Regularização fundiária de ocupação em áreas ambientais e tutela judicial no Novo Código de Processo Civil

AutorEmerson Affonso da Costa Moura e Maurício Mota
Páginas191-149
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REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE OCUPAÇÃO EM ÁREAS
AMBIENTAIS E TUTELA JUDICIAL NO NOVO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL
REGULARIZATION OF OCCUPATIONAL ENVIRONMENTAL OCCUPANCY AND
JUDICIAL PROTECTION IN THE NEW CIVIL PROCESS CODE
Emerson Affonso da Costa Moura1
Mauricio Mota2
Resumo: A dificuldade do reconhecimento da regularização fundiária de
ocupação em áreas ambientais, em razão da tensão da promoção do direito
social à moradia à luz do meio ambiente ecologicamente equilibrado é o
tema posto em debate. Verifica-se em que medida o novo código de
processo civil traduz instrumentos que permitem mediante o controle
social ao reconhecimento e proteção efetiva da posse nas respectivas áreas.
Palavras-chave: Ocupação; área ambiental; Regularização fundiária;
Controle Judicial; Código de Processo Civil.
Abstract: The difficulty of recognizing land tenure regularization in
environmental areas due to the tension of promoting the social right to
housing in the light of the ecologically balanced environment is the subject
of debate. We can see to what extent the new civil process code translates
instruments that allow, through social control, the recognition and
effective protection of tenure in the respective areas.
1 Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO e da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor convidado do Mestrado e
Doutorado em Direito da Universidade do Estado do Rio de janeiro UERJ. Doutor em Direito
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:
emersonacmoura@yahoo.com.br
2 Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ
(graduação e pós-graduação). Procurador do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:
mjmota1@gmail.com
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mais de 30 bairros do município do Rio de Janeiro, como exposto
anteriormente.
A forma como a lei classifica um bem jurídico, mesmo que outras
denominações possíveis permaneçam implícitas, parece apontar qual é a
verdadeira intenção do legislador quando exprime determinados conceitos
e exclui outros. Assim como a paisagem, é como se o legislador se
manifestasse a partir de um jogo de luz e sombras. Se há uma preocupação
com uma proteção da paisagem que abarque o bem-estar da população e
seu conforto individual, por que não manifestá-la expressamente no texto
legal? A importância do que está escrito destaca-se também porque é a
partir do que se diz na lei que o Judiciário toma decisões que impactem a
coletividade, muito embora, nos últimos dez anos, sejam poucas as
demandas em que o Judiciário fluminense tenha se amparado no Plano
Diretor vigente para questões relacionadas à paisagem.
Assim, o que se permite concluir da comparação entre os dois
Planos Diretores, ao menos no que diz respeito aos artigos 2º, §4º, do Plano
Diretor do Rio de Janeiro de 2011; e 85, ca put, do Plano Diretor de São
Paulo de 2014, é que o Rio de Janeiro opta por atrelar à paisagem uma
função estritamente econômica, patrimonial; enquanto São Paulo a vincula
explicitamente a um bem ambiental, o que não necessariamente exclui a
sua função econômica. É essa interpretação, a paulistana, que parece se
coadunar melhor com os preceitos constitucionais sobre os bens
ambientais, dos quais fazem parte a paisagem.
Referências
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185
população" (BRASIL, 2001), resta indagar se houve uma participação
ativa da população no processo de construção do conceito de paisagem em
cada um dos Planos Diretores supracitados.
3. Conclusão
Ao colocar os trechos legais lado a lado, é notória a diferença de
interpretação entre a paisagem para os dois Planos Diretores. Parece,
inclusive, que os trechos não se relacionam com o mesmo bem, mas com
dois bens completamente diferentes. O Rio de Janeiro chama a paisagem
de seu mais valioso bem; São Paulo a chama de bem ambiental. O Rio de
Janeiro a consagra como um ícone mundial; São Paulo a constitui como
elemento essencial a o bem-estar. O Rio de Janeiro a insere na economia
turística do país; São Paulo atribui a ela a sensação de conforto individual
e social. O Rio de Janeiro diz que ela gera emprego e renda; São Paulo diz
que ela é fundamental para a qua lidade de vida. A diferente interpretação
sobre o que é paisagem nos Planos Diretores de duas das principais capitais
do país demonstra, por si só, o quanto o termo é polissêmico.
Exatamente por sua polissemia, nada impede que a paisagem seja
os dois bens ao mesmo tempo: o mais valioso bem, e ainda assim um bem
ambiental. Que seja um ícone mundial que fomenta a economia turística, e
ainda assim elemento essencial ao bem-estar e a sensação de conforto
individual e social. Que seja geradora de emprego e renda, e ainda assim
fundamental para a qualidade de vida. Como trata-se de conceito
absolutamente subjetivo, que pode ser apreendido de diversas formas a
depender do observador, a paisagem pode ser compreendida de inúmeras
maneiras, e há inclusive a possibilidade de que ela abranja todas essas
formas de pensar ao mesmo tempo.
No entanto, mesmo que sua classificação seja ampla, a proteção do
meio ambiente expressa pela Constituição Federal exige a preponderância
da função social da paisagem (que se extrai da preponderância da função
social do meio ambiente). Essa função social é caracterizada por valores
como o interesse público, o interesse difuso, o interesse coletivo e o
interesse dos usuários. Quando o Plano Diretor opta por uma definição
restritiva, que deixe lacunas em sua interpretação, há sempre o risco de que
isso permita recuos em sua proteção jurídica. Exemplo disso é a a volta de
anúncios em laterais de prédios e a ampliação dos anúncios indicativos, em
184
demonstra uma preocupação mais efetiva do legislador paulistano com
uma apreensão da paisagem pela população que gere principalmente bem-
estar e qualidade de vida, deixando os aspectos econômicos e patrimoniais
em um segundo plano.
2.3 A Paisagem como Geradora de Emprego e Renda e a Paisagem
como Fundamental para a Qualidade de Vida: Uma Inversão de
Estereótipos entre Rio de Janeiro e São Paulo
O terceiro e último trecho do art. 2º, §4º, do Plano Diretor de 2011
do Rio de Janeiro estabelece que a função da paisagem é gerar emprego e
renda. Já o terceiro e último trecho do art. 85, caput, do Plano Diretor de
São Paulo de 2011 estabelece que a paisagem é fundamental para a
qualidade de vida. Por si só, estes últimos trechos selecionados poderiam
servir como uma conclusão do dito até aqui, ou seja, de que o Plano Diretor
do Rio de Janeiro possui uma preocupação em demasia com a
patrimonializaçã o da paisagem; enquanto o Plano Diretor de São Paulo a
trata como um bem ambiental, cujo fim intrínseco é permitir uma vida mais
agradável para a sua população.
Há, no entanto, uma ironia que merece ser destacada. Dentre os
estereótipos mais frequentes a descreverem paulistanos e cariocas, estão o
de que o paulista é um trabalhador árduo, preocupado com a acumulação
de dinheiro e com o crescimento profissional. Já o carioca seria um bon
vivant, mais preocupado com qualidade de vida e lazer do que com o
trabalho propriamente dito. Coincidentemente, a caracterização da
paisagem nos Planos Diretores do Rio de Janeiro e de São Paulo invertem
esses estereótipos (o Plano Diretor do Rio de Janeiro preocupa-se com
emprego e renda ; e o de São Paulo, com qualidade de vida), traçando
intenções para os institutos que são exatamente o contrário do que a cultura
popular espera das duas cidades.
Aqui, cabe questionar o quanto de participação popular tem na
construção desses conceitos. Se eles contradizem a própria imagem que
paulistanos e cariocas têm de si mesmos - seja essa imagem verdadeira ou
não - é possível indagar se a maioria da população das duas cidades
concordaria com as definições de paisagem apresentadas pela lei.
Considerando que uma das diretrizes do Estatuto da Cidade, em seu artigo
2º, inciso II, é é "a gestão democrática por meio da participação da
183
& Name criticam a correlação entre paisagem e turismo feita pelo Plano
Diretor do Rio de Janeiro:
"Não é toda e qualquer paisagem que é parte do
universo econômico-simbólico dessa atividade
econômica, sendo possível se supor, portanto, que o
que se quer proteger não é a paisagem da cidade como
um todo, mas muito provavelmente aquelas paisagens
de porções do território carioca consagradas em
imagens turísticas glob almente reproduzidas (PIRES
DO RIO & NAME, 2013, p. 7).
Surpreende, no entanto, que até áreas do território carioca
consagradas em imagens turísticas globalmente reproduzidas tenham sido
afetadas pela descaracterização do Projeto Rio Limpo: dentre os mais de
30 bairros abarcados pela volta dos anúncios e ampliação dos anúncios
indicativos, estão também os que se localizam nas Regiões Administrativas
IV, V e VI15 (o que inclui bairros como a Urca, onde está o Pão de Açúcar;
e Copacabana, onde se localiza a praia homônima, notórios ícones de
consagração da paisagem carioca).
Uma possível justificativa para uma descaracterização de tamanho
porte, além da apresentada pelo vereador, é que em um momento de crise
econômica em que o fluxo de turistas, principalmente internacionais, é
menor, permitir novamente os anúncios talvez seja mais lucrativo do que
manter as restrições. Se o fluxo de turistas diminui, cabe ao público interno
ser convencido pela publicidade a fazer a roda da economia continuar a
girar. Esse é mais um reflexo da patrimonialização da paisagem carioca
apontado por Pires do Rio & Name, que se faz corroborar por não haver,
tanto no Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 quanto na justificativa do
projeto que gerou o Decreto Legislativo 1378/2019, uma preocupação
expressa com o bem-estar e a sensação de conforto individual da
população.
Mas, como visto anteriormente, essa mesma preocupação está
taxativamente expressa pelo Plano Diretor de São Paulo de 2014, o que
15 A Zona Administrativa IV (Botafogo) é composta pelos bairros: Botafogo, Catete, Cosme
Velho, Flamengo, Glória, Humaitá, Laranjeiras, Urca. A Zona Administrativa V (Copacabana)
é composta pelos bairros Copacabana e Leme. A Zona Administrativa VI (Lagoa) é composta
pelos bairros Gávea, Ipanema, Jardim Botânico, Lagoa, Leblon, São Conrado e Vidigal. Fonte:
. Visto pela última vez em 03.mar.2022.
182
O Rio de Janeiro parece ter seguido o caminho inverso. Em 2019,
já com o Plano Diretor de 2011 estabelecendo que a paisagem é o mais
valioso bem da Cidade, o Decreto Legislativo 1378/2019 revogou decretos
executivos que regulavam a propaganda nas Zonas de Preservação
Paisagística e Ambiental do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2019).
Assim, o programa conhecido como Rio Limpo, similar ao Cidade Limpa
de São Paulo, foi descaracterizado: permitiu-se definitivamente a volta de
anúncios em laterais de prédios e a ampliação dos anúncios indicativos
(placas que expõem o nome dos estabelecimentos), em mais de 30 bairros
cariocas.
Relator do novo projeto, o vereador Rafael Aloísio Freitas (MDB)
deu uma entrevista para o jornal O Globo em que argumenta que "as
restrições à publicidade haviam sido aplicadas num outro contexto", ou
seja, o de preparação para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas, porque
"os grandes patrocinadores dos eventos precisavam de garantias de que
suas marcas teriam visibilidade" (2019, online). Ainda segundo o vereador,
"hoje essas restrições são prejudiciais à atividade econômica da cidade"
(2019, online).
Chama atenção que o vereador acredite que a regulação dos
anúncios publicitários tenha sido importante apenas durante o período dos
megaeventos e porque prejudicaria as marcas dos grandes patrocinadores.
Não há, em sua entrevista ao jornal ou na justificativa do projeto de decreto
legislativo14, qualquer menção ao bem-estar e a qualidade de vida da
população. De certa forma, o argumento do vereador corrobora com o que
Pires & Name estabelecem ser uma função patr imonialista da paisagem no
Plano Diretor do Rio de Janeiro. Se o Plano Diretor quer tratá-la como um
patrimônio cujo principal objetivo é gerar renda, sem uma preocupação
expressa com o bem-estar da população, é certo que sua proteção se dará a
partir de um viés eminentemente econômico. Não por outro motivo Pires
14 A justificativa do projeto de decreto legislativo 49/2013 limita-se a apresentar um motivo
formal para a sustação dos decretos: "O Decreto nº 36.108, de 09 de agosto de 2012, criou um
novo zoneamento no Município do Rio de Janeiro sem passar pelo Legislativo Municipal. A Lei
Orgânica do Município, em seu Artigo 75 diz que “... é nula a resolução que delega o poder de
legislar ao Chefe do Executivo quando se tratar de desenvolvimento urbano, zoneamento e
edificações...” Desta forma, venho por meio deste Projeto de Decreto Legislativo solicitar aos
meus pares a restauração da legalidade, anulando este Decreto em questão" (RIO DE JANEIRO,
2013, online).
181
explicitamente que essa consagração deva estar vinculada ao bem-estar de
quem dela desfrute.
A diferença entre a abordagem dada à paisagem pelo Plano Diretor
do Rio de Janeiro e o Plano Diretor de São Paulo não poderia ser mais
diferente também nesse aspecto. O art. 85, caput, do Plano Diretor de São
Paulo estabelece que a paisagem "constitui elemento essencial ao bem-
estar e à sensação de conforto individual e social [...]". (SÃO PAULO,
2014, online). É uma perspectiva humanizante da paisagem, que busca sua
proteção tanto pelo que ela pode oferecer a coletividade quando ao
indivíduo isoladamente.
Novamente, é importante ressaltar que a proteção da paisagem não
se limita apenas ao seu potencial turístico. A Lei da Cidade Limpa, que já
foi referida aqui como um dos principais marcos legislativos sobre a
proteção da paisagem urbana no Brasil e no mundo, sequer cita o
substantivo "turismo" e usa o adjetivo "turística" apenas duas vezes, uma
para definir o que é bem de valor cultural (art. 6º, inciso VI10) e outra para
definir o que é painel publicitário informativo (art. 22, §4º11). Mas o bem-
estar estético é apontado como o primeiro objetivo da ordenação da
paisagem (art. 3º, inciso I12) e, ainda no artigo que trata sobre seus
objetivos, aponta-se a necessidade de conforto ambiental (art. 3º, ca put) e
de conforto nos deslocamentos de veículos e pedestres (art. 3º, inciso IV13).
10 "Art. 6º. Para os efeitos de aplicação desta lei, ficam estabelecidas as seguintes definições: VI
- bem de valor cultural: aquele de interesse paisagístico, cultural, turístico, arquitetônico,
ambiental ou de consagração popular, público ou privado, composto pelas áreas, edificações,
monumentos, parques e bens tombados pela União, Estado e Município, e suas áreas
envoltórias;" (SÃO PAULO, 2006, online).
11 "Art. 22. São considerados como mobiliário urbano de uso e utilidade pública os seguintes
elementos, dentre outros: § 4 º. Painel publicitário informativo é o painel luminoso para
informação a transeuntes, consistindo num sistema de sinalização global para a cidade, que
identificará mapas de áreas, marcação dos pontos de interesse turístico, histórico e de mensagens
de caráter educativo" (SÃO PAULO, 2006, online).
12 "Art. 3º. Constituem objetivos da ordenação da paisagem do Município de São Paulo o
atendimento ao interesse público em consonância com os direitos fundamentais da pessoa
humana e as necessidades de conforto ambiental, com a melhoria da qualidade de vida urbana,
assegurando, dentre outros, os seguintes: I - o bem-estar estético, cultural e ambiental da
população;" (SÃO PAULO, 2006, online).
13 "Art. 3º. Constituem objetivos da ordenação da paisagem do Município de São Paulo o
atendimento ao interesse público em consonância com os direitos fundamentais da pessoa
humana e as necessidades de conforto ambiental, com a melhoria da qualidade de v ida urbana,
assegurando, dentre outros, os seguintes: IV - a segurança, a fluidez e o conforto nos
deslocamentos de veículos e pedestres;" (SÃO PAULO, 2006, online).
180
eram um incentivo para o turista conhecer a Cidade Maravilhosa (SOUZA
& BORGES, 2015). Neste sentido, "a sexualidade das mulheres é
destacada e o biquíni ganha um apelo sexual, deslocando o destino turístico
da beleza natural da praia para o apelo sexual" (SOUZA & BORGES,
2015, p. 44).
Ecos desse período resistem até 2009, quando um projeto de lei da
deputada Alice Tamborideguy altera trechos da Lei Estadual nº 2813/2005
e passa a proibir cartões postais com mulheres de biquíni ou em trajes
sumários no Estado (SOUZA & BORGES, 2015).
Se a mera consagração de uma cidade como ícone mundial e
inserção na economia turística do país fosse o principal objetivo de um
Plano Diretor para a proteção da paisagem, Amsterdã (capital da Holanda)
não debateria frequentemente que medidas tomar em relação ao Red Light
District, famosa região em que prostitutas ficam em vitrines voltadas para
a rua enquanto tentam atrair clientes.
É notório que o Red Light District gera turismo e renda para a
cidade, mas o incômodo com a exposição das mulheres, aumentada pela
proliferação de aparelhos celulares capazes de filmá-las em segredo e de
redes sociais capazes de distribuir essas filmagens ilegais em tempo
recorde, tem aumentado a pressão para que a região seja repaginada com a
retirada das vitrines ou deixe de existir. Mudanças substanciais parecem
estar perto de acontecer, principalmente depois que uma mulher, Femke
Haselma, assumiu a Prefeitura de Amsterdã pela primeira vez (PENA,
2020). Curiosamente, a região administrativa em que se encontra o Red
Light District também foi agraciada pela Unesco com o título de
Patrimônio Cultural da Humanidade UNESCO, 2021), no que guarda
semelhanças com a cidade do Rio de Janeiro, detentora do mesmo título.
Valorizar a proteção da paisagem por sua consagração como um
ícone mundial obviamente não é um erro, mas essa proteção jamais pode
se disvirtuar do que deveria ser o seu maior propósito: garantir a dignidade
da pessoa humana. Se o Brasil já flertou com uma consagração da
paisagem que desvalorize a mulher no passado, por exemplo, isso já não
pode ser mais admitido, principalmente a partir dos preceitos que se
espraiam pela Constituição Federal de 1988 por todo o ordenamento
jurídico. Assim, a proteção dada pelo Plano Diretor do Rio de Janeiro à
paisagem deve ser elogiada por buscar a sua consagração como ícone
mundial, mas também deve ser criticada por não estabelecer
179
que a paisagem pertence a toda a coletividade. Além disso, atribui a ela um
feixe de valores que devem ser protegidos em prol da população e que vão
além de uma noção civilista clássica, meramente patrimonial. Com isso,
delega a sua proteção não somente ao Direito Civil, mas também ao Direito
Administrativo, ramo do Direito Público cujas bases estão fundadas
exatamente nos valores que Granziera considera serem inerentes ao bem
ambiental: os interesses público, difuso, coletivo e dos usuários.
Seria até possível argumentar que, quando o Plano Diretor do Rio
de Janeiro cita a paisagem como seu mais valioso bem, a expressão deixaria
implícita a intenção do legislador de atribuir a paisagem exatamente os
valores atribuídos por Granziera ao bem ambiental. No entanto, em
nenhum momento o Plano Diretor do Rio de Janeiro afirma ser a paisagem
um bem ambiental - o Plano Diretor de São Paulo o afirma
expressamente.
Além disso, a continuação do art. 2º, §4º, do Plano Diretor do Rio
de Janeiro por si só contradiz o argumento, pois estabelece para a paisagem
fins essencialmente econômicos, tais quais inserir a cidade na economia
turística do país e gerar emprego e renda. Já o art. 85, caput, do Plano
Diretor de São Paulo é taxativo em associar a paisagem ao interesse público
e coletivo, vinculando-a como elemento essencial ao bem estar, à sensação
de conforto individual e social e à qualidade de vida. São interpretações
completamente diferentes da paisagem, exatamente porque exprimem um
ideal de paisagem completamente diferente.
2.2 A Paisagem como Consagração de um Ícone Mundial e Inserção
na Economia Turística do País e a Paisagem como Elemento
Essencial ao Bem-estar e à Sensação de Conforto Individual
No segundo trecho do art. 2º, §4º, o Plano Diretor do Rio de Janeiro
estabelece que a paisagem é "responsável pela sua consagração como um
ícone mundial e por sua inserção na economia turística do país" (RIO DE
JANEIRO, 2011, online). Há várias maneiras de consagrar uma cidade
como ícone mundial, e nem todas dizem respeito a aspectos
necessariamente positivos. Durante determinado período da história do
Brasil, o governo federal corroborou com a divulgação do Rio de Janeiro
como um ícone mundial pelo turismo sexual: orgãos governamentais
criavam peças de propaganda em que mulheres com o mínimo de roupa
178
Note-se, portanto, que mesmo autores civilistas acreditam que nem
todo bem jurídico possui natureza econômica, o que se coaduna com a
interpretação constitucionalista mais recente sobre o tema. O Plano Diretor
de São Paulo, em contraposição ao do Rio de Janeiro, opta por não
mencionar a natureza econômica da paisagem. Utiliza-se, ainda, de uma
acepção de bem jurídico que aproxima-se do Direito Administrativo,
deixando mais explícita a influência dos valores espraiados pela
Constituição Federal em relação ao que seriam bens.
Tal concepção de paisagem, portanto, é muito diferente da que
encontramos no Plano Diretor do Rio de Janeiro. Vejamos o art. 85, caput,
do Plano Diretor paulistano: "A paisagem da cidade é um bem ambiental e
constitui elemento essencial ao bem-estar e à sensação de conforto
individual e social, fundamental para a qualidade de vida" (SÃO PAULO,
2014, grifo nosso). Cabe indagar, portanto, o que seria um bem ambiental.
Leciona Celso Fiorillo que "Ao estabelecer a existência de um bem
que tem duas características específicas, a saber, ser essencial a sadia
qualidade de vida e de uso comum do povo, a Constituição Federal de 1988
formulou inovação verdadeiramente revolucionária, no sentido de criar um
terceiro gênero de bem que, em face de sua natureza jurídica, não se
confunde com bens públicos e muito menos com bens privados"
(FIORILLO, p. 12). Isso significaria que o bem ambiental caracteriza-se
por ser transindividual, no sentido em que "não está na disponibilidade
particular de ninguém, nem de pessoa privada, nem de pessoa pública"
(idem, p. 43), o que superaria o que o autor chama de "tacanha visão de que
o meio ambiente é 'patrimônio público'" (ibidem, p. 44).
Em definição atual, Maria Luiza Machado Granziera explica que
"Embora possam implicar a valorização para o seu uso, como é o caso dos
recursos hídricos, os bens ambientais são componentes do patrimônio
ambiental e, como tal, possuem valores intrínsecos que extrapolam a
simples caracterização da coisa". (2019, p. 5). Assim, o bem ambiental
pode até ter natureza econômica, mas possui valores que extrapolam a
proteção de seus possíveis atributos econômicos e chegam inclusive a
limitar tais atributos. Seriam esses valores, segundo a autora, o interesse
público, o interesse difuso, o interesse coletivo e o interesse dos usuários
(GRANZIERA, 2019).
Portanto, ao estabelecer a paisagem como um bem ambiental, o
Plano Diretor de São Paulo, pretende estabelecer, dentre outros valores,
177
quotidiana também são elementos importantes da qualidade de vida das
populações (PORTUGAL, 2000, p. 3).
É necessário, portanto, encontrar uma noção de bem que abarque
uma compreensão mais ampla do que seria paisagem. Caio Mário da Silva
Pereira, de início, concorda com Sílvio Rodrigues quando aponta que um
bem pode ser abstrato: "Os bens, especificamente considerados,
distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são
materiais e concretas, enquanto que se reserva para designar imateriais ou
abstratos o nome bens em sentido estrito" (2013. p. 337). Em seus
exemplos do que seriam bens, Caio Mário chega, inclusive, a dar como
exemplo uma paisagem: "Bem é tudo que nos agrada: o dinheiro é um bem,
como o é a casa, a herança de um parente, a faculdade de exigir uma
prestação; bem é ainda a alegria de viver o espetáculo de um pôr -do sol,
um trecho musical [...]" (2013, p. 337, grifo nosso).
O jurista mineiro diverge de Silvio Rodrigues, no entanto, porque
aponta que nem todo bem precisa ser econômico: "Se todos são bens, nem
todos são bens jurídicos. [...] São bens jurídicos, antes de tudo, os de
natureza patrimonial. Tudo que se pode integrar no nosso patrimônio é um
bem, e é objeto de direito subjetivo. São os bens econômicos" (2013, p.
337). Mas reforça que "A ordem jurídica envolve ainda outros bens
inestimáveis economicamente, ou insuscetíveis de se traduzirem por um
valor pecuniário. Não recebendo, embora, esta valoração financeira, e por
isso mesmo não integrando o patrimônio do sujeito, são suscetíveis de
proteção legal" (2013, p. 337). A partir da leitura de Caio Mário, portanto,
percebe-se que é possível a existência de bens que não se vinculem a um
patrimônio. Na mesma linha, Orlando Gomes:
A noção jurídica de bem é mais ampla do que a
econômica. Compreende toda utilidade, material ou
ideal, que possa incidir na faculdade de agir do
sujeito. Abrange as coisas prop riamente ditas,
suscetíveis de apreciação pecuniária, e as que não
comportam essa avaliação, as que têm natureza
corpórea, ou n ão. Todo bem econômico é jurídico,
mas a
recíproca não é verdadeira , pois, nem todo bem
jurídico é econômico (GOMES, 1996, p. 199, grifo
nosso).
176
prevista no Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 ainda parece ser
compreendida dentro de uma interpretação civilista clássica de bem, com
ênfase em seu patrimonialismo.
O art. 2º, §4º, do Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 converte
a paisagem em um bem jurídico de fortes raízes privatistas, que se
relaciona menos com a interpretação constitucionalista moderna do que
seria um bem coletivo e difuso, e mais com uma definição de bem clássica,
como a adotada, por exemplo, pelo autor civilista Sílvio Rodrigues: "bens
são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e
contêm valor econômico" (2003, p. 116). Sílvio Rodrigues não inclui a
necessidade de que um bem seja corpóreo, o que permite que sua noção de
bem abarque a paisagem, contanto que ela cumpra os outros requisitos
apontados pelo autor: ser útil, rara, suscetível de apropriação e conter valor
econômico.
Ora, resta claro que o Plano Diretor do Rio compreende que a
paisagem é útil, visto ser ela a responsável pela consagração da cidade
como "um ícone mundial e por sua inserção na economia turística do país,
gerando emprego e renda". Também considera a paisagem rara , pois se
fosse algo comum, não seria o patrimônio mais valioso do município. Seu
valor econômico também se expressa por todo o §4º, como visto
anteriormente. Mas cumpriria ela o requisito de ser suscetível de
apropr iação? Tudo parece indicar que sim: de acordo com a norma, a
principal função da paisagem é ser apropriada e convertida em turismo,
emprego e renda.
Em relação à apropriação econômica da paisagem pelo Plano
Diretor do Rio de Janeiro, Pires do Rio & Name declaram que "Não é toda
e qualquer paisagem que é parte do universo econômico-simbólico dessa
atividade econômica, sendo possível se supor, portanto, que o que se quer
proteger não é a paisagem da cidade como um todo, mas muito
provavelmente aquelas paisagens de porções do território carioca
consagradas em imagens turísticas globalmente reproduzidas" (2013, p. 7).
O problema da interpretação dada pelo Plano Diretor, no entanto,
é que nem toda paisagem se vincula a pontos turísticos. Tal perspectiva é
corroborada pela Convenção Europeia de Paisagem, que Maraluce
Custódio considera ser "o documento legal mais avançado disponível"
sobre o tema (2014, p. 7). A Convenção reconhece que as paisagens de
áreas degradadas, assim como aquelas presentes nas áreas da vida
175
Mas o que efetivamente significa ser a paisagem o bem mais
valioso do Rio de Janeiro? Inicialmente, é necessário pontuar que a ideia
do que é um bem jurídico ainda não pode ser afirmada com segurança o
suficiente para convertê-la em um conceito fechado (DIAS, 2007). No
entanto, o sistema jurídico já não mais compreende bem jurídico como
objeto de uma titularidade necessariamente individualizada, permitindo,
portanto, direitos sem sujeitos, como bem expõe Carlos Frederico Marés
Souza Filho:
[...] Estes novos dir eitos tem como principal
característica o fato de sua titularidade não ser
individualizada, de não se ter ou não poder ter clareza
sobre ela. Não são fr uto de uma relação jurídica
precisa mas apenas de uma garantia genérica, que
deve ser cum prida e que, no seu cumprimento acaba
por condicionar o exercício dos direitos individuais
tradicionais. [...] É evidente a au sência de titulares
desse direito porque não se pode encontrar quem o
possa adquirir e integrar a seu patrimônio ou
encontrar a relação contratual que lhe deu origem
(SOUZA FILHO, 2007, p. 174).
O autor ainda ressalta que é a partir da metade do século XX que
o Direito passa a regular coisas intangíveis, afastando-se aos poucos do
patrimônio individual e da coisificação material como sustentáculo
(SOUZA FILHO, 2007). Assim, em seus dizeres, é possível dissociar o
bem jurídico pessoal, que se insere na esfera do patrimônio individual -
ainda que imaterial, como o dano moral e os direitos do autor; e o bem
jurídico não pessoal, que se subdivide ainda naqueles que podem ser
realizados individualmente (os direitos do consumidor, e as necessidades
coletivas e humanas tais como alimentação, moradia, educação, etc.) e
naqueles que não podem ser realizados individualmente e, portanto, não
atingem qualquer esfera do patrimônio individual. Carlos Frederico usa
como exemplos para essa segunda subdivisão a poluição, o mau uso da
propriedade que viola o patrimônio cultural e ambiental, a violação do
patrimônio cultural, etc. (SOUZA FILHO, p. 173).
Exatamente por sua qualidade de apropriação subjetiva e difusa, a
paisagem se adequaria melhor à segunda subdivisão, não atingindo,
portanto, qualquer esfera do patrimônio individual. No entanto, a paisagem
174
Neste sentido, faremos a comparação dos dois dispositivos legais
em vigor dividindo-os por trechos, para melhor sistematização. Em um
primeiro tópico, buscamos comparar o que se compreende da paisagem
como "o mais valioso bem da cidade" e da paisagem como um "bem
ambiental", dissecando, de acordo com a doutrina jurídica, as diferentes
interpretações de bem que os dois trechos revelam.
Em um segundo tópico, buscamos comparar a paisagem
responsável pela "consagração [da cidade] como um ícone mundial e por
sua inserção na economia turística do país" e a paisagem como "elemento
essencial ao bem-estar e à sensação de conforto individual e social",
salientando que nem toda paisagem que contribua para a consagração de
uma cidade, para o turismo e para a economia necessariamente é regulada
pensando-se em primeiro lugar no bem-estar e no conforto da população.
Em um terceiro e último tópico, buscamos comparar a paisagem
como geradora de "emprego e renda" e como "fundamental para a
qualidade de vida", retomando e concluindo pontos dos tópicos anteriores,
mas também ressaltando que a maneira como os dois Planos Diretores
caracterizam o "bem" paisagem é, ironicamente, inversamente
proporcional aos estereótipos das imagens popularmente construídas de
como se comportam cariocas e paulistanos, o que nos leva a questionar se
houve efetiva participação popular no debate sobre como a paisagem
deveria ser compreendida dentro dos Planos Diretores em questão.
2.1 A Paisagem como Mais Valioso Bem e a Paisagem como Bem
Ambiental
Ao colocar os dois trechos legais lado a lado, é nítido que cada
Plano Diretor compreende a paisagem como um "bem" de arcabouço
teórico distinto. Para o Rio de Janeiro, a paisagem é seu bem mais valioso.
Ou seja, o Plano Diretor compreende a paisagem como um bem que se
vincula ao patrimônio municipal, em uma interpretação que chama atenção
por seu utilitarismo econômico. Afinal, o art. 2º, §4º é taxativo em apontar
que ela serve para gerar fama para a cidade ([...] responsável pela sua
consagra ção como um ícone mundial [...]), para atrair turistas ([...] por sua
inserção na economia turística do país [...]) e para ser monetizada como
um ativo econômico ([... gerando emprego e renda).
173
Será que, passada a euforia da consagração pela Unesco como primeira
cidade do mundo a deter o título de Paisagem Cultural Urbana; e passada
a euforia de ter sido sede de dois megaeventos em uma mesma década, o
legislador carioca considerou que o protagonismo dado à paisagem era
excessivo?
O projeto de lei em tramitação dá sinais contraditórios quanto à
questão. Por um lado, a paisagem passa a dividir a sua categoria de bem
mais valioso com outros bens, não expressos; e é mencionada apenas uma
vez no novo artigo que define os princípios do Plano Diretor (art. 3º, inciso
II) - são 8 vezes no Plano Diretor de 2011. Por outro, a reinvenção da
paisagem como patrimônio fica ainda mais evidente: no mesmo art. 4º,
caput, ela é elevada ao "mais importante patrimônio da cidade" (RIO DE
JANEIRO, 2021). Interessante ressaltar que neste art. 4º, caput, o projeto
de lei assume expressamente a reinvenção da paisagem como patrimônio,
noção que já havia sido trazida à tona ainda em 2013 por Pires do Rio &
Name, em trabalho supracitado.
Já no Plano Diretor de São Paulo, a posição topológica da
paisagem não é a mesma: a seção IX, que estabelece diretrizes para o
ordenamento da paisagem, começa no art. 85 e segue até o art. 88. Assim,
as principais normas sobre paisagem não estão na "porta de entrada" do
Plano Diretor. É notável, no entanto, que o Plano Diretor paulistano se
preocupou em dar sistematicidade à matéria, separando uma seção
específica para o tema. Além disso, o art. 85, caput, do Plano Diretor de
São Paulo expressa uma noção de paisagem bem diferente da depreendida
pelo art. 2º, caput, do Plano Diretor do Rio de Janeiro. Vejamos o art. 85:
"A paisagem da cidade é um bem ambiental e constitui elemento essencial
ao bem-estar e à sensação de conforto individual e social, fundamental
para a qualidade de vida" (SÃO PAULO, 2014, grifos nossos).
Plano Diretor do Rio de Janeiro
(2011)
Plano Diretor de São Paulo
(2014)
Art. 2º, §4º: A paisagem da Cidade do
Rio de Janeiro representa o mais valioso
bem da Cidade, responsável pela sua
consagração como um ícone mundial e
por sua inserção na economia turística
do país, gerando emprego e renda.
Art. 85. A paisagem da cidade é um bem
ambiental e constitui elemento
essencial ao bem-estar e à sensação de
conforto individual e social,
fundamental para a qualidade de vida.
172
É de se questionar que critérios o legislador usou para elencar a
paisagem como o mais valioso bem do município: a sociedade foi
consultada e pôde dar sugestões de bens que consideravam de maior valia?
Ou é possível se especular que a candidatura do Rio de Janeiro ao título de
Patrimônio Cultural como Paisagem Cultural Urbana, que sairia vitoriosa
um ano após o início da vigência do Plano Diretor, foi decisiva para que a
paisagem fosse "promovida" ao mais valioso bem da cidade? Da mesma
forma, a necessidade de se propagandear as belezas da paisagem carioca
para consolidar a cidade como sede dos megaeventos esportivos de 2014 e
2016 também influenciou as escolhas do Plano Diretor?
A própria continuação do § 4º parece dar pistas sobre o intuito do
legislador. Pires do Rio & Name (2013) reforçam que o Plano Diretor do
Rio reinventou a paisagem como "patrimônio". Para os autores, o referido
texto legal é esclarecedor por vários aspectos:
No artigo 4º do PDDUS tem-se que “a paisagem da
Cidade do Rio de Janeiro representa o mais valioso
bem da Cidade, responsável pela sua consagração
como ícone mundial e por sua inserção na economia
turística do país, gerando emprego e r enda” (itálicos
nossos). Trata-se de texto esclarecedor em vários
aspectos: por dotar a paisagem de caráter determinista
na geração de desenvolvimento econômico; por aderir
à inserção da cidade na competição global; e por
recortar a paisagem relacionando-a diretamente ao
turismo (PIRES DO RIO & NAME, 2013, p. 7).
O art. 49, §3º, do Estatuto da Cidade prevê que "A lei que instituir
o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos". (BRASIL,
2001). Em junho de 2022, ainda tramita na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro o Projeto de Lei Complementar 44/2021, responsável pela revisão
do Plano Diretor em questão. Embora o prazo estipulado pelo Estatuto da
Cidade tenha sido extrapolado, é certo que até a aprovação da revisão do
Plano Diretor pela Câmara Municipal, o atual segue vigente, motivo pelo
qual é ele que é avaliado no presente trabalho.
De todo modo, ao menos como consta no atual estágio do Projeto
de Lei Complementar 44/2021, a paisagem já não é mais proposta como o
mais valioso bem da Cidade: perdeu o espaço de extrema centralidade que
ocupava, tornando-se agora um dos seus mais valiosos bens (art. 4º, caput).
171
"paisagem" para compreendê-lo como um bem ambiental, de uso comum
do povo, cuja patrimonialização pode ser limitada a partir de sua função
social, em prol do interesse público e da coletividade. É essa última
perspectiva que melhor se amolda ao que propõe o Direito de Paisagem,
motivo pelo qual a defenderemos ao longo do presente trabalho.
2. A Paisagem no Plano Diretor: Uma Comparação entre o Art.
2º, §4 (Plano Diretor do Rio de Janeiro) e o Art. 85, Caput
(Plano Diretor de São Paulo)
Comecemos pelo Plano Diretor do Rio de Janeiro para honrar o
espaço de honra que ele dispensa ao instituto. Considerando que a função
do art. 1º, caput, é tão somente apresentar o Plano Diretor ao leitor8 e seu
parágrafo único é dirigido primordialmente ao Poder Público9, pode-se
considerar que a força normativa do Plano Diretor do Rio tem início, no
que tange à imposição de seu cumprimento por toda a sociedade, no art. 2º.
Este artigo, que dispõe sobre os princípios da política urbana no
município, cita o radical "paisag" (o que inclui o substantivo "paisagem" e
o adjetivo "paisagístico") oito vezes: no inciso III, e nos parágrafos 1º, 2º,
3º e 4º. Conclui-se, portanto, que a "porta de entrada" topológica do Plano
Diretor, que são os princípios elencados no art. 2º, está repleta de normas
sobre paisagem. Em comparação, é importante ressaltar que "moradia", um
direito fundamental que está no âmago de todos os debates sobre
desigualdade social no Rio de Janeiro, é citado apenas uma vez em todo o
artigo (inciso VI). "Acessibilidade" idem (inciso VII).
E não é apenas a posição de destaque ocupada pelo tema que
confirma o altar em que o legislador o colocou. A própria letra da lei (art.
2º, § 4º) é taxativa ao afirmar que "A paisagem da Cidade do Rio de Janeiro
representa o mais valioso bem da Cidade, responsável pela sua consagração
como um ícone mundial e por sua inserção na economia turística do país,
gerando emprego e renda" (RIO DE JANEIRO, 2011, grifo nosso).
