A mão de obra migrante como traço da escravidão moderna

AutorMarco Antônio César Villatore - Anderson Pereira Charão
Páginas23-30

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Marco António César Villatore1

Anderson Pereira Charão2

1. Introdução

O atual sistema, sem precedentes, de mobilidade humana se tornou uma importante prioridade política tanto nacional, quanto regional e internacionalmente. O grande problema humanitário do século XXI, sem sombra de dúvidas, é a questão da migração de pessoas, seja de forma voluntária, seja de forma forçada em decorrência de guerras, tragédias ou fome.

O movimento migratório dos dias atuais encontra paralelo tão somente com o movimento ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial em que milhões de pessoas saíram de um país para outro.

A preocupação acerca do fluxo migratório já ressoou em nosso país, tendo sido promulgada a Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017, a qual institui a "Lei de migração", regulamentada pelo Decreto n. 9.199, de 20 de novembro de 2017.

Nesse sentido se mostra relevante o debate acadê-mico acerca desse panorama e as consequências dessa movimentação de trabalhadores ao redor do mundo, sobretudo no viés da prevenção e do combate ao uso da mão de obra migrante como escrava moderna.

2. O problema da migração

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, estatui, em seu art. 2º, que "não seráfeita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania", ou seja, a migração é um direito inerente a todos os seres humanos e nenhuma discriminação pode derivar dessa situação, até por conta de sua ocorrência que, na imensa maioria das vezes, decorre de questões humanitárias.

Conceituar o migrante já e uma tarefa árdua. Conforme a Organização Internacional para Migrações (OIM):

No plano internacional não existe uma definição universalmente aceite de migrante. O termo migrante compreende, geralmente, todos os casos em que a decisão de migrar é livremente tomada pelo indivíduo em questão, por razões de 'conveniência

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pessoal" e sem a intervenção de fatores externos que o forcem a tal. Em consequência, este termo aplica--se às pessoas e membros da família que se deslocam para outro país ou região a fim de melhorar as suas condições materiais, sociais e possibilidades e as das suas famílias.

A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias da Organização das Nações Unidas do ano de 1990, em seu art. 2º, conceitua "trabalhador migrante" como sendo "a pessoa que vai exercer, exerce ou exerceu uma atividade remunerada num Estado de que não é nacional", ou seja, toda a pessoa que venha a realizar, realize ou tenha realizado uma ativi-dade remunerada em um Estado do qual não seja nacional, incorporando diversas categorias e modalidades laborais que até então estavam excluídas, entre outras, os trabalhadores por conta própria e os trabalhadores fronteiriços (2015, p. 107).

A Lei n. 13.445/2017, no § 1º do art. 1º, conceitua o migrante e o diferencia das demais figuras:

Art. 1º. (...)

§ 1 º. Para os fins desta Lei, considera-se:

II - imigrante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil;

III - emigrante: brasileiro que se estabelece temporária ou definitivamente no exterior;

IV - residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;

V - visitante: pessoa nacional de outro país ou apátrida que vem ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no território nacional;

VI - apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, nos termos da Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, de 1954, promulgada pelo Decreto n. 4.246, de 22 de maio de 2002, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro.

Verifica-se que o Brasil sai na frente de outras nações ao deixar claros os conceitos inerentes à migração e a regular toda essa situação que, apesar de não ser nova, ganhou um novo tônus.

Nos dias atuais, o momento migratório encontra motivação especialmente no âmbito econômico. A falta de trabalho ou falta de perspectiva de trabalho, somadas à busca por aprimoramento das condições materiais, catástrofes naturais, guerras e perseguições em geral podem ser encontrados como motivos em diversos textos que investigam o tema da migração (ZANFORLIN, 2014, p. 86/87).

Thomas Piketty (2014, p. 75), em sua obra "O capital no século XXI", traz elementos que corroboram com a constatação acima ao mencionar que os países que têm o maior contingente de emigrantes são aqueles que têm Produto Interno Bruto (PIB), per capita, de 2000 Euros, e, em geral, a procura por uma vida melhor se direciona aos países europeus com PIB, per capita, de 27.300 Euros.

Na ideia de Piketti, a desigualdade pode ser útil para o crescimento e para a inovação, contanto que ela seja razoável. O problema é quando a desigualdade se torna extrema, e é verdade que a distribuição do patrimônio, mais do que a do salário ou a da renda, pode frequentemente assumir proporções extremas.

Especificamente no cenário nacional, o tema da migração ganhou realce como menciona Bruna Caroline Pereira (2016, p. 34) a partir do terremoto que devastou o Haiti em 2010, pois a partir daí começou um fluxo migratório jamais visto antes.

O problema da migração forçada é extremamente complexo, pois afora a questão humanitária, as nações se preocupam com os impactos econômicos que o trânsito de pessoas de uma nação para a outra trazem.

Nesse sentido, Roberto Kurz, citado por Roberto Marinucci e Rosita Milesi (2005), afirmam:

É preciso deixar de dar explicações do tipo 'o ser humano sempre fez guerras e sempre migrou'. Isto não ajuda a compreender este fe-nômeno que é inédito e nunca ocorreu em tão alta escala como agora. A migração não é nada nova na história da modernização, mas, sim, há um erro na avaliação ao dizer que as pessoas migram livremente em busca de melhores condições. É um processo coativo. Os pobres são livres para vender sua mão de obra, porém fazem isto porque não têm condições para controlar sua existência. A transformação da sociedade capitalista numa situação mundial produziu uma sociedade de exclusão. O ser humano participa de um sistema no qual vende abstratamente sua mão de obra e integra uma engrenagem (montada) para produzir acumulação infinita de capital.

Uma crítica que se pode fazer à regulamentação nacional é que ela peca pelo excesso, vez que textualmente garante ao migrante tanto direitos humanitários como o direito à liberdade civil, à liberdade de

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circulação como direitos menores, por exemplo, o direito a ter uma conta bancária (inciso XIV).

Conforme levantamento do Diretório Geral de Políticas Internas do Parlamento da União Europeia (2016, p. 19), os subsídios mensais concedidos aos requerentes de asilo variam significativamente entre países e de acordo com as condições de habitação. Pode ir de cerca de 10 Euros para adultos solteiros alojados em centros de acolhimento a mais de 300 Euros para aqueles sem alojamento. Normalmente, o custo total de tratamento e de acolhimento dos requerentes de asilo pode se situar entre 8.000 Euros e 12.000 Euros por candidatura, apenas no primeiro ano.

Ao se aumentar a população economicamente ati-va, o mercado de trabalho da mesma forma é afetado. Segundo o mesmo estudo do Parlamento da União Europeia (2016, p. 22), assumindo uma entrada líquida de 1 milhão de requerentes de asilo em 2015 e em 2016 a força de trabalho potencial aumenta de 380.000 pessoas em 2016 para 640.000 em 2018. Espera-se que o desemprego aumente num futuro próximo quando os candidatos iniciarem a busca por colocação profissional.

Os legisladores da União Europeia temem que o afluxo de refugiados com menos qualificações possa prejudicar os nativos com baixos salários ou desempregados (a longo prazo). Para evitar isso dificultam o acesso dos migrantes ao mercado de trabalho.

Com o aumento do desemprego somado à dificuldade de integração no mercado de trabalho local, in-corporam-se ao setor informal bolsões de trabalhadores excluídos do setor formal, em condições precárias de renda e sem direitos trabalhistas, tendo-se como consequência a expansão do trabalho precarizado, parcial, temporário, terceirizado, informalizado, etc.

Segundo Graça Druck (2007, p. 208), a precari-zação das relações se apoia na institucionalização do processo de...

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