Cônjuge e companheiro são herdeiros necessários?

AutorGiselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Páginas67-88
CÔNJUGE E COMPANHEIRO
SÃO HERDEIROS NECESSÁRIOS?
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Professora Titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
Doutora e Livre Docente pela mesma Faculdade de Direito da USP. Ex-Procuradora
Federal. Advogada, consultora e parecerista jurídica. Fundadora e Diretora Nacional
(região Sudeste) do Instituto Brasileiro de Direito de Família e Sucessões – IBDFAM.
Diretora Nacional (região Sudeste) do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Membro do
Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil – IBERC. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Contratual – IBDCont.
Sumário: 1. Introdução – 2. O RE 878.694/MG e a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código
Civil – 3. Sucessão no Brasil; 3.1 A ordem de vocação hereditária e a legítima; 3.2 A progressiva
proteção sucessória do companheiro ao longo da história e a involução da disciplina normativa do
Código Civil – 4. A distensão subjetiva do art. 1.829 do código civil; 4.1 O tratamento igualitário de
cônjuge e companheiro à luz da equiparação funcional das entidades familiares; 4.2 O companheiro
como herdeiro necessário; 4.2.1 Coerência hermenêutica e empenho dogmático; 4.2.2 Tratamento
jurisprudencial – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 878.694/MG, em 10 de maio de
2017, pelo Pleno do STF representou o reconhecimento e a supressão de uma situa-
ção de injustiça, positivada no art. 1.790 do Código Civil, que maculava a disciplina
sucessória do companheiro. A decisão pela inconstitucionalidade de referido artigo
de lei foi uma mensagem clara com respeito à equiparação das entidades familiares
e à necessidade de o sistema jurídico, mais do que atender, realizar, efetivamente, os
paradigmas constitucionais.
Desde o início da década de 2000, apontávamos para o desacerto do legislador
do Código Civil, então em tramitação, em ignorar as conquistas jurídicas dos compa-
nheiros, conferidas por diversas leis editadas nos anos que seguiram à promulgação
da Carta de 1988, e em arrojar a união estável para posição hierarquicamente inferior
ao matrimônio, pelo menos em termos de tutela jurídica, em total desacordo com os
preceitos insculpidos na Constituição.1
1. A memória legislativa do Código Civil fornece-nos precioso material para avaliarmos como se deu a tramitação
do Código vigente e para analisarmos de que inf‌luências estava imbuído o legislador. A propósito, quando da
justif‌icativa da Subemenda de Redação do Relator-Geral n. 56, que visava disciplinar a vocação hereditária do
companheiro, anotou o deputado Ricardo Fiuza a inconveniência de tratamento privilegiado do companheiro
em relação ao cônjuge, uma vez que a união estável era como um caminho para o matrimônio ou, quando muito,
como um matrimônio incompleto. Segundo o deputado, o Projeto deveria ref‌letir “a natureza modelar do casa-
mento, sua irrecusável preeminência” (PASSOS, Edilenice; LIMA, João Alberto de Oliveira. Memória legislativa
do Código Civil – Tramitação na Câmara dos Deputados: segundo turno. v. 4. p. 73 Brasília: Senado Federal, 2012.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242712. Acesso em: 20 jul. 2020.).
GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA
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O reconhecimento da inconstitucionalidade de tratamento legal diverso para
a concorrência do cônjuge e a do companheiro, não obstante tenha tardado, enf‌im
ocorreu. Foi um passo importante, mas ainda o primeiro de um longo caminho que
precisa ser trilhado.
O objetivo do presente artigo é contribuir com as discussões que têm buscado
delinear esse caminho, apontando para a equiparação dos direitos sucessórios do
cônjuge e do companheiro. Muitas outras noções e normas precisarão ser revistas,
das quais uma das mais importantes é o reconhecimento do companheiro como
herdeiro necessário. Este é o objeto e o foco do trabalho.
Muito embora amparado na técnica processual2, ao julgar o RE 878.694/MG, o
STF perdeu a oportunidade de declarar o companheiro como herdeiro necessário,
o que, em boa medida, cooperaria para a sua plena equiparação sucessória ao côn-
juge, além de adiantar uma discussão que, sem dúvida, precisará ser enfrentada no
futuro, muito embora já venha sendo debatida, nas instâncias inferiores da Justiça,
com aparente uniformidade.
De posse desses pressupostos, nas linhas que seguem, em análise histórica,
doutrinária e jurisprudencial, buscamos discutir os efeitos do julgamento do RE
878.694/MG sobre o Direito das Sucessões no Brasil, defendendo o reconhecimento
do companheiro como herdeiro necessário.
2. O RE 878.694/MG E A INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO
O RE 878.694/MG consiste em reclamo tirado contra decisão do TJMG que, na
linha do quanto estabelecido pelo STJ, reformou a sentença que julgou o caso em
primeiro grau de jurisdição, limitando, nos termos do art. 1.790 do Código Civil,
a um terço dos bens adquiridos, onerosamente, durante a união estável o direito
sucessório de companheira que litigava contra os irmãos do autor da herança.
No recurso extraordinário interposto pela companheira, analisou-se a validade
de referido artigo de lei, buscando responder se a distinção, para f‌ins sucessórios,
entre a família proveniente do casamento e a proveniente de união estável era legíti-
ma. Prevaleceu a posição traçada no voto do relator, Ministro Luís Roberto Barroso,
posição esta que foi seguida pela maioria da Corte.
Em seu voto, o Ministro relator defendeu a necessidade de se reconhecer a família
como o ambiente de desenvolvimento dos seus membros, e não como mera instituição
2. m dos princípios que regem a atividade decisória do juiz é o princípio da congruência. Foi a adstrição a esse
princípio que impediu o Supremo de avançar na discussão do regime sucessório do companheiro, não obstante
a provocação do IBDFAM a que Corte se manifestasse acerca da aplicabilidade, às uniões estáveis, do art. 1.845 e
de outros dispositivos do Código Civil que conformam o regime sucessório dos cônjuges (EDcl. no RE 878.694/
MG). A decisão unânime dos Ministros foi pela rejeição dos embargos de declaração, aduzindo que “[n]ão há que
se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao art. 1.845 ou qualquer
outro dispositivo do Código Civil, pois o objeto da repercussão geral reconhecida não os abrangeu. Não houve
discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão
a ser sanada” (STF, EDcl.no RE 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJ 23.10.2018).

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