Trabalhadores migrantes na legislação mercosulina

AutorJosé Francisco Siqueira Neto
Páginas158-169

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José Francisco siqljeira Neto1

1. Introdução

Ao contrário do que acontece com a clássica liberdade de locomoção, restrita ao interior do território de um Estado nacional, há uma outra liberdade de movimento decorrente das migrações, sejam nacionais ou internacionais.

A emigração e imigração de pessoas consequentemente, afeta o mundo do trabalho, especialmente quando o estrangeiro é empregado para realizar tarefas no território de outro Estado do qual ele não é nacional. Em muitos casos, esses estrangeiros se encontrarão sob a proteção de um regime ou status legal especial, como por exemplo, encarregados do cumprimento de tarefas nas representações diplomáticas ou consulares de seus Estados, sujeitas a normas específicas de direito internacional ou, refugiados, que escapam de seus países por razões políticas, étnicas ou religiosas ou catástrofes ambientais.

Porém, quando esses casos especiais de proteção internacional não ocorrem e a pessoa deixa voluntariamente o território de cujo Estado é nacional, para trabalhar em outro território, essa situação enquadra-se no chamado "emprego migrante".

A OIT estimou que, para 20052, o número total de trabalhadores migrantes no mundo era de aproximadamente 191 milhões de pessoas que residem - ou não - em um país que não é deles. Estudos da ONU falam de 170 milhões, contando migrantes irregulares, mais difíceis de detectar estatisticamente e muito mais economicamente e legalmente vulneráveis3.

O principal obstáculo com que o exercício pleno da liberdade de circulação de pessoas é a regulamentação dos fluxos migratórios por cada Estado nacional. Sempre foi admitido, como um dos atributos derivados da soberania dos Estados, o poder de decidir a admissão de estrangeiros em seu território e estabelecer as condições e requisitos para a referida entrada e/ou permanência, com limitações e até proibições. A posição tomada por um Estado contra o direito à emigração (saída de nacionais ou habitantes do seu território) ou à imigração (entrada de estrangeiros) é conhecida como "política de migração".

Nos últimos anos e como consequência da chamada globalização, houve uma aproximação notável entre os Estados da comunidade internacional. Isto é confirmado pelo aumento dos Estados na ONU e suas agência, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), que recentemente incluiu países como a China, cujas consequências da admissão ainda não são claras.

De outro lado, são criados mecanismos "defensivos" pelos Estados, no surgimento progressivo de comunidades regionais (União Africana, Mercosul) que, sob os valores de integração defendidos pela ONU e OMC, buscam reduzir as diferenças e unir forças para entrar no sistema de comércio mundial em condições de paridade. Em maior ou menor grau, todos estes processos de integração afetam a vida das pessoas; é o que é chamado de dimensão social da globalização.

Em geral, os processos de integração são desenvolvidos em três eixos principais: a desregulamentação

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aduaneira (redução ou eliminação de tarifas); o reconhecimento da liberdade de circulação de capitais; e a circulação de pessoas.

As desregulações aduaneiras, que por si só causam o jogo da concorrência transnacional livre, têm como efeito o fechamento de empresas menos competitivas, para beneficiar aqueles que conseguem colocar produtos a preços mais baixos. Como resultado, alguns trabalhadores perderão seus empregos.

A livre circulação de capital gera o estabelecimento especulativo nos locais nos quais podem produzir a um custo menor. Quando a situação económica torna a produção mais cara, ocorrem fechamentos desses estabelecimentos, com a consequente extinção de empregos. Um exemplo claro: as empresas de "maquila", uma expressão que vem da palavra "maquiagem" e alude ao processo de finalização manual do produto para o qual é necessário pessoal não qualificado ou de baixa escolaridade. As empresas de maquila criam empregos precários em outros países ao preço da redução de trabalho por conta própria: a empresa-mãe fornece equipamentos e matérias-primas, e o país anfitrião fornece mão de obra.

Efrén Córdova4 salienta que o arranjo é sempre benéfico para a empresa que estabelece a maquila. O efeito típico é pagar os salários mais baixos possíveis e negligenciar os aspectos de segurança e higiene e proteção do meio ambiente. Acrescenta que 105 das 3.300 maquiladoras existentes ao longo da fronteira EUA-Mé-xico geram US $ 5 bilhões por ano; mas quase 90% da força de trabalho são mulheres mal remuneradas.

A livre circulação de pessoas também gera consequências sociais, muitas vezes derivadas de assimetrias monetárias. Os trabalhadores que migram para outro território, mesmo que temporariamente, ganham menos do que a renda nacional, mas são significativos em seu país de origem, por causa de diferenças monetárias. Essas situações afetam o mercado de trabalho do país que recebe trabalho estrangeiro, tornando seus trabalhadores menos competitivos e reduzindo os níveis salariais.

No âmbito do Mercosul, o art. 1 do Tratado de Assunção estabelece em sua primeira parte que "Este Mercado Comum implica: a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre países...". A escrita é muito importante; o viés predominantemente económico é óbvio: a liberdade de movimento das pessoas não é expressamente declarada, como foi e é o caso, por exemplo, da maioria dos documentos de integração europeia.

É necessária uma interpretação literal do texto para ver como as pessoas incluídas na fórmula, não como seres humanos, mas como "fatores produtivos". A legalidade migratória "não só faz o cumprimento da norma, mas também os princípios que as sociedades contemporâneas assumiram como valores básicos", escreve correta-mente Paula C. Sardegna5; e, sem dúvida, um desses princípios é que a pessoa humana do trabalhador não é uma mercadoria, nem é apenas um fator produtivo.

De qualquer forma, a livre circulação do trabalho, como fator de produção e serviços, torna-se um elemento inerente à ideia do mercado comum. Este conceito implica - como expressa o mesmo texto do Tratado de Assunção - a eliminação de todos os tipos de restrições às migrações de trabalhadores no território dos quatro fundadores do Mercosul; e fundamentalmente que os trabalhadores de qualquer desses países devem ter o mesmo tratamento da mão de obra nacional em qualquer um dos outros, sem qualquer discriminação. As únicas exceções permitidas a esse princípio geral devem basear-se em funções de segurança pública, moralidade e saúde pública.

Essa livre circulação de pessoas, como contribuintes de serviços ou fatores de produção, significa basicamente o reconhecimento e implementação normativa de três outras liberdades: a) de circulação de trabalhadores assalariados; b) de prestação de serviços ou "liberdade de atividade profissional"; e c) de estabelecimento ou "liberdade de atividade comercial", para pessoas físicas e jurídicas6.

O exercício destas liberdades requer, antes de mais, uma atividade normativa dos Estados membros, por meio da qual se reconhece reciprocamente aos nacionais de qualquer Estado parte um estatuto jurídico diferente do que corresponda a outros estrangeiros. A experiência europeia resolveu essa questão desde o Tratado de Maastricht de 1992 com a criação de uma "Cidadania da União Europeia", complementar à do país

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de origem. No nosso caso, qualquer solução exigirá o pleno cumprimento das seguintes condições:

  1. acesso gratuito para trabalhadores que vivem em qualquer um dos países membros do Mer-cosul, para ofertas de trabalho em qualquer um deles;

  2. eliminação progressiva dos obstáculos ao acesso a determinados empregos por trabalhadores não nacionais;

  3. em matéria de exercício de profissão ou comércio, reconhecimento recíproco de títulos pela autoridade competente de qualquer dos Estados membros do Mercosul;

  4. harmonização e simplificação dos procedimentos para obter a autorização de residência dos migrantes comunitários;

  5. facilitação das condições de permanência no país em caso de rescisão do contrato de trabalho por morte, invalidez ou aposentadoria;

  6. reconhecer as contribuições para a segurança social feitas no país anfitrião, para se aposentar em qualquer outro país, devendo ser objeto de um acordo especial.

Faremos uma referência sucinta ao processo na Comunidade Europeia, levando em consideração a utilidade relativa que pode ser extraída dessa experiência integradora e depois analisaremos o progresso alcançado até agora nos países do Mercosul, onde ainda há muito a ser feito.

2. A circulação dos trabalhadores na união europeia

A partir das reformas decorrentes do Tratado de Maastricht em 1992, a "cidadania da União" foi criada com o objetivo de "reforçar a proteção dos direitos e interesses dos nacionais dos seus Estados membros" (Título I, Artigo B) do Tratado). A "Cidadania Europeia" foi conferida pelo Tratado aos nacionais de todos os Estados membros. Para o art. 7º foi estabelecido que a Comunidade adotaria as medidas destinadas a estabelecer gradualmente um mercado interno que implicaria "um espaço sem fronteiras internas, no qual a livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capital será garantida de acordo com as disposições deste Tratado".

No art. 8º o direito do cidadão da União de se deslocar e residir livremente no território dos Estados membros foi reconhecido, prevendo igualmente o direito de voto no Estado-Membro de residência. Mais tarde, em 1997 o Tratado de Amsterdã...

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