A interpretação dos testamentos na visão dos tribunais

AutorDaniela de Carvalho Mucilo
Páginas287-302
A INTERPRETAÇÃO DOS TESTAMENTOS
NA VISÃO DOS TRIBUNAIS
Daniela de Carvalho Mucilo
Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,
Itália. Professora e Coordenadora de Cursos de Pós-graduação em Direito de Família
e Sucessões. Advogada.
Sumário: 1. A importância do testamento – 2. A rigidez testamentária – 3. Natureza jurídica do
testamento – 4. O discernimento do testador (vícios sanáveis e vícios não sanáveis) – 5. Vícios ex-
trínsecos do testamento. Vícios puramente formais e vícios formais-materiais – 6. Considerações
nais – 7. Referências.
1. A IMPORTÂNCIA DO TESTAMENTO
Falar de testamento é tratar, acima de tudo, da expressão da vontade. Da reali-
zação da vontade do autor da herança para que f‌ique gravada e executada fazendo
sua voz ecoar com o seu desaparecimento físico.
Alie-se a isso, a perpetuidade ou destinação do direito de propriedade,1 aqui,
obrigatoriamente, visto, em sua mais ampla concepção, abrangendo desde a clás-
sica ideia de herança imobilizada para chegar à contemporaneidade e realidade da
herança digital.
Referendando, de maneira quase insistente, a necessária prática da autonomia
da vontade, da autorregulamentação, como forma de atuar em escolhas pessoais, ou
melhor, na lição de Pietro Perlingieri o poder, reconhecido ou concedido pelo ordena-
mento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas [...]
como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos,2
o testamento marca no tempo a vereda das escolhas do testador.
Assim é que, novamente e de maneira insistente, o testamento deveria ser me-
canismo natural, inserido e propagado socialmente, para que as pessoas pudessem
1. “A possibilidade de transmitir bens por testamento, a despeito de atacada por alguns, representa, de certo
modo, um corolário do direito de propriedade” (RODRIGUES, Silvio, Direito das sucessões. v. 7. 25. ed. São
Paulo: Saraiva, 2002. p. 143). Ainda sobre o impacto do direito de propriedade para o direito das sucessões,
ensina Pontes de Miranda que enquanto não apareceu a propriedade individual, o conceito de sucessão a causa
de morte não podia corresponder ao dos tempos de hoje. Os f‌ilhos já eram titulares do direito em comum (MI-
RANDA, Francisco Pontes de. Tratado de direito privado, direito das sucessões. t. LV. Rio de Janeiro: Borsoi,
1968. p. 7).
2. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria
Cristina de Cicco. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2002. p. 17.
DANIELA DE CARVALHO MUCILO
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ao menos, exercitar e decidir sobre sua necessidade ao não; sobre a opção entre a
sucessão legítima ou a testamentária.3
Ao contrário, a sucessão testamentária é, ainda hoje, de maneira quase ingênua,
vista como algo distante, mal agourado, distante da realidade de uma grande parte
da população, servindo, def‌initiva e equivocadamente, apenas para poucas e aqui-
nhoadas pessoas.4 A crença se completa, afastando-se da sucessão testamentária, a
pessoa sem grande patrimônio a partilhar (não obstante, talvez, maior preocupação
recaia sobre os mais vulneráveis).
Mas não é apenas esta lenda popular que repousa sobre o manto do testamento.
A sua rigidez e seu excesso de formalismo, em muito contribuem para que de pouco
uso fosse adotado e absorvido pela cultura nacional, afastando, a sociedade, de um
exercício poderoso e ef‌icaz de manifestação de vontade.
Não bastasse esta fulcral relevância – a de permitir a autodeterminação, da
autorregulamentação da pessoa para além de sua vida, organizando e planejando a
sua sucessão – o direito das sucessões, pelas suas importantes e recentes mudanças,
calcadas nas últimas duas décadas impõem uma nova forma de olhar para a f‌initude
e para a organização da sucessão.
Estas mudanças que obrigam um novo olhar ou, muito mais do que isso, um
importante exercício de autorref‌lexão, foram motivadas por questões econômicas e
sociais. A reorganização da família, a sua pluralidade, a sua convivência intergeracio-
nal, tudo isso leva ao questionamento (e a não mais a singela aceitação sem preceder
de uma necessária escolha) da pertinência e absolutismo da sucessão legítima,5 como
única forma de suceder.
Alie-se a todos estes motivos, a f‌initude que se fez mais acentuada e presente,
promovida à dura realidade da perda de milhares de brasileiros, vitimados pela
pandemia causada pelo vírus da COVID-19 que assolou o mundo no ano de 2020.6
3. E não esta ideia quase obrigatória, tão fomentada pela legislação civil, da sucessão legítima como única ou
melhor forma de sucessão mortis causa.
4. É interessante notar como parte da própria doutrina clássica civilística brasileira não via no testamento algo
de inovador, tampouco revelador da verdadeira vontade do testador, talvez ref‌lexo de não ser a forma de
sucessão praticada no país: “Os autores são unânimes em acentuar a vetustez do direito de testar e não se
cansam de pôr ênfase na importância que ostentava no passado, principalmente entre os romanos, em que
o testamento era usado já antes da Lei das XII Tábuas. Todavia, no Brasil é reduzida a difusão da sucessão
testamentária, e o eminente Washington de Barros Monteiro, com sua enorme autoridade de grande juiz
que foi, informa que, em cada dez sucessões legítimas que se abrem, ocorre uma sucessão testamentária,
f‌ixando-se, portanto, uma proporção de dez por um em favor da primeira.” (RODRIGUES, Silvio, Direito
das Sucessões. v. 7. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 143).
5. Assim, é fundamental verif‌icar a evolução da família e de seus conceitos e de que forma o Código Civil, na
legalidade constitucional, é capaz de acompanhar essas transformações. É essencial, ainda, ref‌letir sobre o
direito sucessório no contexto da família com suas atuais características. (MUCILO, Daniela; TEIXEIRA,
Daniele Chaves. COVID-19 e planejamento sucessório: não há mais momento para postergar. In: NEVARES,
Ana Luiza Maia; XAVIER, Marília Pedroso; MARZAGÃO, Silvia Felipe. Coronavírus: impacto no direito de
família e sucessões. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 336.).
6. O ano de 2020 foi, fatalmente, marcado pela pandemia da Covid-19 e suas quase 200.000 vítimas fatais,
apenas no Brasil.

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