Fluxos migratórios de refugiados: vítimas em situação de vulnerabilidade na legislação penal que criminaliza o tráfico de pessoas

AutorCláudio Macedo de Souza
Páginas214-221

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Cláudio Macedo de Souza1

1. Introdução

O artigo tem como objetivo interpretar a legislação penal a partir da ideia de que a proteção das vítimas em situação de vulnerabilidade é princípio geral que deve regular o movimento migratório dos refugiados contra o tráfico de pessoas para fins de submissão à escravidão ou à servidão. A OIT - Organização Internacional do Trabalho e suas Convenções instituíram o Trabalho Decente como objetivo de todas as suas políticas. Para o propósito do texto aqui apresentado, Trabalho Decente é princípio que decorre do princípio geral de tutela das vítimas vulneráveis, porque objetiva eliminar todas as formas de trabalho forçado impostas aos refugiados para que a sua dignidade seja restabelecida. É princípio especial no enfrentamento dos desafios do tráfico de pessoas que se utiliza dos fluxos migratórios involun-tários2 com o fim de reduzir refugiados ao trabalho análogo à escravidão.

Afirma-se, pois, que a noção de Trabalho Decente deve abranger a promoção de oportunidades para que refugiados possam exercer qualquer trabalho em condições de liberdade. O tráfico de refugiados para o fim de redução à condição análoga à escravidão ofende o Trabalho Decente, pois está na contramão da política instituída no âmbito da OIT. A repressão ao tráfico de pessoas para o fim de exploração por meio de trabalhos forçados, escravatura e práticas similares é um dos pontos que integram o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças.3 Observa-se que a preocupação com o princípio da dignidade humana de pessoas vulneráveis é política prevista em instrumentos internacionais; e, por isso, será determinante para a interpretação da legislação penal brasileira.

Nesse caso, a dogmática penal deverá ser aquela que impõe considerar a vulnerabilidade sob o ponto de vista da condição pessoal dos refugiados a fim de que a política da OIT baseada no Trabalho Decente se concretize. Nesse aspecto, o artigo se justifica porque contribui para a proteção integral da liberdade individual e, especialmente para a cultura de respeito aos direitos humanos dos refugiados em situação de tráfico. O respeito aos direitos humanos torna imperativa uma reflexão dogmática a respeito da legislação penal numa perspectiva garantista. Nesse sentido, a interpretação da lei penal requer uma abordagem garantista.

Proporcionado pelo substancial aumento de refugiados que passaram a viver em território brasileiro, o

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movimento migratório involuntário é o ponto de partida para a compreensão do tráfico de pessoas. Pois bem, par-te-se do pressuposto de que o tráfico de pessoas, realizado com diferentes propósitos, tornou-se, no século XXI, um problema de dimensões cada vez maiores, sobretudo, por conta do aumento do movimento migratório.

As atividades migratórias involuntárias são influenciadas por uma conjugação de fatores econômicos, políticos e sociais presentes tanto no país de origem como no país de destino. O fenômeno é complexo e assumiu definitivamente uma agenda política internacional e, também, doméstica de muitos países. Da mesma forma que os fluxos migratórios involuntários avançam, redes criminosas, organizadas além das fronteiras dos Estados Nacionais, incidem sobre grupos vulneráveis como ocorre com os refugiados.

O presente artigo surge nesse cenário alinhado às diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovada pelo Decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006; à Lei n. 13.445/2017 da Migração; à legislação penal brasileira e, aos Tratados e/ou Convenções Internacionais. Entretanto, é preciso acentuar que qualquer iniciativa de enfrentamento ao tráfico de refugiados terá como princípio o respeito à dignidade humana, tendo em vista que as condutas criminosas são praticadas contra vítimas em situação de vulnerabilidade.

Não resta dúvida de que a nova lei da migração (Lei n. 13.445/2017) contempla o refugiado, pois visa àquele que escapa do seu país motivado por uma situação de perigo para a sua vida. Para os que querem morar no Brasil, a lei estabelece o visto temporário, o oficial, o diplomático e, o visto de cortesia. O visto temporário pode ser concedido em dez situações diferentes. Entretanto, há uma situação que envolve a acolhida humanitária (letra c do art. 14 da Lei) e, que permite ao Brasil receber e regularizar a vida dos refugiados.

