Os desafios da reprodução assistida post mortem e seus efeitos sucessórios

AutorHeloisa Helena Barboza e Vitor Almeida
Páginas43-66
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
Heloisa Helena Barboza
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Direito pela UERJ e em Ciências pela ENSP/
FIOCRUZ. Diretora da Faculdade de Direito da UERJ. Procuradora de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro (aposentada). Advogada.
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto de Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/
UFRRJ). Professor de Direito Civil da PUC-Rio. Professor dos cursos de especialização
do CEPED-UERJ e da EMERJ. Advogado.
Sumário: 1. Introdução – 2. Reprodução assistida: dilemas e desaos – 3. Sucessão legítima da prole – 4.
Direitos sucessórios dos lhos póstumos; 4.1 A abrangência e o alcance do conceito de nascituro e de
embrião humano no direito civil contemporâneo e o signicado do termo “concepção” e “concebido”
no Código Civil brasileiro; 4.2 Reprodução assistida post mortem, vocação hereditária dos embriões
congelados e as controvérsias sobre o prazo prescricional – 5. Considerações nais – 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
As técnicas de reprodução humana há algum tempo deixaram o terreno da ino-
vações médico-científ‌icas e se incluíram no cotidiano da sociedades, em decorrência
do declínio da fertilidade1 de mulheres e homens em vários países, incluído o Brasil,
provocando diretos e importantes efeitos sociais e jurídicos. Estudos estatísticos
apontam que, no Brasil, em 1970 a taxa de natalidade era de 37,7 nascimentos por
mil habitantes e a de fecundidade era de 5,8 f‌ilhos por mulher. Houve queda contínua
desses indicadores nas décadas seguintes, intensif‌icada nos últimos anos. De acordo
com dados do Censo de 2010, a taxa de fecundidade havia caído para 1,9 f‌ilho por
mulher e a de natalidade baixado para 16,0 nascimentos por mil habitantes2. Em 2018,
a taxa de fecundidade no Brasil era de 1,73%3. Em Brasília, a taxa de fecundidade das
mulheres teve uma redução de 23% em dezesseis anos.4
1. Fertilidade é a capacidade de gerar f‌ilhos. Toda mulher, teoricamente, tem essa capacidade desde a menarca
até a menopausa. Fecundidade se refere à realização do potencial de procriar, que pode ser alterado por
esterilidade ou uso de métodos anticoncepcionais. Disponível em:
ginf‌ile.php/33455/mod_resource/content/1/un2/top3_1.html#:~:text=Fertilidade%20%C3%A9%20a%20
capacidade%20de,ou%20uso%20de%20m%C3%A9todos%20anticoncepcionais>. Acesso em 10 abr. 2020.
2. Disponível em: .seade.gov.br/menos-criancas-mais-velhos/>. Acesso em 19 jan. 2021.
3. Disponível em: T.IN?locations=BR>. Acesso em 20 jan. 2021.
4. Disponível em: .br/2020/05/31/taxa-de-fecundidade-cai-23-e-exige-
-novas-acoes-do-gdf/>. Acesso em 31 mai. 2021.
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Vários fatores são apontados pelos estudiosos para essa diminuição da fertili-
dade, compreendendo desde o retardamento da procriação, por razões individuais,
como obter a estabilidade f‌inanceira para depois ter f‌ilhos ou a escolha do tipo de
vida, até causas ambientais que prejudicam a reprodução. Admite-se a existência
de uma crise na saúde reprodutiva, fator que, sem dúvida, aumenta a busca pela
reprodução assistida, por aqueles que desejam f‌ilhos. Para alguns pesquisadores,
caminha-se para um mundo infértil, no qual a maioria dos casais pode ter que se
socorrer da reprodução assistida para a concretização do projeto parental biolo-
gicamente vinculado.5
A alteração do padrão demográf‌ico do Brasil é uma realidade que atinge todas
as camadas sociais e não pode ser preterida, em razão dos inquestionáveis impactos
que provoca na sociedade6. Neste cenário, as técnicas de reprodução assistida emer-
gem como solução para as pessoas que têm problemas para procriar. Contudo, se,
por um lado, as técnicas assumem para essas pessoas o papel de instrumento para o
exercício do direito ao planejamento familiar, constitucionalmente assegurado, por
outro, ensejam o surgimento de situações inéditas para o Direito, que pendem de
solução adequada, principalmente no Brasil.
O Direito Civil, que contém a regulamentação básica das relações parentais,
não trata da matéria de modo satisfatório, o que gera a sobreposição de complexas
questões jurídicas, geradas especialmente pela dinâmica das relações familiares.
São crescentes as dif‌iculdades encontradas para aplicação de uma normativa civil
elaborada à luz de princípios distintos dos vigentes a partir de 1988 e direcionada
para uma sociedade profundamente diversa da existente na época de sua concepção,
particularmente no que respeita às relações familiares. Os esforços da doutrina e dos
tribunais não têm sido suf‌icientes para atender os verdadeiros desaf‌ios postos pela
popularização do uso das técnicas de reprodução assistida. Sem dúvida, os efeitos
sucessórios que podem (ou não) decorrer da utilização dessas técnicas, e de suas
diferentes fases e modalidades, incluem-se no rol desses desaf‌ios.
O presente trabalho, realizado com base em pesquisa bibliográf‌ica, busca,
além de identif‌icar alguns dos problemas sucessórios, que decorrem da utilização
das técnicas de reprodução assistida, examinar tais questões em face do direito das
sucessões brasileiro, e, ainda que modestamente, contribuir para a construção das
soluções esperadas, há algum tempo.
5. Nesse sentido entrevista com a pesquisadora Shanna Swan, publicada no The Guardian. Disponível em:
tps://www.theguardian.com/society/2021/mar/28/shanna=-swan-fertility-reproduction-count-down?CMP-
Share_AndroidApp_Other>. Acesso em 28 mar. 2021.
6. Ver sobre o assunto: SIMÕES, Celso Cardoso da Silva. Relações entre as alterações históricas na dinâmica
demográf‌ica brasileira e os impactos decorrentes do processo de envelhecimento da população. Rio de Janeiro:
IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais, 2016. Disponível em: .
br/visualizacao/livros/liv98579.pdf>. Acesso em 15 jan. 2021.
