Globalização, oit e trabalhador imigrante: brasileiros em portugal após a crise econômica de 2008

AutorHélcio Ribeiro
Páginas41-51

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Hélcio Ribeiro1

Existe uma guerra de classes, e nós, os ricos, estamos ganhando.

1. Introdução

O artigo analisa, a partir de revisão bibliográfica e dados disponíveis no Brasil e em Portugal, o impacto da crise económica de 2008 no trabalho dos brasileiros residentes em Portugal. Primeiramente contextualizamos o tema no processo de globalização económica e seu impacto na questão do emprego e do trabalho a partir do conceito de reestruturação produtiva do capitalismo mundial iniciada em meados dos anos setenta do século passado. Na segunda parte expõe-se a postura das organizações internacionais, principalmente a Organização Internacional do Trabalho em relação ao trabalho do imigrante. O papel destas organizações se revela ambíguo e contraditório. Na terceira parte descrevemos a situação dos brasileiros em Portugal antes e após a crise de 2008. O artigo procura mostrar dois processos simultâneos: observa-se que o papel das instituições internacionais, especialmente a OIT, tem sido sempre ambíguo na proteção do trabalho e, no caso dos trabalhadores brasileiros em Portugal, a posição deste país revela um interesse crescente em estimular a entrada de estrangeiros em função do envelhecimento da população portuguesa e também como forma de enfrentar a saída em massa de trabalhadores portugueses para outros países após a crise de 2008.

2. Globalização, biopolítica e trabalho na era da reestruturacão produtiva

A frase do milionário norte-americano, citada por Safatle2 e que serve de epígrafe para este artigo, resume, ainda que toscamente, a situação da classe operária e seus direitos hoje no mundo. A reestruturação produtiva do capitalismo desde meados da década de setenta do século passado afetou de tal forma a organização do trabalho no mundo que a literatura internacional sobre o tema vem analisando, desde então, a hipótese de fim da sociedade do trabalho. O trabalho é um dos traços fundamentais da sociedade moderna a partir da revolução industrial, com repercussões não apenas na dimensão económica da vida moderna, mas atingindo também seus aspectos sociais e simbólicos. Trabalho e interação são as duas formas centrais de organização da sociedade. O trabalho estrutura a dimensão produtiva e a interação dos processos de socializacão e comunicação da sociedade através da linguagem.3 A crescente automação do trabalho e o desenvolvimento da especialização flexível são elementos poupadores de trabalho na medida em que repercutem diretamente no número de postos de trabalho disponíveis. O que não significa que o tempo de trabalho venha a diminuir pois aqueles que conseguem emprego em um mercado cada vez mais competitivo, assumem cada vez mais tarefas, processo simultâneo ao aumento do desemprego estrutural, que

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elimina definitivamente postos de trabalho mesmo em períodos de "crescimento económico".

A ideia de fim da sociedade do trabalho é, no entanto, controvertida, uma vez que se observa, simultaneamente, o crescimento de postos de trabalho precarizados em todo o mundo. A precarização do trabalho4 vem criando uma nova classe trabalhadora responsável pelo trabalho menos qualificado e cada vez mais desprotegido do ponto de vista legal. Há, de um lado, a pre-carização cada vez mais generalizada, e, de outro, um setor qualificado bastante restrito a um número cada vez menor de trabalhadores - muitos deles altamente qualificados - mas também sujeitos a um processo de exploração marcado por longas e estafantes jornadas, pressões por produtividade e dessindicalização, fenô-menos responsáveis pelo crescimento do assédio moral no trabalho, aumento das doenças - sobretudo as de natureza psíquica, alcoolismo, drogas, desestruturação familiar - ou mesmo a morte por excesso de trabalho: a morte súbita ou karoshi, termo utilizado no Japão após o advento do toyotismo.5

Este processo precisa ser compreendido no amplo contexto da crise mundial do capitalismo iniciada na década de setenta, que Immanuel Walerstein define de forma mais precisa como depressão.6 Após os trinta anos dourados do capitalismo, marcados pelo advento do Estado de bem-estar social, que se iniciaram com o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, o sistema eco-nômico internacional não conheceu um novo período de crescimento econômico, criação de empregos e distribuição de renda com semelhante pujança, principalmente na Europa e Estados Unidos, afetando o mundo inteiro, inclusive e até mesmo com maior impacto, os países em desenvolvimento. As duas crises do petróleo, a "diplomacia do dólar forte"7 com o respectivo rompimento dos acordos de Bretton-Woods, a financeirização do capitalismo8 e a crise imobiliária9 contribuíram para o aprofundamento da crise do Estado de bem-es-tar, marcando o início de uma virada política cujo alvo é a classe trabalhadora mundial e seus direitos.

