A fuga do testamento

AutorAnderson Schreiber e Felipe Ribas
Páginas269-285
A FUGA DO TESTAMENTO
Anderson Schreiber
Professor Titular de Direito Civil da UERJ. Professor da Fundação Getúlio Vargas.
Membro da Academia Internacional de Direito Comparado. Advogado.
Felipe Ribas
Mestre e Doutorando em Direito Civil pela UERJ. Ex-Professor Substituto de Direito
Civil da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ. Advogado.
Sumário: 1. O testamento: suas limitações e desincentivos – 2. O custo tributário da transmissão
causa mortis – 3. Planejamento sucessório e instrumentos “alternativos” ao testamento: seguros de
vida, planos de previdência e trust – 4. Além do planejamento sucessórios: instrumentos de efetiva
antecipação da distribuição patrimonial como doação, compra e venda e constituição de holding
familiar – 5. Conclusão – 6. Referências.
1. O TESTAMENTO: SUAS LIMITAÇÕES E DESINCENTIVOS
Não é de hoje que se registra que o testamento é f‌igura pouco frequente na prática
brasileira. Há, naturalmente, diferentes razões para isso. Há razões de natureza eco-
nômica: os custos envolvidos na realização de um testamento somente costumam ser
tidos como justif‌icados diante de patrimônio relativamente amplo, a ser distribuído
entre uma pluralidade de herdeiros. Há razões de natureza cultural: muitos brasileiros
consideram que tratar da própria morte traz mau agouro, ou encaram o tema da morte
como tabu ou, simplesmente, preferem não falar disso.1 A essas razões econômicas
e culturais, somam-se também razões jurídicas, o que não deixa de ser curioso. De
fato, a mesma ordem jurídica brasileira que, por um lado, oferece a possibilidade
de celebração do testamento, desestimula, por outros caminhos, a sua realização.
Os desincentivos jurídicos mais conhecidos ao testamento são aqueles inerentes
ao próprio instrumento: há muito, já se denuncia, por exemplo, o excessivo forma-
lismo do instrumento testamentário, além do risco de invalidade. Não são raras, na
nossa prática judicial, ações que pretendem anular as disposições de última vontade
do testador, com base em alegações que se centram ora em vícios formais, ora em uma
1. Como destaca HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Sucessões. 4. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012. p. 263-264: “o brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua
circunstância é ainda bastante mistif‌icada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus f‌luidos e
más agruras...’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir,
por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais
amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda não praticamos, em escala
signif‌icativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que essas atitudes, no dito
popular, ‘atraem o azar’.”
FELIPE RIBAS E ANDERSON SCHREIBER
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alegada divergência entre o testamento e a vontade real do testador, ora, ainda, em
estados de vulnerabilidade mental que podem ter, de algum modo, maculado a livre
manifestação de vontade do testador. E, muito embora nossa jurisprudência venha
mostrando um crescente rigor na análise dessas pretensões,2 o fato é que a simples
propositura da demanda já cria um transtorno considerável aos demais herdeiros e
abala, de certo modo, a segurança que o testamento, por def‌inição, procura imprimir
à transmissão causa mortis.
Outro desincentivo jurídico à celebração do testamento reside na exigência legal
de abertura de processo judicial para o cumprimento do testamento, ainda que, poste-
riormente, o inventário possa tramitar de forma extrajudicial. O artigo 610 do Código
de Processo Civil chega a af‌irmar que, “havendo testamento ou interessado incapaz,
proceder-se-á ao inventário judicial.” A norma exprime um verdadeiro contrassenso:
a celebração do testamento indica justamente a intenção do testador de organizar
o próprio patrimônio e facilitar a sua futura partilha, evitando processos judiciais
entre os herdeiros. Nesse contexto, a exigência legal deve e tem sido interpretada
restritivamente, sendo admitido o processamento extrajudicial dos inventários após
a ação judicial de cumprimento de testamento.3 Apesar do avanço, a exigência de
ação judicial prévia à fase extrajudicial continua importando em restrição excessiva
e injustif‌icável ao célere cumprimento das disposições testamentárias.
A verdade é que a disciplina jurídica do testamento está a merecer, já há algum
tempo, reforma para reduzir a complexidade e o formalismo do instrumento, mas
2. Merece destaque o crescente afastamento de nulidades em virtude de vícios puramente formais, como se
vê do seguinte acórdão do STJ: “Evidenciada, tanto a capacidade cognitiva do testador quanto o fato de que
testamento, lido pelo tabelião, correspondia, exatamente à manifestação de vontade do de cujus, não cabe
então, reputar como nulo o testamento, por ter sido preterida solenidades f‌ixadas em lei, porquanto o f‌im
dessas – assegurar a higidez da manifestação do de cujus –, foi completamente satisfeita com os procedimentos
adotados” (STJ, REsp n. 1.677.931/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.8.2017). Na mesma direção: “A
regra segundo a qual a assinatura de próprio punho é requisito de validade do testamento particular, pois,
traz consigo a presunção de que aquela é a real vontade do testador, tratando-se, todavia, de uma presunção
juris tantum, admitindo-se, ainda que excepcionalmente, a prova de que, se porventura ausente a assinatura
nos moldes exigidos pela lei, ainda assim era aquela a real vontade do testador. Hipótese em que, a despeito
da ausência de assinatura de próprio punho do testador e do testamento ter sido lavrado a rogo e apenas
com a aposição de sua impressão digital, não havia dúvida acerca da manifestação de última vontade da
testadora que, embora sofrendo com limitações físicas, não possuía nenhuma restrição cognitiva” (STJ,
REsp n. 1.633.254/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.3.2020).
3. Por exemplo, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Provimento nº
21/2017, adequou o artigo 297 da Consolidação Normativa do Estado do Rio de Janeiro ao Enunciado
77 do Conselho Nacional de Justiça, para admitir a realização de inventário extrajudicial, quando aberto
judicialmente o testamento: “Art. 297. § 1º Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente
nos autos da apresentação e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes,
poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro.”
O próprio Superior Tribunal de Justiça decidiu ser “possível o inventário extrajudicial, ainda que exista
testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que
o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo
competente” (STJ, REsp n. 1.808.767/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 15.10.2019). A possibilidade foi
também endossada pelo Enunciado n. 600 da VII Jornada de Direito Civil: “Após registrado judicialmente
o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conf‌lito
de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.

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