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OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
2. REPRODUÇÃO ASSISTIDA: DILEMAS E DESAFIOS
Alguns aspectos próprios das técnicas de reprodução assistida devem ser de
início resumidamente destacados para melhor compreensão das questões a serem
abordadas. A utilização das técnicas de reprodução assistida dispensa a relação sexual
entre um homem e uma mulher para que haja procriação, embora sejam sexuadas, na
medida em que se valem da união dos gametas feminino e masculino. A concepção,
entendida como a penetração do espermatozoide no óvulo, fertilizá-lo e dar origem
ao genoma de um novo indivíduo, pode ocorrer no interior do corpo de uma mulher,
nas denominadas técnicas intracorpóreas, como a inseminação artif‌icial, ou pode se
verif‌icar em laboratório, através da técnica de “fertilização in vitro” (FIV), portanto,
uma técnica extracorpórea.
Em qualquer dos casos: (a) os gametas podem ou não pertencer às pessoas que
serão os pais jurídicos da criança que vier a nascer; (b) a mulher que der à luz poderá
não ser a mãe da criança que gestou, caso seja uma “gestante por substituição”, po-
pularmente conhecida como “barriga de aluguel”; e (c) a técnica utilizada pode ser
homóloga, se utilizado material fecundante daqueles que serão os pais juridicamente,
ou heteróloga, caso tenha havido doação de gametas. Nas técnicas homólogas há
vínculo genético entre os pais e o f‌ilho; nas heterólogas não existirá esse vínculo, por
uma ou pelas duas linhas de parentesco.
Além disso, as técnicas de crioconservação permitem o nascimento de f‌ilhos pós-
tumos, isto é, que vêm a nascer após a morte do(s) pai(s) jurídico(s). Há, na verdade,
três possibilidades no que respeita ao nascimento dos f‌ilhos, quando se considera o
momento da morte do(s) pai(s): (a) nascimento após o falecimento, sendo os f‌ilhos
resultantes de reprodução f‌isiológica e que já se encontram em gestação no momento
do falecimento; (b) concepção post mortem, portanto, f‌ilhos ainda não concebidos,
e que serão gerados através de uma das técnicas de reprodução assistida, utilizando
gametas congelados, após o falecimento; e (c) gestação após a morte de embriões
crioconservados, fruto da técnica de fertilização in vitro (FIV).
Tais fatos, aliados aos diferentes arranjos familiares reconhecidos a partir da
Constituição da República de 1988, geram efeitos importantes e variados no que
tange à constituição das relações parentais. Pessoas que não podem procriar, por
razões biológicas, como as que tem o mesmo sexo, ou de saúde, casos de infertilidade
e de esterilidade, inclusive a que decorre de ato voluntário, de que são exemplos a
ligadura de trompas e a vasectomia, têm possibilidade de promover o planejamento
familiar, através das técnicas de reprodução assistida, valendo-se da colaboração de
terceiros, ou seja, de doadores de gametas (masculino e/ou feminino) e/ou de uma
gestante substituta.
A interseção dessas possibilidades abala a vinculação necessária entre mater-
nidade e parto, parentalidade e liame genético, que sempre predominou no direito.
Cabe lembrar que, embora a adoção seja instituto antigo, somente em data recente
passaram a ser reconhecidas as relações de parentalidade por socioafetividade, pon-
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do f‌im à franca predominância dos laços biológicos, que eram presumidos na época
em que não havia método capaz de comprová-los com alta probabilidade de certeza,
como ocorre com o exame de DNA.
À vista dos aspectos brevemente abordados, não há exagero em se af‌irmar que
os efeitos jurídicos da reprodução assistida se fazem sentir em todo o Código Civil, e,
naturalmente, com maior intensidade, nos Livros do Direito de Família e das Suces-
sões, embora se encontre na Parte Geral uma das mais intrincadas questões geradas
pela reprodução assistida. De acordo com o art. 2º do Código Civil, a personalidade
civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde
a concepção, os direitos do nascituro7. O desaf‌io se põe diante da concepção que
ocorre em laboratório, que gera embriões que podem permanecer crioconservados
por tempo indef‌inido e nunca nascerem. Não há disposição legal que lhes reconhe-
ça personalidade, mas, se é inquestionável que devem ter proteção, permanece em
questão def‌inir quais direitos lhes são resguardados e partir de quando8. Na verdade,
há tormentoso debate quanto a ser o embrião crioconservado – portanto que ainda
não se encontra em gestação – um nascituro9. A personalização ou não do embrião
crioconservado e a indicação dos direitos que lhe cabem e a partir de quando tem
direta repercussão no processo sucessório por morte.
Na verdade, a maior parte das intrincadas questões jurídicas provocadas pelas
técnicas de reprodução assistida não encontrou, ainda, solução adequada, sendo de
se indagar se existe “solução possível” diante da dinâmica dos avanços científ‌icos e
das alterações sociais10. As regras legais existentes são insuf‌icientes, na medida em
que se resumem a três incisos (III, IV e V) do artigo 1.597 do Código Civil, que pe-
cam na conceituação11 e estão longe de disciplinar as complexas situações jurídicas
geradas pelas técnicas de reprodução assistida. A aplicação dos citados dispositivos,
por si só, gera grande dif‌iculdade e exige dedicado esforço do intérprete, como
adiante esclarecido.
7. Cf. ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Personalidade, titularidade e direitos do nascituro: esboço de
uma qualif‌icação. In: Revista OAB/RJ | Edição Especial - Direito Civil, v. 01, p. 01-45, 2018.
8. Cabe mencionar a previsão contida no art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/2005) que permite a
utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro
e não utilizados no respectivo procedimento para f‌ins de pesquisa e terapia, desde que sejam considerados
embriões inviáveis, e congelados há 3 (três) anos ou mais, bem como exige o consentimento dos genitores.
Tal disposição legal foi objeto da ação direta de inconstitucionalidade 3.510, na qual o Supremo Tribunal
Federal declarou a constitucionalidade do dispositivo em questão.
9. Sobre o assunto ver GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Herança legítima ad tempus: tutela sucessória
no âmbito da f‌iliação resultante de reprodução assistida póstuma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017,
p. 40-42.
10. Cf. BARBOZA, Heloisa Helena. Reprodução assistida: questões em aberto. In: CASSETTARI, Christiano
(Org.). 10 anos de vigência do Código Civil Brasileiro de 2002. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 92-110.
11. O problema conceitual ensejou a aprovação do enunciado n. 105, aprovado na I Jornada de Direito Civil,
realizada pelo Conselho da Justiça Federal, em 2002, segundo o qual: “as expressões ‘fecundação artif‌icial’,
‘concepção artif‌icial’ e ‘inseminação artif‌icial’ constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597
deverão ser interpretadas como ‘técnica de reprodução assistida’”. Esse entendimento, de todo razoável, é
adotado no presente trabalho.
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O Conselho Federal de Medicina (CFM), desde 1992, vem emitindo sucessivas
Resoluções sobre as técnicas de reprodução assistida. Não obstante tais Resoluções
contenham normas éticas sobre a utilização dessas técnicas, que servem de prescrições
deontológicas a serem seguidas pelos médicos brasileiros, acabaram por assumir papel
de todo importante para solução dos conf‌litos na matéria. A crescente importância da
regulamentação médica se deve, em grande parte, à morosidade ou falta de interesse
na apreciação da matéria pelo Poder Legislativo, que beira o abandono, e se revela
na existência de cerca de duas dezenas de projetos de lei que dormitam na Câmara
desde 200312. Fato é que a insuf‌iciência da normas constantes do Código Civil, aliada
à inércia do legislador, contribui para o crescente número de questões pendentes,
as quais acabam por colocar em risco os interesses de todas as pessoas envolvidas,
direta ou indiretamente, na realização das técnicas, tais como os médicos, os futuros
pais, as gestantes substitutas, as clínicas que mantém o material crioconservado e,
naturalmente, a própria criança a nascer.
A falta de regulamentação legal enseja também o surgimento de práticas “clan-
destinas”, como a denominada “inseminação caseira”, que é realizada em ambiente
doméstico, por leigos, sem qualquer controle sanitário13. Tais práticas são regidas
pela conf‌iança ou pela boa-fé dos participantes, visto que se fazem sem qualquer
formalização juridicamente válida. Nessa linha, a gestação por substituição é “co-
mercializada” na internet, sem qualquer proteção para a gestante e para os “contra-
tantes”14. Em ambas as práticas não há qualquer resguardo dos interesses da criança
que vier a nascer.
Cumpre observar, como acima indicado, que as hipóteses tratadas pelo Código
Civil não estão livres de dúvidas e conf‌litos. A Lei Civil tratou dos efeitos da repro-
dução assistida apenas no que tange à paternidade dos f‌ilhos nascidos do casamento,
para incluí-los na presunção estabelecida no artigo 1.597, a qual, baseada nos tem-
pos mínimo e máximo da gestação, acaba por ratif‌icar o vetusto princípio segundo
a qual pai é aquele que as justas núpcias demonstram – pater est quem iustae nuptiae
12. Tramitam na Câmara dos Deputados, atualmente, 21 projetos de lei destinados a regulamentar as técnicas
de reprodução assistida, apensados ao PL 1.184/2003. Disponível em: .camara.gov.br>. Acesso
em 21 abr. 2021.
13. A chamada “inseminação caseira”, como é popularmente conhecida, tem se disseminado nas redes sociais,
plataformas que permitem que pessoas solteiras ou casais que desejam concretizar o projeto parental encontrem
“doadores” de gameta masculino. Na verdade, o próprio caráter altruístico é descaracterizado, uma vez que
são cobradas quantias nada módicas para a realização da “doação”, que sequer pode ser assim denominada.
Apesar dos valores envolvidos, sem dúvida, o crescimento das “inseminações caseiras” se deve em razão dos
altos custos das tecnologias reprodutivas, associados à dif‌iculdade de se obter o tratamento através do Sistema
Único de Saúde (SUS). Cf. ARAÚJO, Ana Thereza Meireles. Projetos parentais por meio de inseminações
caseiras: uma análise ético-jurídica. In: Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 24, n. 02, 2020.
14. Segundo matéria publicada na Folha de São Paulo, um grupo público no Facebook chamado “Quero ser
barriga de aluguel” reúne cerca de 2.500 pessoas – a maioria mulheres – interessadas em “alugar” um útero,
mesmo sendo proibido no Brasil. Disponível em:
ra-da-lei-mulheres-se-oferecem-para-ser-barriga-de-aluguel-na-internet.shtml>. Acesso em 01 mai. 2021.
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demonstrant – ou seja, o marido é o pai dos f‌ilhos que nascerem de sua mulher15.
Trata-se de presunção relativa, que não se mantem diante da prova de inexistência
de vínculo genético, feita através do exame de DNA, de fácil obtenção.16
A submissão das técnicas de reprodução assistida à citada presunção não é ade-
quada, nas hipóteses dos incisos III e IV, que se referem a técnicas homólogas. Em tais
casos, há certeza do vínculo genético, dispensando a presunção para a atribuição da
paternidade ao marido. Diversa é a disposição do inciso V, que aplica a presunção às
técnicas heterólogas, onde se sabe que o marido não é o pai biológico, razão pela qual
se condiciona a atribuição da paternidade à sua prévia autorização17. Não há qualquer
outra disposição relativa à essa autorização, cabendo em tese sua revogação, que se
daria em prejuízo do f‌ilho. Defende a doutrina18 que, uma vez cumprida a exigência
legal, a presunção do inciso V, do art. 1.597, da Lei Civil, é absoluta e não admite prova
em contrário. Amparam essa af‌irmativa os princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável, que autorizam o planejamento familiar19,
e o do melhor interesse da criança e do adolescente, inscrito no art. 227, da Lei Maior,
que goza de prioridade absoluta. Protege-se, assim, o f‌ilho contra eventual arrependi-
mento do marido, que assumira, através da autorização, sua paternidade.
A presunção estabelecida no citado art. 1.597, do Código Civil, destina-se aos f‌ilhos
de pessoas casadas, não aproveitando, em princípio, os havidos pelos casais que vivem
em união estável, uma vez que literalmente a dicção do aludido dispositivo estabelece
que “presumem-se concebidos na constância do casamento”. No entanto, em âmbito
doutrinário e jurisprudencial é acesa a divergência sobre o tema, uma vez que, com
o reconhecimento da união estável como entidade familiar em sede constitucional20,
15. Sustenta a presunção o dever de vida em comum no domicílio conjugal (art. 1.566, II): se marido e mulher
convivem, provavelmente mantem relações sexuais e geraram o f‌ilho.
16. Código Civil: “Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos f‌ilhos nascidos de sua
mulher, sendo tal ação imprescritível. [...]”
