Tutela da dignidade do trabalhador imigrante: uma análise específica do direito internacional e sua recepção pelo ordenamento jurídico brasileiro

AutorDinaura Godinho Pimentel Gomes
Páginas110-121

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Dinaura Godinho Pimentel Gomes1

1. Noções introdutórias

O fenômeno da globalização estabelece novas ordens econômicas e políticas para facilitar o livre crescimento de um sistema econômico transnacional que desenvolve processos de liberação de fluxos de mercado, sempre em vista do aumento permanente das margens de lucro. Nessa senda, são minimizadas políticas públicas em prol do desenvolvimento sustentável de cada país. Depara-se com a separação que existe entre o capitalismo e os ideais de democracia, favorecendo a crescente concentração de riqueza e a consequente desigualdade social. Isso tem desencadeado um aumento profundo da divisão da sociedade organizada, que se revela incapaz de oferecer soluções aos problemas de desemprego, da desigualdade social, da violência sexual e da miséria humana, mesmo sob a égide de um Estado Democrático de Direito.

A falta de empregos decorrente desta realidade provoca fluxos migratórios entre vários países nem sempre preparados com políticas afirmativas para acolher e amparar pessoas submetidas a tais práticas.

Nesse cenário, o presente ensaio busca demonstrar a relevante atuação da ONU - Organização das Nações Unidas - em sintonia com a OIT - Organização Internacional do Trabalho -, que vêm estimulando, cada vez mais, o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas, sem qualquer distinção, principalmente quando se encontram na condição de imigrantes.

No Brasil, mesmo num quadro econômico e social desfavorável, os direitos sociais foram consagrados como núcleo normativo do Estado Democrático de Direito, pela Constituição Federal vigente. Desse modo, emergem as possibilidades jurídicas de se concretizarem condições de subsistência digna e decorosa para trabalhadores imigrantes. Para tanto, foi promulgada a Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017, que revoga o Estatuto do Estrangeiro, o qual muito dificultava o acesso dos imigrantes ao trabalho decente.

Verifica-se, cada vez mais, a difusão da necessidade de se disseminar o efetivo respeito aos direitos humanos e fundamentais, mediante a revitalização do primado da liberdade, bem espelhado nos direitos civis e políticos em sintonia com o primado da igualdade, consubstanciado nos direitos sociais, econômicos e culturais. Para tanto, se sobreleva a indispensável cooperação internacional no sentido de humanizar a globalização.

Assim, em clima de legalidade e democracia, passaram a existir efetivas condições de se pôr em prática mecanismos legais de real tutela dos direitos fundamentais sociais, dentre os quais se destacam os direitos dos trabalhadores imigrantes, devendo ficar afastado qualquer tipo de discriminação, nos âmbitos local e internacional.

É o que se propõe a tratar nos itens seguintes deste ensaio.

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2. A dignidade humana como viga mestra dos direitos humanos e fundamentais

O valor dignidade tornou-se o epicentro do grande elenco de direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais, que vêm proclamados pelos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, cujas normas foram recepcionadas pelas constituições dos Estados-nação de cunho democrático. Traduz uma especificação material e independente de qualquer tempo e espaço. Consiste em considerar que cada pessoa possui um espírito impessoal, o que a torna capaz de tomar suas próprias decisões a respeito de si mesma e de tudo que gira ao seu redor.

Como bem destaca André de Carvalho Ramos, "a raiz da palavra 'dignidade' vem de dignus, como aquilo que possui honra ou importância.

Com São Tomás de Aquino, há o reconhecimento da dignidade humana, qualidade inerente a todos os seres humanos, que nos separa dos demais seres e objetos. São Tomás de Aquino defende o conceito de que a pessoa é uma substância individual de natureza racional, centro da criação pelo fato de ser imagem e semelhança de Deus. Logo, o intelecto e a semelhança com Deus geram a dignidade que é inerente ao homem, como espécie".2

No contexto da evolução histórico-filosófica da ciência jurídica, o pensamento de KANT apresenta-se como o mais expressivo no que concerne à conceitua-ção da dignidade da pessoa humana como fim e não como meio. Exsurge daí que o outro deve ser compreendido não como mero objeto, porém reconhecido como sujeito e tratado como fim em si mesmo. Vislumbra-se dessa primorosa concepção não somente a dimensão individual da pessoa humana mas, também, sua dimensão comunitária e social:

"A necessidade prática de agir segundo este princípio, isto é, o dever, não assenta em sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim somente na relação dos seres racionais entre si, relação essa em que a vontade de um ser racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente como legisladora, porque de outra forma não podia pensar-se como fim em si mesmo [...].

