O trabalho infantil e as crianças e adolescentes refugiados: a problemática no mundo contemporâneo e a lei da aprendizagem como instrumento de proteção

AutorAdriana de Fátima Pilatti Ferreira Campagnoli - Taís Vella Cruz
Páginas191-203

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Adriana de Fátima Pilatti Ferreira Campagnoli1

Taís Vella Cruz2

1. Introdução

Quando estão expostas estampando suas finas marcas em bonitas vitrines pela Europa e mundo afora, é difícil imaginar que aquelas bolsas, roupas e acessórios podem ser fruto de exaustivas jornadas de trabalho, compostas por mais de doze horas e fabricadas pelas mãos de crianças e adolescentes refugiados, vivendo em zonas de conflito e recebendo ínfima remuneração, contribuindo para o agravamento do problema relacionado ao trabalho infantil no mundo contemporâneo.

Ocorre que tal situação não se encontra somente no imaginário, mas pelo contrário, tem-se apresentado como árdua realidade para inúmeras crianças e adolescentes refugiados.3 Considerando a criança e o adolescente como sujeitos em situação peculiar de desenvolvimento e detentores de direitos humanos, assegurados em normativas internacionais específicas, para a criança e para os refugiados, verifica-se que tal situação significa enorme afronta à dignidade humana, além de contrariar a ideia de trabalho digno defendida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Diante da problemática apresentada, o presente estudo analisará os atores envolvidos nesse cenário, a fim de compreender o papel da OIT e das normativas internacionais que visam garantir à criança refugiada a proteção necessária para o seu pleno desenvolvimento.

Ademais, o desafio de combater o trabalho infantil em todas as suas formas, especialmente no período de crise humanitária vivenciado pelo mundo contemporâneo é tarefa a ser atribuída a todos os países, de modo que cumpre a estes encontrar mecanismos eficientes para combater e impedir a exploração do trabalho de crianças e adolescentes refugiados em seus territórios.

Dessa forma, por meio do método lógico dedutivo e amparado nas técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, tem-se como objetivo explorar a temática

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no plano internacional, bem como investigar se o Brasil, enquanto país signatário dos principais documentos para a proteção de refugiados e da criança, possui algum mecanismo capaz de auxiliar no combate e prevenção do trabalho infantil, elegendo-se a Lei da Aprendizagem como ferramenta possível para essa tarefa.

2. A organização internacional do trabalho e a noção de trabalho digno

O século XX é período reconhecido pela ocorrência das duas grandes guerras mundiais. Tais conflitos armados modificaram a ordem mundial, revelando-se, de um lado, como eventos fortemente violadores de direitos básicos e dando margem, doutro lado, para o fortalecimento da ideia de comunidade internacional, bem como para o surgimento de instrumentos normativos internacionais protetores de direitos reconhecidos pelos países como essenciais.

Exemplo de tal feito é a criação da OIT, em junho de 1919, ao final da 1a Guerra Mundial (1914-1918). Com o término do conflito, os países vencedores elaboraram o Tratado de Versalhes, documento que dispôs na parte XIII sobre a criação da OIT, destacando o objetivo de promover a paz social e dispor sobre melhorias nas relações de emprego, alinhando-se aos novos princípios que regeriam a legislação internacional do trabalho.4

Surge então uma organização responsável pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho, fundada primordialmente no ideário de que a paz universal, bem como a sua permanência, só alcançam êxito se baseada na justiça social.5 Observadas as condições injustas e circunstâncias deploráveis de trabalho às quais se submetia o trabalhador, especialmente durante a Revolução Industrial no século XVIII, a OIT traz consigo visão humanitária, fundada na ideia da paz universal, para atuar como instrumento de concretização e universalização da justiça social e proteção do trabalhador em sua integralidade.6

A OIT antecede a criação da Organização das Nações Unidas - ONU (1945) e a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), surgidas somente ao final da 2a Guerra Mundial. No entanto, a OIT declarou-se integrante da ONU após a sua criação, de modo que é considerada uma das agências especializadas desta últi-ma.7 É a única das agências integrantes do sistema das Nações Unidas a apresentar estrutura tripartite, sendo composta por representantes de governos, organizações de empregadores e de trabalhadores.8

