Existe o droit de saisine no sistema sucessório brasileiro?

AutorDaniel Bucar
Páginas1-22
EXISTE O DROIT DE SAISINE NO SISTEMA
SUCESSÓRIO BRASILEIRO?
Daniel Bucar
Professor de Direito Civil da UERJ e do IBMEC. Doutor e Mestre em Direito Civil – UERJ.
Especialista em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino.
Sumário: 1. Introdução – 2. Sistemas de transmissão causa mortis: técnicas e modelos; 2.1 O sistema
de transmissão direta e imediata; 2.2 Sistema de transmissão diferida; 2.3 Sistema de transmissão
indireta e diferida – 3. O sistema sucessório brasileiro; 3.1 Direito Civil; 3.2 Direito Processual
Civil (e Notarial); 3.3 Direito Tributário – 4. Por uma melhor compreensão do sistema sucessório
brasileiro – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Na doutrina nacional do Direito das Sucessões, parece não haver controvérsia
a ideia de que o Brasil teria adotado o modelo de saisine, segundo o qual, conforme
dicção artigo1.784, Código Civil, “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo,
aos herdeiros legítimos e testamentários 1-2. Vigente desde 2003, a referida disposição
repete, como pequena alteração, o artigo1.572 da legislação anterior, de cujo texto
foi suprimida a expressão “domínio e posse”.
1. Neste sentido, diversos manuais a respeito da matéria, escritos por autores de distintas gerações e que se utilizam de
diferentes metodologias para embasar suas obras, tais como: GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro,
volume 7: direito das sucessões. 6ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes
Novaes; CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões.5ª Edição revista, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2014. p. 38/40; GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA, Rodolfo Filho. Novo curso de direito civil, volume 7: direito
das sucessões. São Paulo, Saraiva Educação, 2019. p. 71/76; ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves
de. Curso de direito civil: sucessões. 3ª ed. Salvador: Editora Jus Podvm, 2017. p. 112/116; VENOSA, Silvio, Direito
civil: direito das sucessões. 13ª Edição, São Paulo: Atlas, 2013, p.13/15; TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil:
volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.1888/1889; TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia;
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Direito das Sucessões. In: TEPEDINO, Gustavo (org). Fundamentos de Direito
Civil, volume 7. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 34/35; WALD, Arnoldo, Direito das Sucessões, volume 6. 15ª
Edição, São Paulo: Saraiva, 2012, p.22; Para além dos manuais, a mesma posição é encontrada em livro resultado
da tese de livre docência de HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Morrer e suceder: passado e presente
da transmissão sucessória concorrente. 2ª Edição, São Paulo :Editora Revista dos Tribunais, 2014, p.317/320. Não
só, mas também em obras clássicas, vide: GOMES, Orlando. Sucessões, atualizado por Mário Roberto Carvalho
de Faria. 17ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 16. MIRANDA, Pontes de. Direito das Sucessões: sucessão em
geral, sucessão legítima. Atualizado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Paulo Luiz Netto Lôbo. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.Tomo LV, coleção tratado de direito privado: parte especial, p.65/70;
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume VI: Direito das Sucessões, atualizado por Carlos
Roberto Barbosa Moreira. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 38/40.
2. Talvez sustentando a opinião mais dissonante sobre o assunto, dentre os autores que o pesquisam, Paulo
Lôbo, embora admitindo a saisine no Brasil, busca destacar, de todo modo, algumas peculiaridades do sistema
brasileiro para defendê-la. Sob esta perspectiva, remeta-se o leitor para LÔBO, Paulo. Direito Constitucional
à Herança, Saisine e Liberdade de Testar. Anais do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família. p. 35-46.
Disponível em https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/290.pdf. Acesso em 14.07.2021.