17. O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de re-
produção assistida, segundo o item I – 4, do Anexo da Resolução 2.168/2017, do CFM. É razoável que se
reconheça nesse consentimento, expresso em formulário especial, a autorização do marido para a realização
da técnica.
18. Segundo Gustavo Tepedino e Ana Carolina Brochado Teixeira: “Quanto às situações relativas à utilização
de técnicas biotecnológicas, trata-se de manifestações de vontade inderrogáveis, e não de presunções.
Não é possível que um casal construa o projeto parental, execute-o e, em seguida, após o nascimento da
criança, um dos autores desse projeto – que pode ter ou não seu material genético – simplesmente ignore
as responsabilidades que tem com a criança. É por isso que são limitadores à liberdade de planejamento
familiar a dignidade humana e a paternidade responsável; ou seja, não há aqui liberdade absoluta, posto
condicionada ao exercício de responsabilidades para com o f‌ilho. Assim, as hipóteses dos incisos III a V
não conf‌iguram presunções de paternidade”. TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.
Fundamentos de direito civil: direito de família. v. 6, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 215-216. Ver, ainda,
enunciado n. 258 da Conselho da Justiça Federal: “Não cabe a ação prevista no art. 1.601 do Código Civil
se a f‌iliação tiver origem em procriação assistida heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inc. V
do art. 1.597, cuja paternidade conf‌igura presunção absoluta”.
20. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “[E]equivocou-se o legislador de 2002, no que concerne à f‌iliação,
ao reportar-se sempre ao casamento, sem mencionar situações oriundas das relações de fato reconhecidas
como União Estável, hoje entidade familiar protegida pelo Estado. Devem ser revistos, de imediato, os
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sem hierarquia entre os arranjos, e em atenção ao princípio da igualdade dos f‌ilhos21,
defende-se a extensão da presunção de paternidade aos f‌ilhos havidos na constância
da união estável22. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou favoravelmente a
aplicação extensiva da presunção à união estável23. Não obstante, há vozes doutrinárias
segundo as quais se “presunção de paternidade decorre da segurança jurídica própria
do ato solene do casamento”24, não deve se aplicar à união estável, que consiste em
relação de fato, de constituição informal e espontânea. Neste caso, será necessário o
reconhecimento da paternidade por uma das formas previstas em lei.25
Outras situações que desaf‌iam os intérpretes decorrem das técnicas de repro-
dução assistida, tais como a existência de embriões crioconservados e a gestação
por substituição, que possibilitam diversas combinações no planejamento familiar,
as quais se afastam por completo do modelo familiar a partir do qual se criaram as
regras sobre paternidade/maternidade vigentes. A Constituição da República reve-
la-se, por conseguinte, fonte primeira de onde emanam a orientação e as normas
indispensáveis para o deslinde das intrincadas controvérsias provocadas por pro-
cedimentos médicos que desaf‌iam toda construção existente sobre as relações de
f‌iliação. Incluem-se nessas controvérsias questões sucessórias, que tem importantes
repercussões de ordem prática.26
3. SUCESSÃO LEGÍTIMA DA PROLE
O direito das sucessões guarda íntima relação como o direito das famílias, que es-
tabelece as relações de parentesco, sobre as quais assenta a sucessão legítima. Não
obstante essa profunda vinculação com as relações familiares, sempre preservou sua
princípios que regem as presunções considerando também estas relações de fato geradoras de direito e
deveres”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. v. 5, atual. por Tânia
da Silva Pereira, 24. ed., ver. atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 364.
21. “Não há, pois, como perpetrar validamente o critério presuntivo de paternidade, cujo objetivo f‌inal é a
determinação da legitimidade do f‌ilho. [...] Nada o justif‌ica, nem mesmo a possível questão ligada ao início
de prova. Não se prova a paternidade provando-se casamento”. TABET, Gabriela. A inconstitucionalidade
da presunção pater is est. In: Revista Trimestral de Direito Civil, ano 6, v. 22, abr./jun., 2005, p. 92.
22. Por todos, cf. LÔBO, Paulo. Direito ao estado de f‌iliação e direito à origem genética: uma distinção necessária.
In: Revista Brasileira de Direito de Família, n. 19, out./dez., 2003, p. 205.
23. “[...] IV – Assim, se nosso ordenamento jurídico, notadamente o próprio
texto constitucional (art. 226, §3º), admite a união estável e reconhece nela a existência de entidade fa-
miliar, nada mais razoável de se conferir interpretação sistemática ao art. 1.597, II, do Código Civil, para
que passe a contemplar, também, a presunção de concepção dos f‌ilhos na constância de união estável. [...]
VI – Dessa forma, em homenagem ao texto constitucional (art. 226, §3º) e ao Código Civil (art. 1.723), que
conferiram ao instituto da união estável a natureza de entidade familiar, aplica-se as disposições contidas
no artigo 1.597, do Código Civil, ao regime de união estável”. STJ, 3ª Turma, REsp. 1.194.059-SP, Rel. Min.
Massami Uyeda, julg. 06 nov. 2012, publ. 14 nov. 2012.
24. TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos de direito civil: direito de família.
v. 6, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 214.
25. Lei 6.015/1973, artigos 55 e 59; Lei 8.560/1992, art. 1º; Código Civil, art. 1.609.
26. Permita-se a referência a BARBOZA, Heloisa Helena. Aspectos controversos do Direito das Sucessões: consi-
derações à luz da Constituição da República. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito Civil Contemporâneo:
novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 320-327.
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feição predominantemente patrimonial. Contudo, no contexto da ordem jurídica
instaurada pela Constituição da República de 1988, as relações patrimoniais trans-
formaram-se em instrumento de realização das potencialidades humanas, deixando
de ter seu histórico papel de pedra angular do sistema jurídico. Em paralelo, desde
então, desenvolve-se um intenso trabalho de revisão de conceitos, quando não de
construção, ensejando a (re)elaboração de institutos de há muito consolidados. A
releitura da normativa existente à luz dos princípios constitucionais é imperativa e
incessante, de modo a conferir efetividade ao ditames da Lei Maior.
Nessa linha, as situações sucessórias se encontram vinculadas à proteção da pes-
soa humana em sua dignidade, objetivo primordial da Constituição da República, que
para tanto consagrou o direito à herança como direito fundamental (art. 5º, XXX). Em
consequência, a função da herança não mais se esgota na preservação da propriedade
privada. Desde 1988, sua função transcende do amparo à família enquanto instituição,
passando a ser, primordialmente, de proteção à pessoa humana, de maneira a assegurar
condições dignas de sobrevivência e o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.
