente entre os seus envolvidos: ao realizar um estudo entre Brasil e Moçambique, também contemplamos toda a história do que poderíamos ser e do que não somos, ou, ao revés, do que somos verdadeiramente e do que ecoamos na sociedade, malgrado os variados discursos de distopia acerca das migrações.

Por isso mesmo, o presente artigo não possui a pretensão de rememorar a história de nossas colonizações, até mesmo porque apesar de a situação atual vivenciada pelos países ser reflexo de seu passado colonial, a ele não se reduz, mas se vale de um conjunto de experiências múltiplas, de tradição, de presente e do que se sonha ao futuro. Em especial, no caso brasileiro, a Nova Lei de Migrações parece trazer a oportunidade de conferir voz a narrativas diversificadas, procurando afastar uma visão de domínio do Estado para com outrem e trazendo à tona a humanização de um documento normativo que faz parte da construção social do Estado.

Nesse diapasão é que o Direito aparece como uma ideia normativa, mas não possui apenas existência puramente teórica: ela também mobiliza pessoas e exerce influências sobre elas4.

Para o exercício dessa proposta, o artigo apresenta, a princípio, o aporte teórico do qual se vale toda a pesquisa, qual seja: a perspectiva descolonialista. Após, verifica o contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como unificador da figura de Portugal e dos países antes colonizados por ele. Em outras palavras: a CPLP é capaz de fornecer uma genealogia completa a partir do critério linguístico (todos falam português).

Dessa genealogia, sem olvidar de Portugal, como antigo colonizador e formador desses países a serem vislumbrados, são escolhidos dois Estados para melhor realizar uma análise microscópica, quais sejam: Brasil e Moçambique; o que será conferido em tópico próprio.

Para construção do trabalho, cujo referencial teórico principal é o descolonialismo, o artigo se vale da utilização da metodologia dedutiva, com enfoque no uso do tripé jurídico "doutrina-legislação-jurisprudência".

2. Aporte teórico para compreender a questão: o descolonialismo

Ao estudarmos o Direito Internacional, inegável é a contribuição dos valores eurocêntricos para a formação do Brasil e dos Estados africanos. Nesse manto, dentro dos valores do Século XVI e da grande influência exercida pelo Papa junto aos antigos Estados medievais (aqueles que ainda aceitavam a influência política do Papa em seus governos), Espanha e Portugal procuraram legitimar as suas conquistas no Novo Continente, principalmente por meio de dois instrumentos jurídicos: a Bula Pontifícia Inter Coetera e o Requerimento dos Conquistadores, documentos papais que, juridicamente, justificariam o domínio europeu nas terras do Novo Mundo5.

Um pouco diferente da colonização espanhola, mas não menos exploratória, a colonização do Brasil também contou com uma história de dominação. Apesar de aqui os portugueses não encontrarem, de imediato, ouro e prata em abundância, como no caso da história da colonização espanhola, havia muito pau--Brasil e um ciclo do açúcar rentável, seguido de outros ciclos igualmente economicamente produtivos6.

Esses valores disseminados para a América Latina, assim como pujantes na África, perpetuaram o que se denomina como eurocentrismo. Contudo, foi a partir do movimento de independência dos Estados latino-americanos e Estados africanos que o movimento descolonialista, nos seus respectivos níveis regionais, passou a ser pujante, já que havia a necessidade de se desvincular das ideias impostas como verdadeiros valores pelas antigas colônias e, então, passar a ter uma identidade própria, até mesmo porque as colônias não deixariam de ser colônias pelo mero fato de terem se tornado independentes7.

Page 64

Por certo, os tempos são outros desde o nascimento da teoria descolonialista. No cenário político e a nível global, o movimento passa a ganhar maior atenção no período do pós-Guerra Fria, quando então não seria mais possível se cogitar em uma colonização territorial de Estados como nos moldes antigos, e quando então uma série de eventos ocorreu, de sublevação dos Estados para categoria de membros pertencentes à sociedade internacional, que se viu obrigada a se expandir para acolher tais membros8. Nesse sentido, além do âmbito latino-americano e do continente africano, tal movimento também reverberou na Ásia.

No ponto, acerca do movimento descolonial da África, destaque para a Constituição moçambicana, que no seu art. 118 reconhece a figura das autoridades tradicionais, em que se aplica o direito costumeiro, de forma a valorar o povo e a cultura específica9.

No mesmo sentido, a Carta dos Povos Africanos reconhece expressamente a aplicação dos Direitos Humanos naquele continente sem desrespeitar os valores culturais e identidades locais10.

Longe de explicitar todo movimento descolonialista, de facetas múltiplas, cumpre verificar que apesar das tentativas de desvencilhar-se do passado colonial, ao mesmo tempo não podemos fugir completamente dele. Na colonização e descolonização, nossa aproximação com o Estado dominador e respectiva tentativa de se afastar é feita das mais variadas formas, dentre as quais podemos citar os movimentos migratórios.

Há algo que nos une. Países tão diversificados, como Brasil e Moçambique, passam, assim, a constatarem similitudes sociais, de forma que a construção dos valores próprios de um Estado nunca acontecerá de forma isolada, muito pelo contrário: os ensinamentos e experiências vivenciados pelos países nos auxiliarão.

Buscando demonstrar uma dessas similitudes, cumpre analisarmos a Comunidade dos países da língua portuguesa, conforme será explanado no próximo capítulo.

3. A comunidade dos países da língua portuguesa

Entre Brasil e Moçambique, o colonizador, Portugal, foi o mesmo, de modo que em ambos os países a língua oficial é o português. Não apenas esses três países, uma série de outros também fala tal idioma como língua oficial, o que deu ensejo à criação da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP), organização internacional voltada para o aprofundamento de seus laços fraternos, na forma de maior cooperação.

Formada por 9 países integrantes, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, foi fundada em 17 de julho de 1996 e possui atual sede em Lisboa, Portugal.

Contudo, a CPLP sofre críticas no sentido de ser uma organização que se concentra em dois países apenas, Portugal e Brasil, pois considerados os principais Estados dentro do grupo de países integrantes11.

Ainda assim, a cooperação igualitária (e não...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT