O residente fronteiriço e a experiência da casa do migrante na tríplice fronteira: reflexões a partir da agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável

AutorCarolina Spack Kemmelmeier - Manoela Marli Jaqueira
Páginas170-180

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Carolina Spack Kemmelmeier1

Manuela Marli Jaqueira2

1. Introdução

O ponto central para a construção desta pesquisa se encontra no reconhecimento da Tríplice Fronteira -Foz do Iguaçu (Brasil); Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazu (Argentina) - como espaço dotado de singularidades e de interdependências, as quais contribuem para a compreensão da realidade migratória e dos específicos processos de vulnerabilidade dos trabalhadores migrantes, com especial ênfase para a categoria o residente fronteiriço.

Para tanto, analisa-se a atuação da Casa do Migrante, localizada na cidade de Foz do Iguaçu, no período de 2009 a 2017, pela perspectiva da construção de políticas públicas pautadas pelo reconhecimento da vulnerabilidade do migrante nos termos propostos pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização da Nações Unidas (ONU).

Essa linha de análise, considerando a inserção dessa região de fronteira no âmbito do Mercosul, também deve compreender esse processo como parte integrante de questões como livre circulação de trabalhadores e tratamento não discriminatório como dimensão social dos processos de integração regional. Dimensão essa que tem potencial significativo para avanços na concretização dos objetivos e metas da Agenda 2030.

A partir dessa contextualização teórica, são analisados os dados relativos aos atendimentos prestados pela Casa dos Migrantes e consequentemente possíveis contribuições desse projeto como parte integrante de uma política pública voltada para a concretização de direitos fundamentais e de direitos humanos relacionada à mobilidade de trabalhadores de diferentes nacionalidades nas regiões de fronteira, sobretudo naquelas que também integram o Mercosul.

2. A vulnerabilidade do trabalhador migrante na perspectiva da agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável da onu

A categoria trabalhador migrante3 é o ponto de partida para a construção do problema dessa pesquisa. Por se encontrar em um país diverso daquele de sua nacionalidade, caracteriza-se juridicamente como estrangeiro. Isso significa - jurídica, social e culturalmente - o

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"não pertencimento a um grupo de referência determinado", nesse caso, os nacionais de um Estado. Essa percepção do estrangeiro como um não pertencente e, consequentemente, como o Outro, pode desempenhar função legitimadora para a depreciação e exclusão, bem como reforçar a unidade do grupo que repele o diferente.4

Norbert Elias, em sua análise sobre as relações sociais entre os estabelecidos e outsiders concluiu que "quase todos os grupos humanos tendem a perceber determinados outros grupos como pessoas de menor valor do que eles mesmos"5. Conforme o autor, a atribuição de um valor humano inferior a outro grupo consiste em uma das formas de manutenção de uma suposta superioridade social e que esse estigma social influi na au-toimagem do outro grupo, de modo a enfraquecê-lo.6

Vale observar que o trabalhador migrante, além da condição de estrangeiro é o Outro que permanece e que, justamente por essa continuidade, segundo parte da opinião pública, se transforma, além de estranho, outsider, em intruso e usurpador. Esses atributos negativos são agravados caso exista a conjugação da condição de migrante à de pobreza.7

Costas Douzinas, explicita essa dinâmica, a partir da aproximação da concepção psicanalítica do Outro nas relações interpessoais com a relação estrangeiro--Estado. Na teoria psicanalítica, a separação da mãe, o sentimento da falta e o reconhecimento da alteridade são experiências centrais para a construção do sujeito. Essas experiências, além de fundarem a subjetividade, representam um trauma e a criação de um imaginário de completude.8

Para o autor, a separação e diferenciação de outras nações, também "introduzem uma falta no coração da república, que não pode ser completamente representada ou manejada e sempre retorna, em forma de xenofobia e racismo, de ódio e discriminação" enquanto a política permanece "inventando mitos e celebrando uma unidade fictícia" .9 Nessa análise, o estrangeiro se constitui para o Estado-Nação como pré-condição política, assim como o Outro é a pré-condição da identidade e "coloca em xeque as reivindicações de universalização dos direitos humanos".10

Cristina Maria Sbalquero Lopes propõe, para além dessa conotação negativa e das relações de exclusão, a possibilidade de atribuição de sentido positivo aos fluxos migratórios de trabalhadores. Esse seria possível diante do reconhecimento pelo Estado e pela sociedade que recebe o migrante da prática de um ato de coragem do sujeito ao inserir-se em outra comunidade e relacio-nar-se com o desconhecido. Igualmente, seria possível essa inversão de valores diante da desconstrução do discurso sobre as migrações como custos e uma releitura a partir dos benéficos que esse contato e interação com o diferente poderiam propiciar.11

