Repercussões da separação de fato no direito sucessório brasileiro

AutorAna Carla Harmatiuk Matos e Isabella Silveira de Castro
Páginas23-42
REPERCUSSÕES DA SEPARAÇÃO DE FATO
NO DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO
Ana Carla Harmatiuk Matos
Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Derecho
Humano pela Universidad Internacional de Andalucía. Tutora in Diritto na Universidade
di Pisa-Italia. Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universida-
de Federal do Paraná. Vice-Presidente do IBDCivil. Diretora Regional-Sul do IBDFAM.
Advogada militante em Curitiba. Conselheira Estadual da OAB-PR.
Isabella Silveira de Castro
Mestranda bolsista CAPES em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal
do Paraná. Graduada em Direito pela PUC-Campinas.
Sumário: 1. Introdução – 2. Denição, natureza jurídica e efeitos da separação de fato – 3. O art.
1.830 do código civil e a vocação hereditária do cônjuge separado de fato – 4. Art. 1.801, III, do CC e
a legitimidade sucessória do concubino – 5. A possível existência de famílias simultâneas – 6. Outras
questões sobre a separação de fato que reverberam no direito sucessório – 7. À guisa de conclusão:
separação de fato e direito sucessório na prática do planejamento sucessório – 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A separação de fato foi pela primeira vez reconhecida pelo Direito Brasileiro
como geradora de efeitos jurídicos quando da aprovação da Lei do Divórcio (Lei nº
6.515), em 1977. Inicialmente a lei previa a possibilidade de que os casados antes de
28 de junho de 1977, desde que já separados de fato por 5 (cinco) anos, pudessem
promover a ação de divórcio. Posteriormente, em 1989, o art. 40 da lei, que tratava
da matéria, foi alterado para permitir o divórcio de todos os que estivessem separados
de fato por mais de 2 (dois) anos. Esta alteração serviu para adaptar a legislação à
nova ordem constitucional inaugurada em 1988, tendo em vista que Constituição
Democrática, celebrando a liberdade, permitiu o divórcio, condicionando-o, to-
davia, à comprovação de separação de fato por mais de dois anos ou de separação
judicial por mais de um ano. Esta abertura constitucional ao divórcio fez com que
a nossa legislação fosse qualif‌icada por alguns como uma das “mais audazes”, pois,
supostamente, “declarando que o casamento civil poderia ser dissolvido mediante
comprovada separação de fato por mais de dois anos, escancarou as portas para o
divórcio”1. Por outro lado, foi celebrada por outra parcela da doutrina que identif‌icou
1. Este é posicionamento de Silvio Rodrigues: “Com efeito, a Constituição de 1988, com seu apontado me-
nosprezo pelo casamento, colocou a nossa legislação divorcista entre as mais audazes, pois declarando que
o casamento civil poderia ser dissolvido mediante comprovada separação de fato por mais de dois anos,
escancarou as portas para o divórcio. Pois a mera separação de fato, por aquele período, permitia a qualquer
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a opção constitucional como o reconhecimento da liberdade individual e a transição
da família f‌im, institucional, para a família meio, lugar de expressão das individua-
lidades de seus membros. 2
Sabe-se que, desde a Emenda Constitucional nº 66 de 2010, o divórcio independe
de prévia separação judicial ou de fato, constituindo verdadeiro direito potestativo
das partes. Inclusive, a extinção da separação judicial de nosso ordenamento jurídico
é sustentada por grande parte da doutrina.
Neste cenário, em que a separação de fato deixa de ser requisito alternativo
ao divórcio, surgem dúvidas sobre sua aptidão para produção de efeitos jurídicos e
sobre quais são estes efeitos.
O presente artigo tem o objetivo de investigar a separação de fato, dado o des-
taque e a complexidade atual da temática, e alguns de seus efeitos, especif‌icamente
aqueles que reverberam no direito sucessório. Além disso, serão desenvolvidas con-
sequências práticas envolvendo a separação de fato, do planejamento sucessório aos
processos de inventário e partilha.
2. DEFINIÇÃO, NATUREZA JURÍDICA E EFEITOS DA SEPARAÇÃO DE FATO
A relevância do tema aqui desenvolvido pode ser verif‌icada na literatura jurí-
dica nacional. Chaves Farias e Nelson Rosenvald af‌irmam que “malgrado a falta de
previsão expressa regulamentadora e a natural indiferença do sistema jurídico, ho-
diernamente, não paira qualquer dúvida quanto à possibilidade de decorrerem efeitos
jurídicos de uma separação de fato”.3 E outro não poderia ser o entendimento ante
a expressa referência aos separados de fato pelo Código Civil (art. 7934; art. 1.6425,
dos cônjuges reclamar a dissolução do matrimônio, independente da prova de culpa e independente da
anuência do consorte”. (RODRIGUES, Silvio. Breve histórico sobre o direito de família nos últimos 100
anos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 88, p. 239-254, 1 jan. 1993, p. 245).
2. Sobre o assunto, preciosas as lições de Maria Celina Bodin de Moraes: “A liberdade na família, como lugar de
expressão das individualidades de seus membros, tem como consequência toda a disciplina do divórcio. De fato,
como já se acentuou, o casamento, em nossos dias, não mais corresponde à posição de estabilidade, de ligação
perpétua, que já ocupou. Hoje, demonstram as pesquisas sociológicas, um em cada três casamentos acaba em
divórcio. Ao longo dos últimos cinquenta anos, o divórcio foi autorizado em praticamente todos os países oci-
dentais, e isto foi feito justamente com a f‌inalidade de reorganizar as famílias, permitindo que se ref‌izessem novos
laços em lugar dos antigos que se haviam rompido. A superação da visão institucional da família, já referida, e a
crescente valorização dos direitos fundamentais da pessoa humana ensejam a proteção cada vez mais ampla da
esfera individual, em detrimento de ultrapassadas “razões de família”. Visa-se agora a satisfação de exigências
pessoais, capazes de proporcionar o livre e pleno desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros
da família, vista esta como uma formação social de natureza instrumental, aberta e democrática”. (BODIN DE
MORAES, Maria Celina. A família democrática. RFD – Revista da Faculdade de Direito da UERJ, 2010).
3. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias. 8. ed. Salvador: JusPo-
divm, 2016. p. 399.
4. Art. 793. É válida a instituição do companheiro como benef‌iciário, se ao tempo do contrato o segurado era
separado judicialmente, ou já se encontrava separado de fato”.
5. Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente: V –
reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino,
desde que provado que os bens não foram adquiridos pelo esforço comum destes, se o casal estiver separado
de fato por mais de cinco anos”.

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