Danos Extrapatrimoniais nas Relações de Trabalho: a Norma-Princípio de Indenizabilidade Irrestrita e a Impossibilidade de Interpretação Gramatical-Literal da 'Reforma Trabalhista

AutorPastora do Socorro Teixeira Leal e Igor de Oliveira Zwicker
Ocupação do AutorPós-Doutora pela Universidad Carlos III de Madrid/Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará
Páginas210-231
CAPÍTULO 20
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NAS RELAÇÕES
DE TRABALHO: A NORMA-PRINCÍPIO DE INDENIZABILIDADE
IRRESTRITA E A IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO
GRAMATICAL-LITERAL DA “REFORMA TRABALHISTA”
PASTORA DO SOCORRO TEIXEIRA LEAL
(1)
IGOR DE OLIVEIRA ZWICKER
(2)
1. INTRODUÇÃO
A Lei n. 13.467/2017, de 13.07.2017, intitulada “Reforma Trabalhista”, foi publicada no Diário Oficial da
União do dia 14.07.2017 e promoveu alterações substanciais na Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, além de modificar, igualmente, a Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
a Lei n. 8.036, de 11 de maio de 1990, e a Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, tudo sob o pálio e justificação de
“adequar a legislação às novas relações de trabalho”(3).
Entre outros pontos, a novel legislação acresceu o Título II-A à Consolidação das Leis do Trabalho, intitulado
“Do Dano Extrapatrimonial”, composto pelos arts. 223-A a 223-G.
Já no art. 223-A, a Consolidação das Leis do Trabalho, com redação dada pela “Reforma Trabalhista”, afirma
que se aplicam à reparação de danos de natureza extrapatrimonial, decorrentes da relação de trabalho, apenas os
dispositivos daquele Título, a intuir que, para tal matéria, a própria lei “vedou” a aplicação subsidiária ou supletiva
de outro conteúdo sistêmico do ordenamento jurídico.
O art. 223-B da Consolidação das Leis do Trabalho, com redação dada pela “Reforma Trabalhista”, reconhece
que causa dano de natureza extrapatrimonial “a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pes-
(1) Pós-Doutora pela Universidad Carlos III de Madrid; Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Bacharela e Mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará; Professora de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e
Doutorado) da Universidade Federal do Pará e da Universidade da Amazônia; Desembargadora do Trabalho Presidente do
Tribunal Regional do Trabalho da Oitava Região.
(2) Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará, aprovado em 1º lugar geral; Mestre em Direitos Fundamentais
pela Universidade da Amazônia, aprovado em 1º lugar geral; Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela
Universidade Estadual de Campinas; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido
Mendes; Bacharel em Direito e Especialista em Gestão de Serviços Públicos pela Universidade da Amazônia; Analista Judi-
ciário (Área Judiciária) e Assessor Jurídico-Administrativo do Tribunal Regional do Trabalho da Oitava Região; Professor de
Direito; autor do livro “Súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos do TST” (São Paulo: LTr, 2015); tem,
até 09.06.2019, noventa e seis (96) artigos jurídicos publicados, além de dezenas sobre Língua Portuguesa.
(3) Registre-se que a expressão, entre aspas, consta ipsis litteris na ementa da Lei n. 13.467/2017. Com efeito, a Lei Comple-
mentar n. 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o
art. 59, parágrafo único, da Constituição da República, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos, prevê,
no art. 3º, inciso I, que as leis serão estruturadas em três partes básicas; a parte preliminar compreende a ementa, a qual,
segundo o art. 5º da Lei Complementar, explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei.
Capítulo 20 • Danos Extrapatrimoniais nas Relações de Trabalho |211
soa física ou jurídica”, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação (há um problema nessa redação,
que parece excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão a direito de quem sofreu um dano por ricochete,
porém esse não será o foco deste trabalho).