8 "Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre a política urbana e ambiental e institui o Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro" (RIO DE
JANEIRO, 2011, online).
9 "Parágrafo único. O Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro será avaliado a cada cinco anos
e revisto a cada dez anos" (RIO DE JANEIRO, 2011, online).
170
dispositivos legais. Além disso, é possível que sua elaboração também
tenha sido influenciada pelos dois megaeventos esportivos que o Rio de
Janeiro sediaria naquela década: a Copa do Mundo de 2014 e as
Olimpíadas de 2016.
A contextualização do período histórico em que o Plano Diretor
vigente do Rio de Janeiro foi editado é importante porque este trabalho
parte, desde já, da posição defendida por Pires do Rio & Name no artigo
"O novo Plano Diretor do Rio de Janeiro e a reinvenção da paisagem como
patrimônio", publicado em 2013. Conforme aduz o título, defendem os
autores que o Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 proporcionou uma
reinvenção da paisagem como "patrimônio", convertendo funções que
deveriam ser de domínio público ao domínio privado:
"O processo de patrimonialização dos espaços vem da
necessidade e da urgência em tornar a relação
patrimonial aquela que regula e legitima a
apropriação, o uso, a proteção e a conservação, o que
permite associar funções até então exclusivas das
relações de domínio privado ao domínio público"
(PIRES DO RIO & NAME, 2013, p. 8).
Esta patrimonialização faz-se ainda mais visível quando
comparamos a compreensão da paisagem como "bem" no Plano Diretor do
Rio de Janeiro e no Plano Diretor de São Paulo, editados com uma
diferença de apenas três anos. É certo que, durante muito tempo, a
regulação dos bens públicos se fazia pela lei civil a partir de categorias e
normas privatistas, pois a codificação civil era o verdadeiro cerne do
ordenamento jurídico até o advento do constitucionalismo moderno
(MOURA, 2017). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 assume o
epicentro deste mesmo ordenamento, passando a exigir do Estado deveres
e finalidades que devem ser obrigatoriamente seguidos (MOURA, 2017).
Como se pretende comprovar ao longo do artigo, ainda ressoa no
Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 ecos de uma regulação privatista
dos bens públicos, ao menos no que diz respeito ao bem jurídico
"paisagem". Já o tratamento da paisagem como bem jurídico pelo Plano
Diretor de São Paulo de 2014 amolda-se melhor ao espírito do tempo
moderno, tratando-o a partir de uma perspectiva constitucionalista que
permite a extrapolação de possíveis atributos econômicos do bem
169
municipal em questão é ainda uma das primeiras do país a oferecer um
conceito jurídico de paisagem urbana (art. 2º, ca put4) e a buscar regular
explicitamente sua ordenação através de normas cogentes, com imposição
de sanções para o seu descumprimento.
A Lei da Cidade Limpa é inovadora porque rompe com a
comodidade das legislações que, escritas sob o receio de desafiar interesses
mercadológicos, buscam "regular" temas politicamente espinhosos através
de normas meramente programáticas. É um marco para a proteção da
paisagem urbana que extrapola os muros e contornos de São Paulo, pois
incentivou legislações correlatas em outros municípios (dentre eles o Rio
de Janeiro, ao menos por um período de tempo, como se verá mais adiante)
e teve ampla repercussão inclusive fora do Brasil5. Sua importância é
tamanha que tornou-se comum que os manuais de Direito Ambiental e
Direito Urbanístico, ao abordarem a temática da "paisagem urbana", a
vinculem estritamente ao dilema da poluição visual6, limitando-a
sobremaneira às inovações da legislação paulistana sobre o tema7.
Já o Rio de Janeiro foi consagrado pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em 2012, como a
primeira cidade do mundo a receber o título de patrimônio mundial por sua
paisagem cultural urbana (UNESCO, 2021). Importante ressaltar que o
Iphan candidatou a paisagem cultural urbana do Rio de Janeiro como
patrimônio cultural da humanidade em 2009 (UNESCO, 2021). Isso
significa que o Plano Diretor aprovado em 2011 foi elaborado antes da
escolha da Unesco de contemplar a cidade como patrimônio mundial por
sua paisagem cultural urbana, mas quando já era possível cogitar a
possibilidade de vitória, o que possivelmente influenciou a redação de seus
4 Art . 2º. Para fins de aplicação desta lei, considera-se paisagem urbana o espaço aéreo e a
superfície externa de qualquer elemento natural ou construído, tais como água, fauna, flora,
construções, edifícios, anteparos, superfícies aparentes de equipamentos de infra-estrutura, de
segurança e de veículos automotores, anúncios de qualquer natureza, elementos de sinalização
urbana, equipamentos de informação e comodidade pública e logradouros públicos, visíveis por
qualquer observador situado em áreas de uso comum do povo. (SÃO PAULO, 2006, online).
5 Segundo o site do prefeito de São Paulo à época, Gilberto Kassab, a iniciativa despertou o
interesse de países como Argentina, Portugal, Grécia e Coreia, recebeu prêmios na Alemanha,
na Inglaterra e nos Estados Unidos, além de ter sido destaque no pavilhão da Cidade de São Paulo
na Exposição Universal de Xangai em 2010, o que fez com que o governo chinês solicitasse a
permanência da mostra após o término da exposição. (2017, online).
6 A notória exceção é a obra de Édis Milaré, que também cita a poluição sonora (2018, p. 843).
7 Neste sentido, Maria Luiza Machado Granziera: nas três páginas do capítulo "Paisa gem Urbana
e Poluição Visual", a única lei a que se faz referência é a Lei Municipal 14.223/06, ou seja, a Lei
da Cidade Limpa (2019, pp. 589-590).
168
como um bem comum; como um bem a transmitir das atuais para as futuras
gerações; e como um bem cujo futuro depende do viver juntos e da
equidade. E é justamente esta ética da paisagem que Maraluce Custódio
defende como ponto central da emancipação do Direito de Paisagem:
É na ética da paisagem que será possível visualizar o
surgimento do direito de paisagem, que advém
quando a relação do ser humano com a paisagem
chega ao nível de preocupação em conservar essa
relação em si e a da paisagem com seu s elementos,
devido a seu valor intrínseco e não por seu valor
econômico, utilitarista ou religioso. Apenas assim há
de se falar em Direito de Paisagem sendo este o ponto
central também na análise da proteção da paisagem.
(CUSTÓDIO, 2013, p.154).
O radical "paisag" (que forma o substantivo "paisagem" e seu
plural "paisagens", assim como também forma os adjetivos "paisagístico",
"paisagística" e seus plurais "paisagísticos" e "paisagísticas"), consta no
Plano Diretor do Rio de Janeiro 94 vezes e no Plano Diretor de São Paulo
100 vezes. Neste artigo, faremos um recorte estrito, comparando tão
somente um dispositivo de cada Plano Diretor, exatamente aquele que
qualifica a paisagem como um "bem" em cada um dos municípios. São eles
o art. 2º, §4º, do Plano Diretor do Rio de Janeiro de 2011 e o art. 85, caput,
do Plano Diretor de São Paulo de 2014. É, portanto, uma pesquisa
preliminar, mas nada impede que ganhe um escopo maior no futuro,
abarcando novos dispositivos legais até que se contemple a interpretação
da paisagem pelos dois Planos Diretores em sua totalidade.
Além dos motivos já apresentados para que a pesquisa comparativa
se dê entre Rio de Janeiro e São Paulo, deve-se salientar que ambos os
municípios possuem reconhecimento internacional no que tange à
paisagem urbana, o que, em tese, contribuiria para que o legislador tratasse
do tema com maior rigor acadêmico e jurídico, visando a proteção efetiva
de um bem de tamanha notoriedade.
São Paulo, por exemplo, gerou repercussão mundial ao editar a lei
14.223/2006, popularmente conhecida como Lei da Cidade Limpa, que
limitou de forma expressiva os anúncios publicitários, fazendo desaparecer
"imensos anúncios luminosos que ocupavam paredes de edifícios e
infestavam as ruas e as avenidas" (GRANZIERA, 2019, p. 590). A lei
167
para o Brasil - importância que advém, além de fatores históricos e
culturais, de serem eles os dois maiores municípios em número de
habitantes (IBGE, 2021) e em Produto Interno Bruto do Brasil (IBGE,
2019)3 - é ainda mais relevante que se estude o tratamento legislativo que
seus Planos Diretores dão a direitos coletivos e difusos (tais como o direito
ao meio ambiente e, mais especificamente, o direito de paisagem). Até
porque ainda é frequente que municípios de menor porte sejam
"inspirados" por outros, de maior porte e/ou de maior relevância
econômica, ao elaborar sua legislação urbanística - isso quando não cedem
ao estímulo da mera "reprodução xerográfica" de Planos Diretores
(VILLAÇA, 2005, p. 18). É possível, portanto, que as diretrizes dadas para
os institutos em tais documentos legais sirvam de referência jurídica e
teórica em municípios de todo o país, o que pode ser objeto de um estudo
posterior.
Este artigo busca comparar se os Planos Diretores das duas
maiores cidades do Brasil compreendem o bem jurídico "paisagem" de
forma similar e condizente com o que convencionou-se chamar de "Direito
de Paisagem" no Brasil. Recentemente, parte da doutrina jurídica tem
defendido a importância de sistematização e regulação jurídica da
paisagem. Deste movimento surge o "Direito de Paisagem", que defende a
paisagem como objeto de uma ciência jurídica autônoma, tal qual ocorreu
com o Direito Ambiental a partir do século XX. É um movimento que
internacionalmente tem guarida na obra do francês Raphael Romi, em
capítulo que o autor defende a "emergência do Direito das Paisagens"
(MILARÉ, 2018). No Brasil, a tese de doutorado e posteriores obras da
professora Maraluce M. Custódio são importantes refererenciais teóricos
para o movimento, inclusive consagrando a expressão que ora usamos,
qual seja, "Direito de Paisagem".