Deisy Ventura e Paulo Ellis identificam essa dialé-tica a respeito da condição jurídica dos migrantes nos seguintes termos: "Há essencialmente dois enfoques no modo como os governos tratam os imigrantes: como trabalhadores ou como estrangeiros. Se a condição de trabalhador evoca os direitos humanos - em particular, os direitos sociais, políticos e culturais -, o rótulo de estrangeiro pode trazer estranhamento ou até hostilidade. Na prática, as abissais desigualdades na distribuição da riqueza mundial, a subsistência ou o agravamento de numerosos conflitos armados, e, mais recentemente, as mudanças climáticas, fazem com que o fenómeno migratório deva-se, sobretudo, à busca de trabalho e de vida digna.12

É nessa perspectiva dual, portanto, que se insere a dimensão jurídica do trabalhador migrante. De um lado, tem-se a afirmação de que a admissão e permanência do migrante em determinado território consiste em prerrogativa soberana do Estado, garantida pelo princípio da autodeterminação coletiva e consubstanciada por meio de normas jurídicas próprias. De outro,

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valores afirmados no plano do Direito Internacional e Constitucional relativos à dignidade humana que deveriam ser respeitados pelos Estados independentemente de critérios de nacionalidade ou de entrada regular do estrangeiro.

Diante desse cenário, a migração internacional no século XXI destaca-se, não pelo ineditismo do fato em si, mas pelos embates entre a perspectiva pró-direitos presente no cenário dos Direitos Humanos e a postura político-jurídica restritiva dos Estados a respeito da mobilidade humana.

Essa perspectiva pró-direitos é visível, por exemplo, na posição da Organização Internacional para Migrações da ONU: "A migração é umas das questões definidores do século XXI. Ela é agora um componente essencial, inevitável e potencialmente benéfico para a vida económica e social de cada país e região. A questão não se apresenta mais nos termos sobre aceitar a migração, mas sim sobre como administrar efetivamente a migração de forma a aumentar seus impactos positivos e reduzir os impactos negativos)13

A perspectiva pró-direitos é reforçada significativamente na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU (2015), nos seguintes termos: "Reconhecemos a contribuição positiva dos migrantes para o crescimento inclusivo e o desenvolvimento sustentável. Reconhecemos também que a migração internacional é uma realidade multidimensional de grande relevância para o desenvolvimento dos países de origem, de trânsito e de destino, o que exige respostas coerentes e globais. Iremos cooperar internacionalmente para garantir uma migração segura, ordenada e regular que envolve o pleno respeito pelos direitos humanos e o tratamento humano dos migrantes, independentemente do status de migração, dos refugiados e das pessoas deslocadas. Essa cooperação deverá também reforçar a resiliência das comunidades que acolhem refugiados, particularmente nos países em desenvolvimento. Destacamos o direito dos migrantes de regressar ao seu país de cidadania, e recordamos que os Estados devem assegurar que os seus cidadãos nacionais que estão retornando sejam devidamente recebidos"14

Observa-se nitidamente o distanciamento da ONU do enfoque das migrações como uma questão de segurança, ao enfatizar aspectos como: contribuição positiva dos migrantes para o desenvolvimento sustentável; relação direta entre dever de garantia de uma migração segura e pleno respeito aos direitos humanos e tratamento humano dos migrantes, independentemente do status jurídico do deslocamento.

Entre os objetivos e metas da Declaração, desta-cam-se o objetivo 8 e o objetivo 10 quanto ao tema das migrações.

O objetivo 8 trata do compromisso de "promover o crescimento económico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos". Como parte do crescimento económico inclusivo e sustentável e do trabalho decente, a meta 8.8 indica que este compreende "Proteger os direitos trabalhistas e promover ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores, incluindo os trabalhadores migrantes, em particular as mulheres migrantes, e pessoas em empregos precários" (grifo nosso). 15

O objetivo 10, por sua vez, trata do dever de reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles. Nesse escopo, a meta 10.7 inclui como parte da redução das desigualdades "Facilitar a migração e a mobilidade ordenada, segura, regular e responsável das pessoas, inclusive por meio da implementação de políticas de migração planejadas e bem geridas"16

Além disso, a Agenda 2030 remete expressamente, na meta 8.b, à implementação do Pacto Mundial para o Emprego da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Este foi adotado na 98º Conferência da OIT (2009) e se apresenta...

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