Desta forma, a depressão tem levado o capitalismo mundial a estimular diversas formas de desregulamentação do trabalho ao mesmo tempo que facilita a circulação do capital no mundo, dando origem a uma nova acumulação primitiva10 como meio de enfrentar a crise através de processos de financeirização da economia.11 Nestas últimas décadas, a existência de pequenos focos de crescimento econômico e maior pujança do mercado de trabalho sempre se limitou a pequenos períodos e a determinados espaços geográficos, numa dialética que nunca foi capaz de colocar o sistema econômico mundial em um novo ciclo de desenvolvimento.12 Como observa David Harvey, o capitalismo não resolve suas crises, apenas as desloca geograficamente.13 A crise de 2008 é, na verdade, apenas uma crise dentro da crise, ou melhor, dentro do processo depressivo que já dura quatro décadas. Mas é mais do que isso. É a crise da estratégia utilizada pelo capital para enfrentar a crise que se originou muito antes. A desregulamentação do mercado de trabalho não foi abandonada, ao contrário, tem sido aprofundada como vemos no Brasil, mas o enfrentamento da crise obrigou os Estados a deixar de lado a ortodoxia não intervencionista do neoliberalis-mo em alguns aspectos, principal arma ideológica de enfrentamento da crise desde os anos setenta.

Neste sentido a globalizacão pode ser vista agora, depois de dez anos de crise, como um processo

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de enfrentamento da crise do capitalismo, mas que se exauriu em 2008. É difícil definir globalização e a literatura sobre o tema é ampla e divergente. O fenómeno não é novo, como demonstra José Eduardo Faria, mas assume nova feição pelas possibilidades de restrição de espaço e tempo propiciadas pela revolução tecnológica, permitindo maior possibilidade de produção e uso da informação de forma instantânea, em proporções inédi-tas.14 O autor considera que o fenómeno está intimamente ligado ao advento da sociedade informacional e às estratégias de superação da crise iniciada nos anos setenta do século XX, desembocando em movimentos transnacionais de capital, com hipertrofia do mercado financeiro e reorganização radical da divisão internacional do trabalho marcado por diferenças de produtividade e custos de produção existentes entre países industrializados e em desenvolvimento.15

A globalização também pode ser vista a partir de três prismas diferentes que se conjugam. A globaliza-cão hegemónica ou liberal é a globalização como ela se desdobra de fato, a globalização como perversidade. A globalização como fábula apresenta um mundo que encurta distâncias e homogeiniza o planeta quando, na verdade, as desigualdades aumentam.16 A outra globa-lização17, ou globalização contra-hegemónica,18 surge da reação dos excluídos e de formas alternativas de trabalhar, produzir e fazer política e ainda se encontra em processo de formulação. É neste contexto que se observa o surgimento de um novo internacionalismo operário que pode modificar as tendências anticiviliza-tórias em curso.19

Como se sabe, a ideia de autonomia do mercado e declínio do Estado difundida pelo neoliberalismo não passa de um mito.20 As chamadas "reformas para o mercado", desde os anos oitenta do século XX, sempre tiveram o Estado como um indutor central.21 Já nos anos setenta, o fim do padrão ouro nos Estados Unidos, o rompimento dos acordos de Bretton-Woods e a desregulamentacão dos mercados financeiros, deram os primeiros impulsos para o processo de globalização. A guerra contra os sindicatos, decretada por Margaret Tatcher no início dos anos oitenta fincou a outra estaca necessária para enfrentar a crise a partir dos interesses do capital.

O neoliberalismo articula desregulamentação dos mercados financeiro e do trabalho com forte intervenção no plano social, gerando uma tendência de criminalização da pobreza e hiperencarceramento. A substituição do Estado social pelo Estado penal.22 Neste cenário, revela-se um controle ambíguo dos processos imigratórios internacionais. O aumento da repressão em relação aos imigrantes e a complacência com o recrudescimento da xenofobia, vem acoplada à aceitacão parcial dos movimentos migratórios. O imigrante pode se constituir em um elemento chave para a reestruturação do mercado de trabalho nacional, aumentando a oferta de mão de obra precarizada em setores em que o trabalhador nacional normalmente prefere não se enquadrar. Como veremos abaixo, no caso de Portugal, o estímulo à entrada de imigrantes está fortemente ligado ao envelhecimento da população naquele país, mas também à fuga do trabalhador português para outros países da Europa. De todo modo, "fechar os olhos" para a imigração ilegal e desenvolver iniciativas para favorecer a imigração e integrá-los ao mercado de trabalho nacional mostra a ambiguidade de um processo que acaba estimulando uma queda geral no valor do trabalho em determinado mercado.

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