O tradicional sistema de liberdade testamentária limitada de atribuição da heran-
ça, adotado no Brasil27, permite que o indivíduo disponha de metade da herança, caso
tenha herdeiros necessários. Esse sistema se harmoniza com a orientação constitucio-
nal, na medida em que, de um lado, preserva os direitos à liberdade (aqui traduzida
em autonomia) e à propriedade, e, de outro, assegura aos integrantes da família uma
parcela do patrimônio do autor da herança, efetivando o princípio da solidariedade.
Contudo, o vigente Código Civil manteve-se f‌iel a orientação da codif‌icação anterior,
ao ponto de repetir literalmente diversos de seus dispositivos e manter princípios e
conceitos construídos em contexto social profundamente diverso do existente no
século XXI, especialmente no que concerne às relações familiares.
No que tange à sucessão legítima, o Código inovou ao qualif‌icar o cônjuge como
herdeiro necessário, que concorre com os descendentes, a depender do regime de bens
do casamento, e com os ascendentes, sem essa exigência, continuando em terceiro lugar
na ordem de vocação hereditária e titular do direito real de habitação sobre o imóvel de
residência da família28. O companheiro foi contemplado com disposição atópica, eis que
inserida no capítulo das Disposições Gerais, que veio a ser declarada inconstitucional.29
Não obstante os descendentes tenham sido mantidos na primeira classe dos
chamados a suceder, passaram a concorrer com o cônjuge, na forma acima indicada,
devendo o cálculo dos quinhões observar o art. 1.832, segundo o qual: “Em concor-
rência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao
27. Código Civil: “Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança”.
28. Código Civil, arts. 1.845, 1.829, I, II e III, e 1.831, respectivamente.
29. STF, Plenário, RE 646.721-RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. do acórdão Min. Luis Roberto Barroso, julg. 10
mai. 2017, publ. 11 nov. 2017; STF, Plenário, RE 878.694-MG, Rel. Min. Luis Roberto Barroso, julg. 10 mai.
2017, publ. 06 fev. 2018. Em sede de repercussão geral, foi af‌irmada a seguinte tese para ambos os casos: “No
sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e com-
panheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do Código Civil.”
51
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte
da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer”. Essa disposição,
que não prima pela clareza, enseja intrincadas interpretações, especialmente quando
chamados a suceder f‌ilhos híbridos, isto é, havidos pelo autor(a) da herança com o
viúvo(a) ou companheiro sobrevivente e de casamento ou união estável anteriores.
Na verdade, constata-se que não foi considerada pelo legislador a possibilidade,
frequente mesmo em data anterior a franca admissão do divórcio, da constituição
de familias sucessivas. Como se constata, o cônjuge goza de proteção maior do que
a concedida aos f‌ilhos e aos ascendentes no Código Civil de 2002.
Tais inovações, que geram diversos questionamentos, cuja apreciação escapa
aos estreitos limites do presente, somadas à preservação de orientações do Código
anterior, como assinalado acima, tornam o vigente Direito das Sucessões insuf‌iciente,
se não inadequado, para reger as novas situações sucessórias, que desaf‌iam o intér-
prete e todos os que têm que aplicar a Lei.
A inadequação f‌ica nítida quando se trata da sucessão legítima, que contempla
os laços conjugais e de parentesco, que assumiram novas e diversif‌icadas feições,
cujos efeitos sucessórios pendem de solução. Dentre as questões ainda não resolvi-
das se destacam as que decorrem da utilização das técnicas de reprodução assistida,
algumas das quais se examinam abaixo.
4. DIREITOS SUCESSÓRIOS DOS FILHOS PÓSTUMOS
Uma das questões mais tormentosas, e que tem grande repercussão prática, se
encontra no artigo 1.798, do Código Civil, segundo o qual “legitimam-se a suceder
as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. O dispo-
sitivo abre o capítulo dedicado à vocação hereditária, isto é, à designação das pessoas
que têm capacidade sucessória, ou seja, têm legitimidade sucessória, e podem ser
chamadas a suceder. Como se sabe, a sucessão causa mortis tem dois pressupostos: (a)
a morte de alguém, o “autor da herança”; e (b) a sobrevivência de herdeiro sucessível.
Considerando esses pressupostos e que, a teor do art. 2º, do Código Civil, o início da
personalidade, para todos os f‌ins de direito, se dá a partir do nascimento com vida,
resguardados os direitos do nascituro, desde a concepção, constata-se que o art. 1.798
ressalvou os direitos sucessórios das pessoas já concebidas ao tempo da abertura da
sucessão. Esse dispositivo merece, contudo, algumas considerações quando se trata
de embriões concebidos por técnicas de reprodução assistida.
À época da elaboração do projeto que deu origem ao Código Civil, as técnicas
de reprodução assistida estavam longe da utilização que passaram a ter a partir da
década de 199030, mas não eram desconhecidas pelo legislador, que as mencionou na
30. A primeira Resolução do CFM sobre a matéria, de nº 1.358, data de 1992. Disponível: https://portal.cfm.
org.br/buscar-normas-cfm-e-crm/?tipo%5B%5D=R&uf=BR&numero=&ano=&assunto=1826&texto=#re-
sultado. Acesso: 25.01.2021.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
52
Código Civil de 2002. Todavia, o tratamento da matéria na Lei Civil foi incipiente,
dando origem a tormentosas questões que perpassam vários Livros do Código e se
agravam ao longo do tempo. Servem de exemplo os denominados “f‌ilhos póstumos”,
que gozam de paternidade presumida quando havidos do casamento, conforme art.
1.597, III, IV e V, do Código Civil.
A conjugação literal de ambos os dispositivos (art. 1.597 e 1.798) não apresenta
problemas: os concebidos post mortem, assim como os nascidos a qualquer tempo,
presumem-se concebidos na constância do casamento e, por conseguinte, antes da
abertura da sucessão. Contudo, ainda que se estabelecesse uma f‌icção jurídica, em
lugar de uma presunção, o problema de ordem prática, assim gerado, não estaria
resolvido. Observe-se que a presunção, no caso, só tem utilidade exatamente para
f‌ins de f‌ixar a época da concepção, posto que desnecessária para estabelecer a pater-
nidade diante da certeza genética, em face do acima destacado (o material genético
é do marido).