No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pór em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.

O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento (Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é dignidade."3

A partir da difusão das notícias de ocorrência da Era Hilter "marcada pela lógica da destruição e da des-cartabilidade da pessoa humana, que resultou no extermínio de 11 milhões de pessoas, das quais 6 milhões de judeus"4, surge o movimento de reconstrução dos direitos humanos, em nível internacional, depois concretizada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (adotada e proclamada pela Resolução n. 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, assinada pelo Brasil na mesma data). Essa Declaração introduz a revisão da noção tradicional da soberania absoluta do Estado-nação ao reconhecer, expressamente, no âmbito internacional, a "dignidade inerente a todos os membros da família humana".5 Introduz também uma nova linguagem de direitos, combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social.6

Com a Declaração, desencadeiam-se os primeiros passos de reconstrução da sociedade, no âmbito dos Estados-partes, em prol da defesa de todas as pessoas, sem qualquer distinção, tendo como núcleo central o

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respeito à dignidade da pessoa humana, a exemplo do que dispôs, logo em seguida, a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949, em seu artigo primeiro, que "A dignidade da pessoa humana é inviolável. Todas as autoridades públicas têm o dever de a respeitar e a proteger".

Enfaticamente, a mesma Constituição preceitua que "(2) O Povo Alemão reconhece, por isso, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de qualquer comunidade humana, da paz e da justiça no mundo [...]".7

Como se vê, exsurge daí o primeiro passo universal de reconstrução da sociedade e do Estado (inclusive por parte de um mesmo Estado-nação, antes violador de direitos humanos, mediante a prática de horrores e gravíssimas atrocidades) em prol do bem de todas as pessoas, sem qualquer distinção.

A propósito, eis o que preleciona Ana Paula Barbo-sa-Fohrmann, ao tratar da Dignidade Humana no Direito Constitucional Alemão:

"De acordo com a opinião da maioria (W. Hõfling, C. Stark e I.von Münch), a dignidade humana possui caráter híbrido. Por um lado ela é um princípio jurídico (Direito Objetivo), por outro, é um direito fundamental (Direito Subjetivo). A interpretação do princípio jurídico decorre historicamente do art. 1 º da Convenção do Herrenchiemsee e da visão do constituinte originário depois da Segunda Guerra. Nesse sentido, ela é a norma fundamental do Estado e é obrigatória para todo poder público. Ela possui, porém, ainda caráter de direito fundamental. Essa caracterização se deduz da interpretação do art. 1 º, § 1 º, fase 1 em conexão com a fase 2 da LF. O Estado tem o dever de respeitar e proteger a dignidade humana. A esse dever corresponde o direito subjetivo do indivíduo. Assim é que ela é também concebida jurídico-subjetivamente. A opinião da maioria mostra, ademais, que a Corte Constitucional compartilha da mesma posição. Isso significa que o Tribunal qualifica a dignidade humana como principal direito fundamental e o valor jurídico máximo do ordenamento constitucional alemão."8

Na Itália, antes dominada pelo fascismo de Mussolini, foi promulgada a Constituição da República Italiana em 27 de dezembro de 1947, que declara expressamente, em seu art. 3º, o seguinte:

"Art. 3º Todos os cidadãos têm igual dignidade social e são iguais diante da lei, sem distinção de sexo, de raça, de língua, de religião, de opiniões políticas, de condições pessoais e sociais.

"É tarefa da República remover os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efeti-va participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do País."9

Do mesmo modo, eis o que proclama a Constituição da República Portuguesa, aprovada bem posteriormente, em 2 de abril de 1976, em seu art. 1 º:

"Art. 1 º Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária".10

Nessa senda, a subsequente Constituição Espanhola, de 29 de dezembro de 1978, assim dispõe:

"Art...

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