Migração internacional forçada por perseguições, conflitos e desastres: em busca do destino 'dignidade'

AutorAndré Jobim de Azevedo - Vitor Kaiser Jahn
Páginas79-85

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André Jobim de Azevedo1 Vítor Kaiser Jahn2

Nas últimas duas décadas, a população mundial forçada a abandonar seu domicílio por conta de perseguição, conflito, violência ou violação de direitos humanos cresceu substancialmente, passando de 33,9 milhões em 1997 para 65,6 milhões em 2016, segundo o relatório Global Trends publicado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) em julho de 20173.

O estudo aponta que, em âmbito global, 20 pessoas foram forçadas a deixar suas casas a cada minuto de cada dia de 2016, sendo o conflito na Síria o maior propulsor desse deslocamento forçado, com mais de 12 milhões de sírios atingidos.

Nesse contexto, surge uma preocupação maior com a formação de identidades e padrões específicos de grupos migratórios que anteriormente eram desconhecidos ou ignorados na problemática da estrutura social mais ampla da sociedade destinatária dessas migrações.

Como ressalta Anthony Giddens, face à globalização e os atuais processos migratórios, muitas sociedades estão a tornar-se, pela primeira vez, etnicamente diversas; outras a descobrir que os padrões existentes de multietnicidade estão sendo intensificados. Todavia, em todas as sociedades, os indivíduos estão começando a conviver com pessoas que pensam de forma diferente, têm uma aparência diferente e vivem de uma forma diferente da sua4.

Embora muitos perseguidos e sujeitos a conflitos armados optem por permanecer em localidades próximas a suas casas, a fim de manter os vínculos familiares e sociais, outros resolvem buscar proteção internacional em locais distantes, atravessando o Mar Mediterrâneo em busca de um abrigo seguro que lhes possa proporcionar uma vida digna.

Por via de consequência, muitos países europeus experimentaram considerável aumento de refugiados e solicitantes de asilo nos últimos anos, alcançando a Alemanha uma população de 1 milhão e 300 mil estrangeiros nessas condições até o final de 2016, enquanto que na Suécia foram 313 mil e 300 imigrantes.

O Brasil também foi afetado por este acréscimo, tendo sido divulgado pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE)5 que, enquanto 2010 totalizou 966 pedidos

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de refúgio, em 2015 alcançou-se a marca de 28.670 solicitações recebidas pelo Ministério da Justiça.

No entanto, até o final de 2016, houve o reconhecimento histórico de apenas 9.552 refugiados no Brasil; ou seja, a concessão do refúgio não tem acompanhado nem de longe o número de solicitações apresentadas pelos imigrantes que aqui aportam em busca de abrigo.

Fato é que, no Brasil, os órgãos responsáveis por apreciar as solicitações de refúgio não estavam preparados para absorver tamanho acréscimo de pedidos de refúgio, o que acarretou um sistema decisório extremamente moroso e prejudicial aos imigrantes, havendo processos que aguardam anos e anos sem qualquer encaminhamento, permanecendo os solicitantes de refúgio em condição provisória por tempo indeterminado, notadamente precária.

Após conseguirem ingressar no Brasil, os imigrantes que não chegam no país com um visto previamente concedido, necessitam enfrentar um longo processo administrativo para a regularização da sua situação, sendo a solicitação de refúgio a única forma de amparar sua permanência, tornando-a imediata e automaticamente regular, até a conclusão do processo.

A abertura da solicitação de refúgio acarreta a emissão de um protocolo que vale como carteira provisória de estrangeiro, com validade de um ano, prorrogável por igual período de forma sucessiva até a decisão final (RN n. 18/2014, do CONARE), demonstrando a regularidade da condição migratória até que se decida o processo.

A Lei brasileira de implementação do Estatuto dos Refugiados assegura ao portador do referido documento que "em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política" (art. 7º, § 1º, da Lei n. 9.474/1997).

Ademais, a partir do protocolo, o estrangeiro passa a contar com a possibilidade de obter Carteira de Trabalho e Previdência Social, conforme disposto no art. 21, § 1 º, da Lei n. 9.474/1997, iniciando-se, então, a possibilidade de buscar melhores condições de vida por meio de um emprego formal que lhe possa assegurar dignidade.

Os ideais de dignidade e liberdade da pessoa humana possuem íntima relação com o Estado Democrático de Direito, pois colocam o indivíduo no centro de todo o sistema jurídico-normativo.

Justamente por não haver esse enaltecimento em regimes ditatoriais e em áreas de conflito armado, muitos são forçados a abandonar seu país de origem em busca de um Estado que assegure a inviolabilidade de seus direitos fundamentais.

A esse respeito, fundamental é a lição de Ingo Sarlet6, "onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças".

Segundo Mauricio Godinho Delgado, o princípio da dignidade da pessoa humana traduz a ideia de que o valor central das sociedades, do direito e do Estado é a pessoa humana, em sua singeleza, independentemente de seu status econômico, social ou intelectual. Complementa o autor que "o princípio defende a centralidade da ordem jus-política e social em torno do ser humano, subordinante dos demais princípios, regras, medidas e condutas práticas"7.

De fato, como ressalta Dinaura Gomes, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana "supera qualquer outra elaboração legislativa, porque ocupa um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico como valor supremo da ordem constitucional e finalidade precípua da ordem económica e social"8.

Contudo, conceituar a palavra "dignidade" não é uma tarefa fácil para o intérprete. Como bem vislumbrado por Pedro Augustin Adamy, a mera referência à "dignidade" é "demasiado ampla, demasiadamente vaga e abstrata, acriteriosa e, acima de tudo, manipulável"9;

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afinal, sob o pretexto da dignidade, pode-se defender dois lados absolutamente opostos, valendo ela como verdadeira "tábua de salvação" argumentativa.

Quanto ao ponto, Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado complementam que: "A formulação de conceito que seja atual sobre a dignidade da pessoa humana é uma das tarefas mais tortuosas apresentadas pelas doutrinas filosófica e constitucional"10.

Nessa conjuntura, adotar-se um referencial para alcançar o conceito de dignidade da pessoa humana se afigura imprescindível, a fim de que seja aclarado, afinal, é o que está efetivamente elevado ao status de princípio que fundamenta toda a República Federativa do Brasil.

Para tanto, o referencial kantiano apresenta-se como o mais expressivo no âmbito histórico-filosófico. Segundo Immanuel Kant, a dignidade da pessoa humana se conceitua a partir da percepção de que "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade"11, robustecendo a linha de pensamento contra qualquer tendência à coisificação ou instrumentalização do ser humano12. Miguel Reale complementa que o homem, portanto, deve ser compreendido como o "valor-fonte de todos os valores"13

Ingo Sarlet ressalta que a dignidade da pessoa humana constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais, estabelecendo verdadeira limitação às restrições a eles impostas14.

No âmbito jurídico-positivado, o dispositivo constitucional que eleva a dignidade da pessoa humana ao status de princípio regente da República assegura a garantia da liberdade individual e da possibilidade de autodeterminação, sendo o homem insuscetível de instrumentalização ou objetivação, segundo Pedro Adamy15.

A par disso, a Carta Magna arrola a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como elementos fundamentais da República (artigo 1º, incisos III e IV, da CRFB), a respeito do que Arnaldo Süssekind16 leciona que a prevalência da dignidade do trabalhador, enquanto ser humano, e dos valores sociais do trabalho, deve ter profunda ressonância na interpretação e aplicação das normas e das condições contratuais estabelecidas.

Assim, se alguém é forçado a...

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