Por meio da elaboração de convenções e recomendações, a OIT passa a defender os princípios fundamentais do Direito Internacional do Trabalho, podendo estes serem suscintamente descritos em: a) o trabalho não é uma mercadoria, devendo o trabalho respeitar os limites da existência e vida digna; b) a liberdade de expressão e de associação é uma condição indispensável a um progresso ininterrupto, de modo que tais liberdades não devem ser tolhidas de modo algum; c) a penúria constitui sempre perigo para o progresso geral, sendo que a pobreza e as condições degradantes de trabalho deverão ser combatidas por todos para a garantia de uma sociedade justa socialmente; e, por fim, d) a luta contra a carência deverá ser conduzida arduamente por um esforço internacional contínuo e conjugado, no qual os representantes de trabalhadores e empregadores discutam em igualdade com os representantes do governo, tomando decisões democráticas para o alcance do bem comum.9 A partir desses princípios a OIT atua junto aos países e em todas as searas ligadas às relações de emprego, buscando proteger a justiça social e a dignidade humana.

Para que tal propósito se concretize a organização defende a proteção e realização do chamado trabalho digno. Tal conceito abrange as aspirações do ser humano no domínio profissional e envolve diversos elementos, como oportunidades para realizar um trabalho produtivo com remuneração equitativa, segurança no local de trabalho, proteção social para as famílias dos

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trabalhadores, perspectivas de desenvolvimento pessoal e integração social, dentre outras.10

Nesse contexto, percebe-se que a busca pelo trabalho digno aproxima o Direito do Trabalho dos Direitos Humanos, ao passo que este não está mais restrito à liberdade e intangibilidade física e psíquica, mas passa a relacionar-se também com a conquista e afirmação da sua individualidade no plano económico e social. Verifica-se então que o trabalho digno regula a principal modalidade de inserção dos indivíduos no sistema socioeconómico capitalista, pois visa lhes assegurar um patamar de direitos e garantias jurídicas, mediante o trabalho e o emprego normatizado pelo Direito do Trabalho.11

A consolidação da ideia de trabalho digno e a implementação de esforços para que ela se concretize é fundamental para a redução da pobreza e constitui meio de se alcançar desenvolvimento global equitativo, inclusivo e sustentável. Além disso, a OIT defende que o trabalho digno deveria estar no centro das estratégias globais e nacionais que visam ao progresso económico e social, dada sua importância para combater formas de exclusão, subempregos, exploração, trabalhos desiguais, dentre outras práticas que impedem a proteção da dignidade humana na esfera empregatícia.12

Se o propósito da OIT é proporcionar a realização da justiça social e garantir a proteção da dignidade humana verifica-se que sua atuação será de fundamental importância em diversas searas que envolvem temáticas do Direito do Trabalho, como é o caso do trabalho infantil, que será tratado na sequência.

3. A questão do trabalho infantil

Embora se saiba que o trabalho exercido por crianças ocorra desde muito antes do início da Revolução Industrial, no século XVIII, historiadores demonstram o agravamento da utilização da mão de obra infantil a partir desse período. Na Inglaterra, no século XIX, crianças e jovens menores de 18 anos representavam um terço dos trabalhadores nas indústrias têxteis e mais de um quarto nas minas de carvão. Outros países como a França, a Bélgica e os Estados Unidos também apresentavam índices elevados de crianças trabalhando, por volta de 1830 e 1840.13 O estabelecimento de idades mínimas para o trabalho passou então a ser discutido e viria a ser objeto de preocupação de legislações e convenções futuras, já que problema fundamental para a construção de um Direito do Trabalho.14

Dentre os modelos matemáticos e construções teóricas que buscam explicar as razões do trabalho infantil durante o período destacado, têm-se os estudos de Marx, os quais pontuam que, com a utilização das máquinas nas indústrias, tornou-se possível a utilização de trabalhadores mais fracos ou com o desenvolvimento físico incompleto, mas com membros flexíveis, tal qual as crianças. Além disso, as máquinas diminuíram o tempo de trabalho, fazendo com que empregadores reduzissem o salário dos trabalhadores. Isso minorou o meio de subsistência das famílias e, forçadamente, mais indivíduos destas tiveram que ingressar no mercado para garantia da renda, como as crianças.15

A problemática do trabalho exercido por crianças foi negligenciada por longo período, reforçando a impressão de que somente passou a ser proibido, de fato, quando se tornou prescindível ao modo de produção industrial capitalista.16 Muito embora a percepção dos fatores prejudiciais ao desenvolvimento da criança, do adolescente e da própria sociedade, as proibições e grandes mobilizações para o combate ao trabalho infantil somente ocorreram após a consolidação dos direitos da criança e do adolescente. Por muito tempo a preocupação esteve restrita ao estabelecimento de idades mínimas, como registrado pela então Agência Internacional do Trabalho (AIT), em 1919, com a Convenção sobre o...

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