De início, a referência a “pessoa” já concebida, nos termos do mencionado art.
1.798 do Código Civil não parece adequada, diante do disposto no artigo 2º, segundo
o qual melhor seria a referência a nascituro. Na verdade, o próprio artigo 2º sempre
suscitou vivo debate, ao proteger “desde a concepção” os direitos do nascituro,
como acima destacado. Explica-se: a utilização das técnicas de reprodução assistida
permitiu o que parecia impossível – a concepção em laboratório, fora do corpo da
mulher, e, por conseguinte, a concepção após a morte do pai (aquele que forneceu
o sêmen, aqui considerada apenas a inseminação homóloga) e mesmo da própria
mãe se pensarmos na possibilidade da gestação por substituição – e mais, que entre a
concepção e o nascimento, assim como entre a morte do pai e a concepção, haja um
lapso de tempo. Tais possibilidades criaram complexas questões no direito sucessório,
visto que a matéria (que está a exigir regulamentação especial) tem acanhadas – e de
todo insuf‌icientes – regras no Código Civil.
No caso da inseminação post mortem, a concepção que de fato se verif‌ica após a
abertura da sucessão, se presume anterior (durante o casamento), por força do art.
1.597, III. Contudo, afastados os possíveis entraves (que vão desde o insucesso das
tentativas de fertilização da mulher, até a impugnação por parentes à utilização do
sêmen do falecido), cabe indagar: como proceder? Aberta a sucessão e iniciado o
respectivo inventário, havendo sêmen congelado do marido, o que fazer? Ignorar o
fato ou “reservar bens” – mas para o quê? Trata-se, efetivamente, de um “quê”, em
virtude de até a concepção haver apenas o sêmen do marido morto, portanto, um
tecido, juridicamente uma coisa. Será razoável, em nome da presunção do art. 1.597,
reservar bens em razão de mera possibilidade, para um indivíduo sequer concebido e,
se concebido, que não venha a entrar em gestação e jamais nascer? Por quanto tempo?
Na hipótese do art. 1.597, inciso IV, da Lei Civil, haverá de fato embriões con-
cebidos antes da abertura da sucessão. Esses embriões, denominados excedentários
(fruto da técnica de fertilização in vitro), podem também jamais ser transferidos para o
53
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
útero de uma mulher, para f‌ins de gestação e nascimento. A transferência pode ocorrer,
mas não haver gravidez. Observe-se, ainda, que pode haver embriões inviáveis (que
jamais se desenvolverão normalmente). Diante desses possíveis cenários, cabem as
seguintes indagações: diante de tais possibilidades será razoável reservar bens para
os embriões, em razão das suas potencialidades? E com relação aos embriões invi-
áveis, que não têm essas potencialidades? Em qualquer caso, por quanto tempo?
4.1 A abrangência e o alcance do conceito de nascituro e de embrião
humano no direito civil contemporâneo e o signicado do termo
“concepção” e “concebido” no Código Civil brasileiro
Atualmente, observa-se que a própria def‌inição doutrinária clássica de nascituro
se encontra em crise. Com as inovações biotecnológicas, especialmente, a fertilização
in vitro, viabilizou-se a fertilização extracorpórea de óvulos (oócitos), que dá origem
ao embrião humano pré-implantatório31. A partir daí, alguns autores têm se posicio-
nado favoravelmente ao alargamento do conceito de nascituro, de modo a abranger
os referidos embriões, denominados embriões excedentários pelo Código Civil, no
conceito jurídico de nascituro, havendo, inclusive, os defensores do reconhecimento
da personalidade desses embriões.32
Nesta linha, Silmara Juny de Abreu Chinellato pontua que “nascituro é aquele
que está por nascer, já concebido”, defendendo um “conceito mais amplo de nasci-
turo – o que há de nascer”, a partir do qual é possível contemplar tanto o implantado
(nascituro) como o embrião pré-implantatório, utilizando, inclusive, a expressão
“nascituro pré-implantatório”33 para se referir aos embriões humanos criocon-
servados. Cristiane Beuren Vasconcelos aduz que a crise a respeito do conceito de
nascituro é “meramente aparente”, uma vez que “se a vida humana merece proteção
desde a concepção, o termo deve ser compreendido dentro de seu signif‌icado atual,
ou seja, já abarcando a hipótese de ocorrência in vitro”. Desse modo, entende como
“desnecessária [...] a adoção de uma nova terminologia jurídica”.34
Em que pesem os dissensos em relação ao conceito de nascituro resultantes
principalmente do desenvolvimento das ciências biomédicas, em especial das técnicas
de fertilização in vitro, que possibilitaram a criação e crioconservação de embriões
humanos, é necessário esclarecer que se entende, para f‌ins do presente trabalho,
como nascituro o ser já concebido, mas que se encontra em gestação no útero de
uma mulher. Independentemente da evolução biotecnológica e biomédica em face
das técnicas de reprodução assistida, é indispensável f‌ixar os momentos do processo
31. Denominado ainda de excedentários ou supranumerários, quando remanescem do processo de implantação
no útero de uma mulher para gestação. Em tal caso, permanecem indef‌inidamente crioconservados ou têm a
destinação prevista na Resolução 2.168/2017, do CFM: são doados, inclusive para pesquisa, ou descartados.
32. Cf., por todos, VASCONCELOS, Cristiane Beuren. A proteção jurídica do ser humano in vitro na era da bio-
tecnologia. São Paulo: Atlas, 2006, especialmente, p. 72 e ss.
33. ALMEIDA, Silmara Juny Chinelato e. Tutela civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 13-15.
34. VASCONCELOS, Cristiane Beuren. Op. cit., p. 73.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
54
da vida humana e a partir dos quais haverá tutela jurídica, que deve se adequar às
peculiaridades de cada uma das fases de desenvolvimento.
