Migrações e trabalho na construção jurídica internacional

AutorFrancesca Columbu
Páginas31-40

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Francesca Columbu1

1. O estado atual do fenômeno migratório

Desde seus primeiros registros, a história retrata o fenómeno migratório como o deslocamento de indivíduos de um determinado território, ou país, para outro, à procura de melhores condições de vida. Existe um antigo brocardo jurídico, citado sempre nas primeiras lições de direito, que diz: ubi societas ibi ius. Poderíamos facilmente adicionar a tal regra a expressão ibi migrationes.

Não obstante o fenómeno migratório seja inerente à humanidade - no sentido que sempre a caracterizou desde o seu surgimento -, referido movimento de pessoas de um território para outro apenas adquire significado jurídico, político e social de dimensão "in-ter-nacional" após, evidentemente, o surgimento dos Estados-nação e do conceito de soberania estatal2.

O momento no qual, atravessando a fronteira nacional, a pessoa adentra outro Estado, desencadeia numerosas consequências jurídicas e, por óbvio, políticas e sociais. Tais consequências têm um carácter prismático uma vez que atingem não apenas distintas dimensões sociais, mas, também, dois diferentes níveis jurídicos: o plano do direito interno (do Estado de origem e do Estado de destino) e o plano do direito internacional das dimensões supracitadas.

As migrações, após a globalização da economia e do trabalho, intensificaram-se significativamente e representam atualmente a parcela principal da agenda política internacional. Neste momento, quase todos os países do mundo são atravessados pela migração, quer como países de origem, quer por serem países de trânsito, países de destino ou, frequentemente, territórios que apresentam a simultânea presença dessas três situações.

Em 2015 a ONU estimou que a população migrante era composta por cerca de 2443 milhões de pessoas (que corresponde a 3,3% da população mundial). Quer dizer que a cada trinta pessoas no mundo, uma é migrante. À luz das taxas registradas nos últimos 15 anos - caso estas permaneçam inalteradas -, a ONU prevê

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que o número da população migrante em 2050 alcançará os 469 milhões4.

Como ressalta recente pesquisa, em apenas duas décadas (entre 1997 e 2016) o número de migrantes forçados no mundo duplicou, saltando de 33,9 milhões para 65,6 milhões. Esse aumento vertiginoso se deve, principalmente, ao conflito sírio (65% da população síria é dividida entre pessoas deslocadas internamente e refugiados no exterior) por um lado, e de outra via 40 conflitos armados deslocados no mundo. Em 2016, dos 65,6 milhões de migrantes forçados no mundo, 17.187.488 eram refugiados, sendo que metade deles encontrava-se na Ásia (50,1%), um terço na África (32,2%), 13,4 na Europa e o 4,4% restante entre as Américas e a Oceania. Destes 65,6 milhões, 2.826.508 eram requerentes de asilo, de modo que 40% encontravam-se na Europa, 20% na América do norte, 19% na África, 16,6% na Ásia e 1,1 na Oceania. Entre um total de 40.300.000 deslocados internos, 7,4 milhões estão na Colómbia, 6,3 milhões na Síria e 3,6 milhões no Iraque. Finalmente, 5.300.000 são os refugiados e deslocados internos palestinos sob o mandato da UNRWA das Nações Unidas5. É importante ressaltar que, ao contrário do que se pensa comu-mentemente, 14,5 milhões de refugiados (84%) vivem em países em desenvolvimento6.

Evidentemente estamos assistindo ao maior movimento migratório que já foi registrado na história. Com certeza a citada globalização - sempre mais intensa e desenfreada -, a presença ainda constante dos conflitos e persecuções espalhados pelo mundo inteiro, as mudanças e catástrofes ambientais e o drama constante das desigualdades sociais entre as populações do mundo, são as principais razões.

De fato, como salienta a doutrina italiana, "o fenómeno da migração não é uma emergência, mas um fato estrutural e irrefreável, que envolve centenas de milhões de pessoas, está crescendo constantemente e está destinado a crescer indefinidamente"7.

Um dado extremamente importante para os fins da presente análise é representado pelos números relativos à migração laboral. As mais recentes estimativas8 disponíveis sobre o número de trabalhadores migrantes internacionais se baseiam nos dados de 2013. Na época, o número de migrantes a trabalho era de 150,3 milhões, ou seja: dois terços do número total de migrantes internacionais (232 milhões de pessoas). A análise se apresenta ainda mais interessante se olharmos para a porcentagem em idade de trabalho (acima de 15 anos) representada por 207 milhões de pessoas. Em termos absolutos, atualmente os trabalhadores migrantes representam mais de 70% do valor total das migrações.