O Direito de Paisagem é uma proposta de ciência jurídica fundada
no que a francesa Anne Sgard nos apresenta como a ética da paisagem.
Para a autora (2010), a ética da pa isagem exige a concepção da paisagem
3 Dados de 2021 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o
Município de São Paulo tem uma população estimada de 12.396.372 habitantes, a maior
população do paí s. O Rio de Janeiro fica em s egundo lugar com 6.775.661 habitantes (IBGE,
2021). Já em relação ao Produto Interno Bruto, dados de 2019 também do IBGE apontam que os
dois municípios se mantém na mesma colocação: São Paulo responde por 10,3% do PIB nacional
e Rio de Janeiro responde por 4,8%, respectivamente a primeira e segunda maiores colocações
do Brasil (IBGE, 2019).
166
Palavras-chave: Direito de paisagem; Paisagem; Plano Diretor;
Patrimônio; Bem ambiental; Rio de Janeiro; São Paulo.
Abstract: This work aims to make a brief comparative study between
landscape's functions as they are provided for in the current Master Plans
of Rio de Janeiro and São Paulo's Municipalities. Its main object of study
are the legal provisions of these Master Plans about the politic functions
related to landscape in each of the Municipalities (article 2, §4º, of Rio de
Janeiro's Master Plan; and article 85, caput, of São Paulo's Master Plan).
With this intention, this work follows the assumptions made by Gisele
Aquino Pires do Rio and Leo Name, in which Rio de Janeiro's current
Master Plan allowed for the reinvention of Rio's landscape as private
patrimony, converting to private domain functions of the landscape that
shoud remain on public domain. Thus, a legal comparison is made between
the landscape as "the most valuable asset of the city", as it is expressed by
Rio's Master Plan; and the landscape as an "environmental asset", as it is
expressed by São Paulo's Master Plan. At the end, it questions if there was
an effective public participation to the development of what should be
landscape in these Master Plans. It also concludes that any legal provision
about landscape should respect the social function of urban environment
as provided for in Brazil's Constitution, always following the supremacy
of public values as the public interest, the society's diffuse and collective
interest as well as the user's interest.
Keywords: Landscape law; Landscape; Master plan; Patrimony;
Environmental Asset; Rio de Janeiro; São Paulo.
1. Introdução
O Plano Diretor é - ou deveria ser - "o instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana" do município, conforme
preconiza o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)2. Considerando a
relevância ímpar que os municípios de São Paulo e Rio de Janeiro possuem
2 Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e expansão urbana. (BRASIL, 2001, online).
165
O DIREITO DE PAISAGEM E A FUNÇÃO EMINENTEMENTE
PATRIMONIALISTA DA PAISAGEM PREVISTA NO PLANO
DIRETOR DO RIO DE JANEIRO (ART. 2º, §4º):
UMA BREVE COMPARAÇÃO COM A PAISAGEM COMO “BEM
AMBIENTAL DO PLANO DIRETOR DE SÃO PAULO (ART. 85,
CAPUT)
Cauê Marques Maga lhães1
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo fazer um breve estudo
comparado entre as funções da paisagem no Plano Diretor do Rio de
Janeiro e no Plano Diretor de São Paulo atualmente vigentes, tendo como
recorte os dispositivos em que se expressam as funções políticas atribuídas
à paisagem em cada um dos municípios (art. 2º, §4º do Plano Diretor do
Rio de Janeiro e o art. 85, caput, do Plano Diretor de São Paulo). Para isso,
partimos dos pressupostos formulados por Gisela Aquino Pires do Rio e
Leo Name de que o Plano Diretor do Rio de Janeiro proporcionou uma
reinvenção da paisagem como "patrimônio", convertendo funções da
paisagem que deveriam ser de domínio público ao domínio privado.
Assim, faz-se uma contraposição entre a paisagem como o "bem mais
valioso da cidade", conforme expresso pelo Plano Diretor do Rio; e a
paisagem como "bem ambiental", conforme expresso pelo Plano Diretor
de São Paulo. Ao fim, questiona-se se houve efetiva participação popular
na construção de um conceito de paisagem nos Planos Diretores em
questão e conclui-se que qualquer interpretação legal sobre paisagem deve
respeitar a função social do meio ambiente urbano prevista na Constituição
Federal, com o consequente respeito à supremacia de valores como o
interesse público, o interesse difuso, o interesse coletivo e o interesse dos
usuários.
1 Mestrando em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Graduado em
Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Jornalismo pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia. Servidor efetivo do Tribunal de Contas do Estado do Pará.
163
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160
da fundamentação e chega-se a real necessidade de exaurimento das
questões suscitadas ao longo do processo.
Com isso, é esperado o momento em que o STF enfrente a questão
da fundamentação das decisões judiciais para que ultrapasse as limitações
impostas por sua própria jurisprudência, tornando o Poder Judiciário mais
aberto ao controle social e, simultaneamente, efetivo garantidor do devido
processo legal substancial.
Um maior detalhamento do que é necessário para qualificar uma
decisão judicial como completamente fundamentada é tarefa de maior
complexidade que demanda um aprofundamento nas pesquisas e no
espectro de decisões judiciais analisadas. Tal aprofundamento fica como
indicativo para que se dê continuidade ao presente estudo para que seja
possível contribuir com um Poder Judiciário mais transparente e, por
conseguinte, mais alinhado com o Estado Democrático de Direito.
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159
controle social fundamental em um Estado Democrático de Direito
(GRESTA, 2019).
Com isso, tem-se que a decisão judicial deve perpassar por um
necessário caminho de enfrentamento de todos os argumentos e provas
trazidos pelas partes, sem o qual se torna impossível conferir se a solução
da demanda chegou a termo de forma a atender aos princípios
democráticos inerentes ao dever de fundamentação das decisões e ao
devido processo legal.
A reconstrução do discurso intersubjetivo, materializado por meio
do contraditório realizado na condução do processo, permite a definição de
critérios de controle dos sentidos dispensados pelos órgãos do Poder
Judiciário quando da interpretação/aplicação do Direito, o que é essencial
para uma teoria da decisão judicial condizente com o regime democrático
e com as possibilidades de controle social (TRINDADE, 2019).
6. Conclusão
Perpassado o imbrincado caminho a que se propôs o presente
estudo, tem-se que desde a promulgação da CF/88 já se exigia dos órgãos
do Poder Judiciário um acurado cuidado no sentido de dar adequada
fundamentação às suas decisões. Todavia, como se pode perceber, a
obscuridade residia fundamentalmente na amplitude do que deveria ser
considerado como adequada fundamentação.
O STF, ao invés de dar maior proteção ao devido processo legal,
optou por uma interpretação mais defensiva e firmou a tese nº 339
limitando a fundamentação apenas ao que se chamou de sucinta.
Entretanto, o Poder Legislativo de forma explícita buscou afastar a
insuficiência das decisões judiciais ao fazer constar no novo CPC/2015 um
rol de delimitações para que fossem efetivamente cumpridas pelos
magistrados quando de seus pronunciamentos nos autos.
Desta forma, chega-se à conclusão de que o advento deste novo
diploma legal não pode ser interpretado com os mesmos paradigmas que
deram base para que a tese nº 339 fosse firmada pelo STF.
Ainda que se compreenda que a CF/88 dava margem a uma
interpretação comezinha do que viria a ser considerada uma adequada
fundamentação, com a nova proposta do CPC/2015 avança-se nas
exigências de uma correta decisão judicial. Deixa-se para trás a suficiência
158
Considerando o policentrismo desejável do regime democrático,
não é dado ao Poder Judiciário acastelar-se em seus domínios e não
explicitar as razões de suas decisões. Ao proceder de forma hermética, por
vezes o Poder Judiciário atrai para si um papel de última instância moral
da sociedade que, por sua vez, escapa aos controles institucionais,
mormente quando se cogita de jurisdição constitucional (MAUS, 2000).
Por tais razões é que se defende uma verdadeira teoria da decisão
que exija do órgão julgador a observância de critérios objetivos de decisão
para que seja minorado o caráter subjetivo do processo interpretativo. É
direito fundamental do cidadão que as decisões judiciais não sejam
abusivas e arbitrárias (VITÓRIO, 2011). Para controlar o Poder Judiciário
a principal ferramenta do cidadão é a informação. Considerando a
assimetria existente entre Estado e cidadão, é o fluxo de informações que
lança luz de parte a parte para que exista uma supervisão da sociedade em
relação ao agir estatal, da mesma forma como o Estado exige transparência
da sociedade (HANG, 2017).
Gresta, por exemplo, diferencia a legitimidade de uma decisão
judicial de uma decisão de certame eleitoral. Enquanto aquela emana da
publicidade com que se desvelam os argumentos que consubstanciam a
decisão de cada magistrado, esta se encontra assentada na
autodeterminação dos cidadãos que integram a comunidade. Para a autora,
juízes e tribunais devem apresentar premissas jurídicas e demonstrar a
correção entre aquelas e a decisão judicial (GRESTA, 2019).
Com base nos argumentos anteriormente trazidos, discorda-se
daqueles que defendem que há um único centro de poder capaz de predizer
o sentido da norma jurídica, seja tal figura identificada com um poder
soberano (ADVERSE, 2017), ou com o próprio juiz, tomado em uma
perspectiva de boca dos interesses da sociedade (FILGUEIRAS, 2017).
Neste sentido, o processo não deve ser visto como instrumento a
serviço das partes ou de consecução de determinada finalidade. A
instrumentalidade do processo joga por terra todos os esforços no sentido
de identificar o processo como uma construção democrática de proteção
das partes contra os arbítrios do Estado.
O processo democrático, diferente do instrumental, exige que
juízes apresentem argumentos dotados de objetividade para que seja
possível perscrutar quanto à coerência decisória e exercer, desta forma,
157
democrático de tal agir e vem ao encontro dos anseios de controle do Poder
Público pelos cidadãos. Vamos aos detalhes deste quadro.