Segundo a lei, entram nessa categoria as pessoas de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses. Percebe-se que não se trata de uma migração voluntária, senão que involuntária, porque o refugiado é obrigado a deixar seu país por medo de ser perseguido.

Pois bem, não é um migrante qualquer; é um solicitante de refúgio e, por isso, encontra-se em situação de vulnerabilidade. Assim sendo, quando determinado refugiado é ofendido pelo tráfico de pessoas, ele não deve ser tratado pela dogmática jurídico-penal como uma vítima qualquer; senão que é indispensável que seja considerado um sujeito passivo vulnerável.

É sabido que além da exploração das vítimas na indústria do sexo, o crime visa ao trabalho sob condições abusivas, à mendicância forçada, à adoção ilegal, à servidão doméstica e à doação involuntária de órgãos para transplante. Essa variedade de propósitos por quem o pratica tornou a legislação penal insuficiente para reger o tráfico de pessoas. Essa insuficiência da normatividade penal prevista no art. 231 e no art. 231-A do CP foi percebida pelo legislador.

Ao criar o art. 149-A, ganhou destaque a publicação da Lei n. 13.344/2016 que, revogou os arts. 231 e 231-A que proibiam o tráfico de pessoas apenas em sua forma de exploração sexual4. Com a nova lei, o Brasil procurou harmonizar a legislação penal ao Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas5. Com a harmonização, outras formas de exploração (remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal) foram punidas. Isso representou inegável avanço na política de combate ao tráfico de pessoas, em consonância com o disposto no art. 3º do pacto internacional.6

A nova norma do art. 149-A do Código Penal trouxe pontos positivos, porque ampliou o conceito de tráfico de pessoas se comparado com o conceito previsto na revogada legislação penal. Ademais, ao harmonizar o Direito Penal interno, o legislador incluiu no caput do art. 149-A os meios de execução do crime, tais como a grave ameaça, a violência, a coação, a fraude ou o abuso, tudo em consonância com o previsto na letra a do art. 3º do Protocolo Adicional.7

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O Protocolo Adicional dispõe na letra b do art. 3º que o consentimento dado pela vítima é considerado irrelevante se o crime tiver sido executado por determinados meios. Observa-se que o conceito de irrelevância do consentimento é condicionado à utilização de específicos meios de execução. A irrelevância do consentimento significa que a liberdade individual protegida pela norma penal é um bem jurídico indisponível. De conseguinte, resulta que o consentimento não é permitido. A indisponibilidade do bem jurídico, neste caso, decorre da gravidade dos meios utilizados para a prática do crime.

Ao condicionar a irrelevância do consentimento à utilização dos meios de execução, o Protocolo Adicional leva-nos a deduzir, equivocadamente, que em algum momento o bem jurídico torna-se disponível. Ou seja, apenas para argumentar, se não fosse possível identificar o uso dos meios de execução pelo sujeito ativo, a exclusão do crime seria imperativa (dever de excluir a tipicidade penal) pelo consentimento do ofendido.

Entretanto, esta específica disposição expressa no Protocolo não relativiza o significado de irrelevância do consentimento, porque o princípio que deve reger a letra b do art. 3º é a indisponibilidade da liberdade individual. Ademais, não se pode esquecer que a tutela de pessoas em situação de vulnerabilidade é princípio geral que fundamenta o Protocolo Adicional8. Nesse caso, a indisponibilidade da liberdade individual não advém apenas da gravidade dos meios de execução, senão que principalmente da vulnerabilidade das vítimas.

Respaldado e atento a essa situação, o artigo apresentou a seguinte indagação: "Como o processo de interpretação da normatividade penal que proíbe o tráfico de pessoas para o fim de exploração por meio de trabalhos forçados, escravatura e práticas similares deverá desenvolver-se quando o sujeito passivo do crime for refugiado?" Para que a legislação penal brasileira esteja harmonizada com a política da Dignidade Humana e com o Trabalho Decente prevista em Tratados e em Convenções internacionais de direitos humanos, supõe-se que no processo de interpretação a tutela das vítimas em situação de vulnerabilidade deverá ser considerada princípio geral do tipo legal que criminaliza o tráfico de pessoas.

O texto encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, empreende-se uma abordagem que discute os reflexos da motivação econômica do crime para o conceito de vulnerabilidade. O tráfico de pessoas engloba praticamente todas as ações criminais motivadas pelo lucro. Por isso, afirma-se que a vulnerabilidade...

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