DANIEL BUCAR
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No entanto, a confrontação do dogma nacional da saisine com o sistema suces-
sório brasileiro, que vai além do Direito das Sucessões como ramo do direito civil,
apresenta certa perplexidade prático-jurídica. Af‌inal, de um lado, a obrigatoriedade
do inventário e a ausência de responsabilidade patrimonial dos sucessores para além
dos valores recebidos (intra hereditatis) são escolhas de política legislativa distantes
de uma transmissão imediata da propriedade entre particulares. Enquanto isso, de
outro lado, efeitos pragmáticos de aquisição direta da herança, consubstanciados
no acesso livre e desimpedido aos bens que a compõem – a exemplo, a transmissão
incontinenti de bens móveis custodiados em nome do falecido (valores mantidos em
instituição f‌inanceira) – são impensáveis no país.
Portanto, a unidade complexa das normas, que regulam o fenômeno sucessório,
e a sua aplicação prática no cotidiano estão em verdadeiro desalinho com a interpre-
tação recorrente que se dá ao art.1784, Código Civil. Não por outro motivo, é preciso
compreender a sucessão causa mortis brasileira a partir do sistema que a legislação lhe
destina. Compreender o direito civil sucessório de modo isolado signif‌ica fechar-se,
hermeticamente, à suposta existência de microssistemas dotados de independência3,
quando, em verdade, a própria disciplina da transmissão causa mortis vista por outras
matérias do direito – mais especif‌icamente, o direito processual e o tributário – revela
incompatibilidade à dita saisine.
Assim, a desconstrução do dogma é medida que se impõe, de forma que não
haja ilusão quanto à constatação jurídica que aqui se demonstra: não há direito de
saisine no Brasil.
2. SISTEMAS DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS: TÉCNICAS E MODELOS
Até o presente momento, o direito sucessório justif‌ica-se segundo a necessidade
de manutenção das situações jurídicas patrimoniais passíveis de sucessão4-5 a um
3. Quanto aos problemas de hermenêutica jurídica gerados pela lógica de microssistemas, TERRA, Aline de
Miranda Valverde. Liberdade do intérprete na metodologia civil constitucional. In: SCHREIBER, Anderson;
KONDER, Carlos Nelson (coord). Direito Civil Constitucional. São Paulo: Atlas, p. 47-70, 2016.
4. Existe, também, relativo consenso entre os autores de direito sucessório ao af‌irmarem que os direitos patrimo-
niais cuja titularidade detinha o falecido transmitem-se aos herdeiros, salvo os personalíssimos, como o usufruto
concedido ao autor da herança ou o seu direito à pensão previdenciária, ao passo que os direitos existenciais, dos
quais os direitos da personalidade, que constituem o principal exemplo, não são transmissíveis. Neste sentido,
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; CAHALI, Francisco José. Direito das Sucessões. 5ª Edição revista,
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 28. Sob tal perspectiva, Gustavo Tepedino, Ana Luiza Maia
Nevares e Rose Melo Vencelau Meireles mencionam, inclusive, a existência de um princípio da patrimonialidade
da sucessão (TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Direito das
Sucessões. In: TEPEDINO, Gustavo (org). Fundamentos de Direito Civil, volume 7. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
p. 13). Enf‌im, consigne-se que a internet tem remodelado essa lógica de transmissibilidade ora enunciada, vez
que as situações jurídicas patrimoniais ofertadas ao usuário para aquisição são distintas, muitas das vezes, da
propriedade, extinguindo-se com a morte do titular originário. De outro lado, a pessoa ganha maior autonomia
para expressar a vontade de que as manifestações virtuais de sua personalidade continuem expostas na rede quando
de sua morte. Sobre o assunto, BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Situações patrimoniais digitais e ITCM:
desaf‌ios e propostas. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; LEAL, Lívia Teixeira. Herança digital: controvérsias
e alternativas. Indaiatuba: Editora Foco, p. 273/288, 2021. p. 275-276.
5. Sobretudo, a perpetuação do direito real de propriedade.

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