5. Decisão Judicial como Construção Democrática e Passível de
Controle
A democracia não é algo natural. Tem historicidade e pode variar
em vários aspectos de sociedade para sociedade. Não obstante, há uma
regra básica de que deve haver uma separação entre cidadãos e Estado de
forma que o poder e a força do Estado têm sua fonte original no conjunto
dos cidadãos e a estes são dirigidas as ações estatais.
O Estado que surge com o advento da Constituição Federal de
1988 define alguns objetivos para a república que trazem consigo a linha
condutora de um agir estatal direcionado a construir uma sociedade livre,
justa e solidária. Além disso, define como garantia fundamental que os
julgamentos, por regra, serão públicos (artigo 93, inciso IX) e que é
assegurado a todos o acesso à informação (artigo 5º, inciso XIV).
Desta forma, dispensar a devida publicidade aos julgamentos e que
estes sejam expressados de forma transparente é um dos deveres para se
atingir um regime democrático pleno. Neste contexto, o Poder Judiciário
assume relevante papel em abrir-se ao escrutínio dos cidadãos para que
estes avaliem em que medida e quais parâmetros de justiça e de liberdade
vêm sendo colocados em prática na práxis dos magistrados (VALLE,
2013). Este abrir-se ao mundo guarda estreita relação com um aspecto
característico dos regimes democráticos, qual seja, a concatenação de
garantias e procedimentos relacionais que são baseados na unidade do
poder legitimamente constituído e na pluralidade dos atores sociais por ela
abarcados (TOURAINE, 1996).
Neste sentido, o Poder Judiciário é apenas mais um dos atores que
interferem para a consecução dos preceitos constitucionais e para o
fortalecimento da democracia desde que atue dentro dos limites a ele
dispensado. O regime democrático não anda bem quando identificado com
o monopólio do poder. Pelo contrário, a autonomia do sistema democrático
reside fundamentalmente na movimentação do sistema político e nos
rearranjos contínuos de interesses dos mais variados players (TOURAINE,
1996).
156
ladeado ao legislador, muito próximo à tradição do common la w
(SEGADO, 1995).
É cediço que o Poder Judiciário exerce papel relevante na atual
conjuntura. Muito por conta de uma fragilização e perda de legitimidade
dos Poderes Executivo e Legislativo. Esta atuação, inclusive, é objeto de
análise quanto aos limites desta função proeminente de um poder que, em
sua origem, era fortemente identificado pelo princípio da inércia10.
Todavia, é reservado ao Poder Judiciário, bem como aos demais poderes
independência e que os três atuem de forma harmônica.
Da mesma forma, quando se demanda o Poder Judiciário para que
se decida alguma questão tem-se que haverá uma necessária interpretação
do sistema normativo para que a solução da controvérsia seja estabelecida.
É da natureza do Direito o ato de interpretar. Entretanto, há uma diferença
inexpugnável entre o ato de interpretar uma norma aplicada a uma situação
concreta e ter total liberdade para chegar a conclusões completamente
dissociadas dos limites semânticos que o texto estabelece.
A interpretação tem limites que devem ser respeitados pelos atores
envolvidos com o processo interpretativo sob pena de o julgador atuar em
substituição ao legislador e, com isso, proferir decisões arbitrárias, visto
que de difícil controle democrático (OLIVEIRA, 2009).
Seguramente, o ato de interpretar e a clareza da fundamentação
acompanhada do respeito aos requisitos definidos pelo CPC/2015, são
necessários para possibilitar um controle democrático que incida sobre a
decisão judicial. Desta forma, torna-se urgente a superação da tese firmada
no tema de repercussão geral nº 339 ou, ao menos, que se deixe claro que
a tese deve ser compreendida em uma leitura conforme a legislação
ordinária.
Chega-se, assim, ao ponto de se compreender as razões pelas quais
se cobra do Poder Judiciário uma efetiva e exauriente abordagem da
decisão judicial. Tal exigência está diretamente relacionada com o caráter
10 Para uma melhor compreensão dos debates sobre judicialização da política e ativismo judicial
remete o eleitor aos seguintes textos: CITTADINO, Gisele. Poder judiciário, ativismo judiciário
e democracia. In: Revista Alceu, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 105-113, jul./dez. 2004; RAMOS,
Elival da Silva. Ativismo judicia l: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2015; AIETA,
Vânia Siciliano. Criminalização da Política: a falácia da ‘judicialização da política’ como
instrumento democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; e BARCELOS, Guilherme.
Judicializaçã o da política e ativismo judicial. Florianópolis: Habitus, 2018.
155
a incidência da tese nº 339 ao caso concreto uma vez que aquela ainda não
foi superada mesmo com o advento de nova sistematização.
No caso, o reclamante alegou que teve seu recurso ao STF negado
sob o fundamento de que não havia falta de fundamentação da decisão
recorrida e, com isso, o tribunal de piso compreendeu que se aplicava à
demanda a tese nº 339. Segue um trecho do voto do relator que ilustra o
enfrentamento da matéria, porém, sem modificação da interpretação:
[...]5. Observe-se, ademais, até o presente mom ento,
não houve revisão do precedente firmado no AI
791.292, Rel. Min. Gilmar Mendes. Não tendo havido
superação, não há que se falar em abertura da via da
reclamação constitucional fundada no art. 988, § 5º,
II, do CPC/15, em razão da sup erveniência de
legislação infraconstitucional.8
No caso do pronunciamento do STF, diferentemente daquele
realizado pelo STJ, ao menos não se reforçou a possibilidade de
inobservância dos ditames legais por parte dos magistrados ao decidirem
uma matéria.
Entretanto, a Corte constitucional perdeu importante oportunidade
para trazer novamente a questão ao debate e proceder à superação deste
precedente considerando as novas regras definidas pelo CPC/2015. Havia
no pedido recursal expressamente a necessidade de se enfrentar a tese
formulada à luz da nova sistemática do CPC/2015. Importante frisar que
tal superação de forma alguma pode ser vista como um enfraquecimento
do STF. Ainda que deva ser dispensada maior responsabilidade
argumentativa para justificar a superação de um precedente, esse não pode
servir de entrave para modificações no direito (VIANA; NUNES, 2018).
Há que se ter em mente que o novo Código de Processo Civil busca
adaptar a figura e a força vinculante dos precedentes para o sistema jurídico
brasileiro, embora haja quem afirme o contrário9. Neste particular, exsurge
a ideia de que na contemporaneidade a jurisprudência é fonte do direito
8 BRASIL, STF. Primeira Turma. Sessão Virtual. Ag.Reg. na Reclamação nº 32.098/DF. Relator:
Ministro Roberto Barroso. Data do Julgamento de 22/03/2019 a 28/03/2019. Data da
Publicação/Fonte: DJe 05/04/2019.
9 Sugere-se ao leitor, para uma análise crítica quanto à naturalização dos precedentes no Brasil a
obra STRECK, Lenio Luiz. Pr ecedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no
CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018.
154
aceitos e quais os refutados e em ambos os casos, os motivos que levaram
a tais conclusões (STRECK, RAATZ, 2017).
Embora o quadro normativo tenha clarificado as razões com que
se considera uma manifestação judicial devidamente fundamentada, tanto
o STF quanto o STJ ainda não deram a devida atenção aos novos
mecanismos de controle das decisões judiciais e preservam
posicionamento que, como indicaremos a seguir, deve ser revisto.
O STJ ao enfrentar a questão acerca da insuficiência da
fundamentação de decisão judicial já sob a égide do novo Código de
Processo Civil manteve o posicionamento insculpido na tese nº 339 do STF
e confirmou a desnecessidade de o magistrado responder a todas as
questões suscitadas pelas partes. A situação agrava-se, pois no referido
julgado o raciocínio esposado para fundamentar a questão foi o de que a
alteração trazida pelo artigo 489 do CPC/2015 veio, em verdade, para
confirmar a jurisprudência brasileira e não para modificá-la, vejamos:
[...]2. O julgador não está obrigado a responder a
todas as questões suscitadas pelas partes, quando já
tenha encontrado motivo suficiente para proferir a
decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do
CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência
sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de
Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as
questões capazes de infirmar a conclusão adotada na
decisão recorrida.[...]7
Percebe-se o equívoco quanto às razões que levaram o legislador a
envidar esforços no sentido de fazer constar no Código de Processo Civil
requisitos específicos para se aferir se uma decisão foi ou não devidamente
fundamentada.
De igual sorte, o STF já teve a oportunidade de enfrentar a questão
da nova sistematização processual frente à tese nº 339 e igualmente ignorou
a oportunidade para que a matéria fosse novamente discutida.
Ao julgar o Agravo Regimental na Reclamação nº 32.098 (DF), a
Primeira Turma do STF compreendeu, por maioria, que não caberia afastar
7 BRASIL, STJ. S1 Primeira Seção. EDcl no MS 21315/DF. Relatora Ministra Diva Malerbi
(Desembargadora convocada TRF 3º Região). Data do Julgamento 08/06/2016. Data da
Publicação/Fonte: DJe 15/06/2016.
153
A técnica redacional utilizada pelo legislador para formular a
construção do artigo 489, §1º, do CPC/15, foi no sentido de positivar aquilo
que não se considera manifestação judicial devidamente fundamentada, ou
seja, trabalhou o congressista com a lógica da exclusão. Neste sentido, caso
em alguma decisão for possível identificar um dos vícios definidos nos
incisos do §1º do artigo 489 a decisão encontrar-se-á eivada de nulidade.