Por outro lado, o art. 223-C da Consolidação das Leis do Trabalho, com redação dada pela “Reforma Traba-
lhista”, diz que a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer
e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física, a intuir que, para tal matéria, a
lei fixou um rol “taxativo” de bens imateriais juridicamente tuteláveis.
Posteriormente, o Presidente da República adotou, com força de lei, a Medida Provisória n. 808/2017, de
14.11.2017, publicada no Diário Oficial da União do mesmo dia (edição extra), a qual, embora mantendo a re-
dação do art. 223-A, modificou a redação do art. 223-C para estabelecer que a etnia, a idade, a nacionalidade, a
honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, o gênero, a orientação sexual, a saúde, o lazer e
a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa natural.
Em outras palavras, ampliou o rol de outrora, mas manteve a suposta “taxatividade” em relação a bens imate-
riais juridicamente tuteláveis.
Porém, a Medida Provisória n. 808/2017 perdeu sua eficácia, desde a edição, porque não foi convertida em
lei no prazo de que tratam os §§ 3º e 7º do art. 62 da Constituição da República, sendo que ainda não sobreveio,
sequer, o decreto legislativo para disciplinar as relações jurídicas ocorridas durante sua respectiva vigência, o que
pode resultar na submissão das relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a vigência
da Medida Provisória à disciplina normativa por ela estabelecida (art. 62, §§ 3º e 11, da Constituição da República).
Desse modo, se aplicada a literalidade dos arts. 223-A e 223-C da Consolidação das Leis do Trabalho – inter-
pretação literal-gramatical –, teríamos a seguinte situação: no tocante aos danos de natureza extrapatrimonial,
assim entendidos os decorrentes da ação ou da omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa natural,
decorrentes das relações de trabalho, somente seriam bens juridicamente tuteláveis, exclusivamente, a honra, a
imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física.
De outra banda, se aplicada a literalidade dos arts. 223-A e 223-C da Consolidação das Leis do Trabalho – inter-
pretação literal-gramatical –, o hermeneuta estaria adstrito “apenas” à própria Consolidação das Leis do Trabalho,
aparentemente admoestado a não aplicar nem o Código Civil e nem a Constituição da República, hipótese não
factível dentro do nosso Estado Democrático de Direito.
O que justifica, afinal, essa capitis diminutio no Direito do Trabalho? O que justifica essa diferença entre o
Direito do Trabalho e o direito comum, este último em patamar nitidamente superior de cidadania e dignidade,
em que pese a primazia do trabalho e a natureza jurídica das relações laborais? O que permite ao hermeneuta
concluir que o trabalhador não estaria mais envolto no manto de proteção constitucional, mormente à sua dig-
nidade, enquanto pessoa humana, e ao seu trabalho, que tem valor social – ambos fundamentos da República
Federativa do Brasil?
Buscaremos analisar tais inquietações a partir da exigência de coerência do sistema jurídico como exigência
de justiça, o que impõe que seja levado em conta o atendimento aos fins sociais e às exigências do bem comum,
com fundamento no resguardo e na promoção da dignidade da pessoa humana, matriz axiológico-normativa do
ordenamento jusconstitucional brasileiro e dos tratados internacionais de direitos humanos.
2. A CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, batizada de “Carta Cidadã”, foi revolucionária(4).
Diferentemente da Carta de Lei de 1824 – que mandou observar a Constituição Política do Império, oferecida e
(4) Revolucionária, mas tardia, como nos parece ser a tradição brasileira. Basta lembrar que Georg Jellinek (1851-1911), ao
comentar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789), em compasso com outros atos constitucionais
da época, disse o seguinte (destaque nosso): “Em todas essas Constituições, a declaração de direitos ocupa o primeiro lugar.
Somente em segundo lugar vem juntar-se o plano ou o quadro de governo” (JELLINEK, Georg. A declaração dos direitos do
homem e do cidadão: contribuição para a história do direito constitucional moderno [trad. Emerson Garcia]. São Paulo: Atlas,
2015. p. 95).

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