Pedro Pais de Vasconcelos ressalta a importância de se estabelecer a terminologia
relativa ao nascituro, a f‌im de se evitar possíveis equívocos. Assim, “há que distin-
guir, a este propósito, a situação de quem ainda não nasceu mas já foi concebido, e a
expectativa de alguém vir a ser gerado”35. Com base na tradição do próprio Direito,
deve-se reservar “a designação nascituro para aqueles que já foram concebidos e têm
vida no seio da mãe, mas ainda não nasceram”, sob a justif‌icativa de que a condição do
ente por nascer é uma situação transitória e limitada no tempo36. Nesta linha, convém
distinguir os nascituros dos concepturos37, tendo em vista que estes “não existem, são
simples esperanças ou expectativas”. O que na verdade existe é a possibilidade de
um dia vir a ser gestados.38
Considerando que os ciclos da vida humana comportam uma proteção jurí-
dica diferenciada, chegando a seu ápice durante a existência da pessoa a partir do
nascimento com vida até a morte natural, nos termos dos respectivos artigos 2º e 6º
do Código Civil vigente, não se pode olvidar que o ordenamento contempla uma
tutela peculiar e adequada às demais fases constitutivas do ser humano. É preciso,
no entanto, realmente extremar aqueles que já foram concebidos e se encontram em
gestação – os nascituros – dos embriões que se encontram criopreservados – os con-
cepturos, ou melhor, embriões que não se encontram em gestação. Duas características
importam para essa diferenciação e, ao mesmo tempo, justif‌icam, sua permanência,
a saber: (i) a transitoriedade da condição de nascituro; e, (ii) a proximidade com a
qualidade de pessoa, tendo em vista ser a fase imediatamente antecedente ao nasci-
mento com vida, requisito para a atribuição da personalidade jurídica, nos termos
da codif‌icação vigente.
Estas, contudo, não são características de que gozam os embriões não implan-
tados no útero de mulher para gestação, na medida em que seu estado de criocon-
servação pode ser por tempo indef‌inido e, portanto, seu nascimento é totalmente
incerto, e em muitos casos talvez jamais ocorra. Diversamente, o desenvolvimento
do nascituro, isto é, do embrião implantado e em gestação, tem termo previsto, e
somente pode ser interrompido nos casos de aborto espontâneo ou nas hipóteses
em que legalmente pode ser provocado no Brasil. O que convém frisar é que o pro-
cesso gestacional é um contínuo que culmina no nascimento do ser em gestação que
somente é interrompido por força de causas naturais ou pela intervenção humana,
enquanto o embrião humano congelado precisa da manipulação humana para sair do
estado de dormência e ser implantado no útero da mulher, na tentativa de se iniciar
a gravidez, o que nem sempre se verif‌ica.
35. VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 6 ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 72.
36. Id. Ibid., p. 72-73.
37. Concepturos seriam os embriões ainda não implantados no útero da mulher, ou seja, os embriões criocon-
servados em laboratórios.
38. VASCONCELOS, Pedro Pais de. Op. cit., p. 72-73.
55
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
Isto demonstra que a equiparação entre nascituros e embriões congelados não
implantados no útero deve ser evitada, tendo em vista que se trata de fases diferen-
ciadas do desenvolvimento da vida humana que cabe ao Direito tutelar de forma
específ‌ica. Há, contudo, um momento comum nos dois casos que suscita grande
debate quanto aos efeitos jurídicos: o momento da concepção, entendida como a
fertilização do óvulo pelo espermatozoide, a partir da qual se inicia o processo de
divisão celular para constituição de um novo ser humano, que passará por várias
fases e se estenderá por nove meses até seu nascimento. Tradicionalmente, do ponto
de vista natural, a concepção ocorria dentro do ventre materno e em decorrência do
contato sexual. Atualmente, as técnicas reprodutivas artif‌iciais permitem a desvin-
culação entre o ato sexual e a procriação, na medida em que possibilita a geração de
um novo ser humano sem a manutenção de uma relação sexual e, principalmente,
que a concepção ocorra em laboratório.
Cabe observar que a concepção é um termo que tem conceito médico39, nas-
cituro não. São termos que não se confundem, pois todo nascituro (o que está para
nascer) foi concebido, mas nem todo concebido é um nascituro (caso dos embriões
congelados). O problema está em entender como nascituros os embriões já conce-
bidos, mas que não se encontram em gestação (e que poderão nunca ser gestados) e
atribuir-lhes a mesma situação dos que estão na fase gestacional.
Ainda que concepção seja um termo oriundo da literatura médica, deve-se
investigar qual o signif‌icado que o legislador civil utilizou. Os termos “concepção”
e “concebidos” surgem ao longo da codif‌icação atual em cinco dispositivos, a saber:
(i) no art. 2º se asseguram os direitos do nascituro desde a concepção; (ii) a presun-
ção criada para os f‌ilhos havidos na constância do casamento e fruto das técnicas
de reprodução assistida, nos termos do art. 1.597, inciso III, IV e V; (iii) a prova da
impotência à época da concepção ilide a presunção de paternidade, conforme previsto
no art. 1.599; e, por f‌im, (iv) na ordem de vocação hereditária geral, imposta no art.
1.798, e (v) na testamentária, estabelecida no art. 1.799, inciso I, além da substituição
f‌ideicomissária, conforme reza o art. 1.952, todos do Código Civil vigente.
Na busca para a compreensão da expressão concepção adotada pelo legislador no
art. 2º para f‌ins de proteção de direitos ao nascituro e, assim, o conceito de nascituro,
é preciso analisar o sentido e a razão da utilização deste termo em diferentes passa-
gens do texto codif‌icado, seja para designá-lo em sua qualidade de ser já existente,
39. Segundo a literatura médica: “É muito grande o interesse no desenvolvimento humano antes do nascimento,
em grande parte pela própria curiosidade sobre os primórdios da nossa formação e também pelo desejo de
melhorar a qualidade de vida. Os intrincados processos pelos quais um bebê se desenvolve a partir de uma
única célula são miraculosos [...]. O desenvolvimento humano é um processo contínuo que se inicia quando
um ovócito (óvulo) de uma fêmea é fertilizado por um espermatozoide de um macho”. Esclarece-se, ainda, que
“[...] é difícil determinar exatamente quando a fertilização (concepção) ocorre, porque o processo não pode
ser observado in vivo (no interior do corpo vivo)”. É consensual, no entanto, que o “zigoto é o início de um
novo ser humano (ou seja, um embrião)”, sendo def‌inido como a “célula resulta[nte] da união do ovócito ao
espermatozoide durante a fertilização” (MOORE, Keith L; PERSAUD, T. V. N.; TORCHIA, Mark G. Embriologia
clínica. 7. ed., Trad. de Adriana Paulino do Nascimento et all. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 1-3).
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
56
ou seja, como concebido em gestação, seja a f‌im de se referir a f‌iliação eventual, isto
é, aos ainda não concebidos.