É inegável que esta nova previsão legal exige maior
responsabilidade por parte do órgão julgador e busca impedir que se
perpetue no sistema judiciário brasileiro a naturalização que ocorre com
decisões singelas que não demonstram as razões de decidir. As decisões,
por vezes, resumem-se a mera citação de dispositivo normativo ou a casos
julgados anteriormente sem preocupar-se em demonstrar o liame que o
caso julgado guarda com a fundamentação. Desta forma, prejudica o direito
de defesa ao negar às partes ter a real dimensão do que deve ser utilizado
como contra-argumento em eventual propositura de recurso (HERZL,
2019). A carência na exposição de motivos para fundamentação de uma
decisão judicial é, com o CPC/2015, combatida de forma direta, na medida
em que cobra do magistrado especial atenção no momento de demonstrar
às partes e aos demais cidadãos as razões de decidir. É necessário que
sejam expostos de forma detalhada os pilares que sustentam a decisão e,
com isso, coibir práticas costumeiras de se utilizar lançar mão de artifícios
insuficientes para melhor deslinde da matéria (SOUSA, 2017).
Neste ponto, faz-se necessária uma intransigente defesa de que é
dever do magistrado possibilitar às partes obter uma decisão judicial
objetivamente correta. Não se está aqui defendendo que todos os atores do
processo saiam satisfeitos com o resultado do julgamento. Isto é situação
contingencial e possivelmente inalcançável em circunstâncias extremas de
determinadas lides. Todavia, ainda que o resultado no julgamento não
tenha sido favorável para uma das partes, o fato de a decisão ter
considerado os argumentos e provas dos envolvidos diminui a
possibilidade de arbitrariedades (ARANGO, 2019).
De igual sorte, ao juiz não é dado concordar com todos os
argumentos utilizados pelas partes de um processo, mas é exigência de
transparência e de dar efetividade ao contraditório que, ao proferir a
decisão, tenha o devido cuidado para demonstrar quais os argumentos
152
Cabe, então, investigar se, com a nova regulamentação
estabelecida no âmbito do Processo Civil, os órgãos do Poder Judiciário
absorveram e implementaram as alterações para uma melhor transparência
e controle das decisões judiciais.
4. A Nova Delimitação da Decisão Judicial Advinda com o
A tese de repercussão geral nº 339, como já dito, trouxe uma
mínima noção do que seria fundamentação de uma decisão no contexto do
sistema normativo à época. Contudo, a tese firmada em 2010 teve profunda
transformação com o advento do novo Código de Processo Civil. Isto
porque enquanto em 2010 não existia maior detalhamento quanto aos
requisitos para se considerar uma decisão fundamentada, ou seja, os órgãos
do Poder Judiciário utilizavam como referência basicamente o texto
constitucional, atualmente há, pelo menos, as exigências contidas no artigo
489, §1º do CPC/2015.
Aqui cabe um parêntese para deixar claro que não se comunga da
interpretação de que a falta de detalhamento normativo dava ao julgador a
liberalidade para decidir sem explicitar exaustivamente as razões e
raciocínios que fizeram com que chegasse a uma determinada decisão.
O fato de a CF/88 não detalhar de forma pormenorizada os itens
que devem constar em uma decisão judicial não abre caminho ao órgão
julgador para arbitrariedades. Precisa, pelo contrário, respeitar os
princípios que incidem no caso concreto e afastar eventuais preferências
pessoais selecionadas ao acaso e lançar mão de padrões metajurídicos
(DWORKIN, 2010).
Desta forma, mesmo antes do advento da nova redação do Código
de Processo Civil as decisões não poderiam se limitar a reproduzir de forma
insuficiente textos normativos ou decisões pretéritas sem explicitar os
motivos pelos quais as fontes utilizadas guardavam relação direta com o
caso concreto.
Feito este aparte passa-se a avaliar as inovações trazidas pelo
Código de Processo Civil de 2015 confrontado com a tese nº 339 e alguns
exemplos recentes de manifestações que enfrentaram a matéria e como
foram definidos os novos parâmetros decisórios.
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decisões caso não concorde com as manifestações. Desta forma, uma
correta fundamentação é essencial para que aquela pessoa que não ficou
satisfeita com o pronunciamento tenha elementos concretos para contrapor
em instância superior (ROSA, 2016).
Importante destacar que a fundamentação ora exigida não se trata
de mera formalidade para cumprir, de forma protocolar, as exigências
constitucionais. O nível de exigência deve ser muito maior. Deve ser
demandado do órgão julgador um elevado esforço para explicitar todos os
processos e intervenções das partes que, direta ou indiretamente,
influenciaram na tomada de decisão. A fundamentação, por sua vez, não
deve servir apenas para encobrir, de forma racional, as verdadeiras
escolhas feitas pelo magistrado (STRECK, RAATZ, 2017).
Pode-se apontar, ainda, um aspecto relevante de decisões judiciais
devidamente fundamentadas que, embora não seja a perspectiva sob
análise, cabe apenas apontar para que seja demarcada possibilidade de
análise futura. Esta abordagem é relativa ao caráter pedagógico de uma
decisão bem fundamentada visto que, desta forma, os interlocutores e,
principalmente os destinatários da norma, terão clareza quanto à
antijuricidade de suas atitudes.
O fato de decidir uma demanda não pode ser caracterizado de
forma alguma como um processo de escolha. O ato de escolher alguma
coisa tem eminentemente um caráter subjetivo diretamente relacionado às
aspirações e percepções íntimas do indivíduo. Não é isso que o
jurisdicionado procura ao buscar uma resposta do Poder Judiciário
(STRECK, 2018). A discricionariedade que faz prevalecer valores pessoais
do julgador deve ser rechaçada sob pena de não ser possível um efetivo
controle das decisões judiciais (ROSA, 2016).
Assim, a decisão judicial como garantia de direito fundamental do
cidadão em relação ao arbítrio do Estado deve reconstruir todo o caminho
dos conceitos aplicados no pronunciamento judicial e explicitar às partes
todo o cabedal de elementos que influenciaram a deliberação (CABRAL;
PESSOA, 2018).
Como forma de corroborar e tornar mais fácil a identificação dos
pronunciamentos jurisdicionais que atendem de forma inequívoca o dever
de fundamentação o Congresso Nacional fez constar, como anteriormente
mencionado, a correção legislativa da jurisprudência no texto do novo
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Embora em uma leitura açodada possa se pensar que nestes temas se
encerram as previsões de direitos fundamentais, a própria CF/88 expressa
e rapidamente desfaz tal confusão ao estabelecer, no artigo 5º, §2º, que é
possível haver outros direitos fundamentais, seja na própria CF/88, in
verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”, ou quando
advindos de diplomas estranhos a ela: “ou dos tratados internacionais em
que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Ingo Sarlet (2007), por exemplo, ao analisar os direitos
fundamentais previstos na CF/88 deixa claro que o caráter analítico e
regulamentador identificado facilmente no Título II, com seus sete artigos,
seis parágrafos e cento e nove incisos, não encerram o tema no bojo da
Carta Constitucional que traz, de forma dispersa, outros direitos
fundamentais.
Como ter certeza que, considerada a dispersão anteriormente
mencionada, a fundamentação das decisões, prevista no artigo 93, inciso
IX, da CF/88 é efetivamente norma de direito fundamental? Ora, é possível
enquadrar o direito a uma decisão fundamentada como uma das garantias
do indivíduo contra arbítrios estatais.
Tal proteção, por sua vez, deriva do princípio constitucional do
devido processo legal que positiva no artigo 5º, inciso LIV, os seguintes
termos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”. Pode-se dizer, ainda, que há amparo igualmente do acesso
à justiça. Cappelletti (s/d), por exemplo, afirma que no Estado Social juízes
e tribunais ganham legitimidade social e convertem-se em realizadores de
direitos típicos desta forma de Estado.
Neste sentido, explicitar as razões de decidir de forma clara e
objetiva torna-se obrigação preponderante do magistrado para com o
Estado Democrático de Direito e, por conseguinte, com a preservação e
respeito aos direitos fundamentais do cidadão.
Compreendida a centralidade da fundamentação das decisões, cabe
avançar na análise para identificar o grau de exigência para que se
considere que a manifestação do Poder Judiciário cumpriu corretamente
sua função social.
Uma decisão judicial corretamente motivada, como já visto, é uma
garantia fundamental. Isto porque, permite que o indivíduo se proteja de
arbitrariedades do Estado-Juiz e busque os meios legais para combater as
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uma vez que possibilita criar anteparos institucionais aos abusos cometidos
pelo Supremo Tribunal Federal. (ANTONELI, 2015)
Não obstante a disputa por um papel relevante na interpretação
constitucional é necessário perquirir em que medida o dever de
fundamentar as decisões encontra guarida entre as normas de direitos
fundamentais existentes na Constituição Federal de 1988.
Isto é importante para que seja possível definir em que medida a
não fundamentação importa em um desrespeito grave do núcleo de direitos
fundamentais que se encontra na CF/88.
3. O Artigo 93, Inciso IX, da CF/88, Lido como Norma de
Preceito Fundamental
Como visto até o presente momento, há um debate sobre em que
consiste o dever de fundamentar as decisões judiciais e de que forma a
expectativa da população é protegida da prestação ineficiente do dever do
Estado-Juiz em dar transparência as suas manifestações.
Uma das questões que se busca responder é: há efetivamente um
direito fundamental a uma decisão fundamentada? Em caso positivo, é
possível considerar suficiente seguir apenas os ditames estabelecidos pela
tese nº 339?
Pois bem, é cediço que a Constituição Federal de 1988 é
extremamente generosa ao estabelecer normas de direitos fundamentais.
Característica inclusive que não fica adstrita ao Brasil, mas perpassa
grande parte dos países que atravessaram períodos de exceção ao longo do
século XX6.
A amplitude do rol de direitos fundamentais é tamanha que se
cogita que atualmente o principal problema dos direitos fundamentais não
é enunciá-los, mas protegê-los e dar-lhes concretude (VALLE, 2013).
A CF/88 reserva seu Título II aos direitos e garantias
fundamentais. Especificamente neste título são abordados os temas
referentes aos direitos e deveres individuais e coletivos, aos direitos
sociais, à nacionalidade, aos direitos políticos e aos partidos políticos.
6 Sugere-se, como exemplo, a leitura de PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição
de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República
Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição mexicana de
1917, onde a autora relaciona o extenso rol de direitos existentes em ambas constituições.

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