Tais cifras se tornam ainda mais relevantes numa visão de perspectiva. Em 2015 a população em idade laboral atingiu os 4,8 bilhões e, de acordo com as proje-ções da ONU, superará os 6 bilhões em 2050 (+ 26,9%) e os 6,7 bilhões em 2100 (+ 38,3%)9. No entanto, considerando os países individualmente, a ONU prevê que, por um lado, em virtude da progressiva queda da taxa de natalidade, um número cada vez maior vai enfrentar uma contração dramática da população em idade laboral; e, por outro lado, um número cada vez menor de países registrará o aumento da sua população em idade laboral.

Manifestamente infundados aparecem, portanto, os alertas frequentemente lançados nos países de elevada imigração, onde associa-se o fenómeno migratório a um conjunto de consequências fruto do preconceito e de um difuso discurso xenófobo: pressões dos clandestinos, no mercado de trabalho, que concorrerão com os nacionais; crescimento da demanda por serviços públicos de saúde, educação etc; incremento do subemprego e do setor informal da economia; redução dos salários dado o aumento da mão de obra; fuga de divisas com remessas efetuadas por esses clandestinos para seus países de origem; aumento de delitos e de perturbação à ordem e redução da segurança em geral. Os dados acima expostos demonstram exatamente o contrário, indicando a recíproca (e urgente) necessidade, inerente aos países de imigração e emigração, de reequilíbrio dos respectivos mercados de trabalho e economias no sentido de garantir a justiça global efetiva.

Pois, como ressaltado: "no futuro, como já se verifica no presente, as migrações estão chamadas a desenvolver

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ainda um papel reequilibrador das diferenças econômicas e demográficas que se apresentarão nos vários países do mundo. Ou, caso o crescimento econômico não seja suficiente para suportar as necessidades determinadas pelo aumento da população, a ausência de equilíbrio produzirá novos conflitos, internos e externos aos Estados, gerando inevitavelmente fluxos migratórios até maiores e em condições de extrema vulnerabilidade com relação aos direitos humanos e à exploração"10.

A última parte do presente estudo é dedicada justamente à análise do direito do trabalho como ve-tor axiológico de justiça das migrações como essencial instrumento de inclusão e integração da pessoa na sociedade. O trabalho representa, neste sentido, o salvo conduto do imigrante não apenas porque é, na maioria dos casos, condição para permanência em condição regular no país de destino, mas principalmente porque é conditio sine qua non de inclusão e participação democrática na sociedade que o acolhe. O trabalho, neste sentido, representa a chave de acesso à dignificação das relações humanas.

2. As migrações na construção histórico-jurídica internacional

A migração internacional representa um fenómeno extremamente complexo, constituído por um feixe de aspectos interligados (económicos, sociais e laborais, entre outros) que dão lugar a uma trama intrincada de relações jurídicas de difícil enquadramento.

Na realidade, conforme nos explica Ferrajoli11, o mais antigo dos direitos naturais e ao mesmo tempo "esquecido" hoje pela civilização ocidental é representado pelo ius migrandi (ou direito de emigrar). Tal direito foi concebido pelo teólogo espanhol Francisco de Vitoria na exposição "Relaciones de Indis", em 1539, na Universidade de Salamanca. De Vitoria teorizou o ius migrandi como um direito natural universal, base do então nascente direito internacional moderno. De especial interesse é o texto do De Vitoria, que, claramente elaborado com a única finalidade de legitimar a colonização espanhola do "novo mundo", traz uma primordial visão "cosmopolita" das relações entre os povos12.

Na realidade é próprio da tradição liberal clássica conceber o ius migrandi como direito fundamental. John Locke, neste sentido, descreve o direito de migrar como oriundo da ligação entre autonomia individual, trabalho, propriedade gerada pelo trabalho e sobrevivência. Esta é uma passagem fundamental uma vez que se constrói o conceito de direito de migrar como direito, e, portanto, capaz de legitimar o próprio capitalismo13.

É com o surgimento do Estado moderno e dos confins nacionais da soberania que a questão das migrações começa a adquirir preocupação jurídica. Ao longo da história moderna a relação do direito com o deslocamento geográfico do ser humano se caracterizou por diferentes abordagens. José Carlos Jarochinski Silva14 identifica cinco momentos que marcaram a evolução das diferentes formas de tratamento dadas ao fenómeno migratório por parte dos Estados: o colonialismo; a industrialização; a primeira metade do século XX; a regulação soberana dos fluxos e a criação de passaportes e vistos. O colonialismo, como expansão migratória europeia pelo mundo, não possui, segundo o autor, caráter internacional por ser um movimento não em direção de "outro" Estado, mas direcionado a alcançar territórios da própria dominação.

Sucessivamente, com o advento da industrialização assistimos à interligação entre as migrações e a procura de mão de obra. Na verdade, a relação entre migração e trabalho é presente antes da primeira industrialização (a...

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