O futuro da norma internacional costumeira da imunidade de jurisdição do estado nos tribunais brasileiros após a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso 'Changri-lá'

AutorAna Cristina Paulo Pereira
Páginas337-353
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O FUTURO DA NORMA INTERNACIONAL COSTUMEIRA
DA IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DO ESTADO NOS
TRIBUNAIS BRASILEIROS APÓS A DECISÃO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL NO CASO “CHANGRI-
Ana Cristina Paulo Pereira
1
Resumo: O Supremo Tribunal Federal, no acórdão prolatado em
23/08/2021, referente ao caso “Changri-lá”, decidiu afastar a imunidade de
jurisdição da Alemanha para que a ação civil proposta pelos familiares de
uma vítima de um ato de guerra praticado pelas forças militares alemãs
durante a 2a guerra mundial possa ter continuidade em foro brasileiro.
Embora o acórdão vise o objetivo legítimo de reparar os danos causados,
o argumento de que a norma internacional costumeira da imunidade de
jurisdição do Estado teria evoluido para excepcionar as violações graves
de direitos humanos não convence. Por sua vez, e em última ratio, o direito
fundamental de acesso à justiça não justifica a violação da norma
internacional. A questão que se coloca é a de como conciliar o direito de
reparação das vítimas com o direito internacional de forma a não abalar o
equilíbrio e a convivência pacífica entre os Estados.
Palavras-chave: imunidade de juridição, crimes contra a humanidade,
acesso à justiça, caso Changri-lá.
1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Pará em 1986; mestre em Direito
Internacional Econômico e Comunitário pela Université de Toul ouse I em 1989; Doutora em
Direito pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) em 1996. Estágio Pós-Doutoral na
Middlesex Univeesity (Londres) de janeiro a julho de 2004. Pesquisadora visitante no TMC
Asser Institut (Haia Países-Baixos) de janeiro a julho de 2009 e na Universidad Complutense
de Madrid de setembro 2009 a fevereiro 2010. Membro do Conselho Científico do Congresso
Anual Brasileiro de Direito Internacional. Autora de vários livros e artigos nas áreas do direito
internacional público geral, direito internacional humanitário, direito internacional do comércio
e direito internacional do meio-ambiente. Professora titular de Direito Internacional Público da
Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
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1. Introdução
A saga judicial dos familiares de Deocleciano Pereira da Costa
chegou, em parte, a um final feliz no Brasil com o acórdão prolatado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em 23/08/2021, no Recurso
Extraordinário com Agravo (ARE) n.º 954858/RJ, o qual culminou com a
fixação da Tese de Repercussão Geral n. 944: os atos ilícitos praticados
por estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de
imunidade de jurisdição”.
Trata-se na ação original, que transita na 14º Vara Federal do Rio
de Janeiro desde 2006, de pedido de ressarcimento de danos materiais e
morais à República Federal da Alemanha (doravante Alemanha) pelos
familiares de um dos pescadores a bordo do navio pesqueiro “Changri-lá”,
bombardeado em julho de 1943 durante a 2ª guerra mundial, por um
submarino nazista quando se encontrava no mar territorial brasileiro,
segundo inquérito realizado pelo Tribunal Marítimo. Note-se que o Brasil
havia declarado estado de guerra com a Alemanha mediante o Decreto n.º
10.358 de 31 de agosto de 1942.
Embora a decisão final no caso concreto corrobore com o direito
internacional humanitário, o acórdão prolatado pelo STF, que inclusive
contraria o parecer da Procuradoria-Geral da República e a posição da
Advocacia-Geral da União, suscita perplexidade no tocante à
fundamentação, o que talvez explique sua adoção por maioria apertada do
plenário da Corte (6 votos a favor e 5 contra).
Certamente, como demonstra o acórdão, a norma costumeira da
imunidade de jurisdição do Estado evoluiu ao longo do tempo para aplicar-
se unicamente aos atos de império (jure imperi) e não mais aos atos de
comércio (jure gestionis), assunção essa consagrada no direito
internacional costumeiro.
Porém, salvo algumas legislações domésticas, mencionadas no
acórdão, e a Convenção Europeia sobre Imunidade de Jurisdição de 1972
que contemplam exceções à norma, não se pode afirmar que o atual direito
internacional público autorize os Estados a julgarem um Estado estrangeiro

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