A referência ao ente ainda não concebido remonta à f‌igura da prole eventual,
admitida pelo Código Civil de 1916 no art. 1.718. À luz da codif‌icação anterior, a
prole eventual seria benef‌iciária da sucessão testamentária, desde que seus futuros
pais fossem vivos no momento da abertura da herança. De acordo com Orlando Go-
mes, os “nascituros não concebidos”, como ele preferia denominar, “têm capacidade
sucessória, se f‌ilhos forem de pessoa determinada, viva ao tempo da abertura da
sucessão ou se instituídos por substituição f‌ideicomissária, hipótese em que não se
exige o laço de parentesco”40. Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, o inciso
I do art. 1.799 do Código Civil vigente “repete, com redação aperfeiçoada, a regra
da parte f‌inal do revogado art. 1.718, CC de 1916”41. Assim, à luz da codif‌icação
vigente, admite-se que “a título excepcional, [...] na sucessão testamentária haja
vocação hereditária da prole eventual de determinada pessoa existente na época do
falecimento do testador”.42
Critica-se contemporaneamente a insistência da doutrina em utilizar a ex-
pressão “prole eventual”, “em boa hora abandonada pelo Código Civil”, preferindo
adotar a dicção “f‌iliação eventual”. Sustenta-se que a mudança é salutar, na medida
em que soterra as “inf‌indáveis discussões, pois se questionava se ‘prole eventual’
contemplava ulteriores descendentes, como netos ou bisnetos da pessoa indicada
no testamento”43. A redação aperfeiçoada não deixa mais dúvidas de que somente
podem ser nomeados como herdeiros testamentários os f‌ilhos não concebidos da
pessoa indicada pelo testador.
A doutrina aponta, contudo, que, por força do princípio constitucional da plena
igualdade entre os f‌ilhos, o vínculo de f‌iliação entre a pessoa indicada no testamento
e o herdeiro contemplado pode ter qualquer origem. Ou seja, a expressão “f‌ilhos ain-
da não concebidos” (art. 1.799, inciso I) contempla, além da f‌iliação consanguínea:
“(a) o f‌ilho resultado da reprodução assistida heteróloga (CC 1.597 V); (b) o que
detém a posse de estado de f‌ilho; e (c) o f‌ilho cuja adoção ocorrer depois da morte
do adotante (CC 1.628)”44. Desse modo, a capacidade sucessória testamentária na
f‌iliação eventual pode abranger aqueles embriões pré-implantatórios, desde que
sejam implantados no útero da mulher para gestação e nasçam com vida no período
de dois anos, conforme determina o § 4º do art. 1.800.
Diferente, contudo, é a situação do nascituro, que possui capacidade sucessória
geral. Nos termos do art. 1.798, “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já
concebidas no momento da abertura da sucessão”. A segunda parte do dispositivo
40. GOMES, Orlando. Sucessões. 15. ed., rev. e atual. por Mario Roberto Carvalho de Faria. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 31.
41. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: sucessões. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 44.
42. Id. Ibid., p. 44.
43. DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 337.
44. Id. Ibid., p. 339.
57
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
trata da capacidade sucessória do nascituro, que foi contemplado na ordem de voca-
ção hereditária legítima, sob a condição de nascer com vida. O legislador foi infeliz
na redação do mencionado dispositivo, tendo em vista que ao se referir as pessoas já
concebidas, permitiu que debates se aglomerassem em torno da extensão da regra
do art. 1.798 aos embriões concebidos in vitro.
O Código Civil de 1916 não dispôs sobre a capacidade para suceder na suces-
são legítima do nascituro, embora doutrina e jurisprudência lhe estendessem este
direito45. Em relação à capacidade sucessória para adquirir por testamento, o Código
pretérito tratou o assunto de maneira assistemática e confusa ao prever no art. 1.717
que “podem adquirir por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte do tes-
tador, que não forem por este Código declaradas incapazes”. Em seguida, estabelecia
que os absolutamente incapazes de adquirir por testamento seriam “os indivíduos
não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição deste se referir à prole
eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão”. Da inter-
pretação conjunta dos dispositivos, era possível se inferir que o nascituro possuía
capacidade para suceder na modalidade testamentária.
No campo do direito de f‌iliação, de acordo com o art. 1.597, incisos III, IV e V46,
presumem-se concebidos na constância do casamento os f‌ilhos havidos por técnicas
de reprodução assistida homóloga mesmo que falecido o marido (III) ou, a qualquer
tempo, quando se tratar de embriões excedentários (IV), bem como os havidos por
inseminação artif‌icial heteróloga, desde que haja prévia autorização do marido (V).
Sabe-se que em qualquer dessas hipóteses há possibilidade de a mulher engravidar
após a morte do marido, quer seja pela utilização de seu sêmen, quer pela implan-
tação de embrião congelado, sendo que se exige a autorização do falecido para os
casos de reprodução assistida heteróloga. Dessa maneira, percebe-se que a expressão
“concebidos” neste artigo também abrange os embriões criados através das técnicas
de reprodução assistida e ainda não implantados no útero para iniciar-se a gestação.
45. Na verdade, o Código Civil de 1916 previa somente a capacidade para adquirir por testamento. O artigo 1.717
dispunha: “Podem adquirir por testamento as pessoas existentes ao tempo da morte do testador, que não
forem por este Código declaradas incapazes”. No dispositivo subsequente, o legislador pretérito esclarecia
quem era os absolutamente incapazes de adquirir por testamento (“Art. 1.718. São absolutamente incapa-
zes de adquirir por testamento os indivíduos não concebidos até a morte do testador, salvo se a disposição
deste se referir á prole eventual de pessoas por ele designadas e existentes ao abrir-se a sucessão”). Sobre tal
imprecisão, Clóvis Beviláqua lecionava: “Distingue o código entre incapacidade absoluta e incapacidade
relativa. Absoluta é a da pessôa que ainda não está concebida ao tempo da morte por testador. A incapacidade
absoluta resulta não como devera ser, da falta de personalidade, mas da não existência. O embryão (sic) não
tem personalidade, mas póde (sic) adquirir por testamento. Manifesta-se aqui a inconsequência do systema
(sic), que recusa personalidade ao nascituro. Embora absoluta, a incapacidade não concebida admitte (sic)
uma excepção (sic) a favor da prole futura” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, vol. VI,
3. ed., 1935, p. 174).
46. Com o objetivo de reparar os equívocos cometidos pelo legislador ordinário ao utilizar as expressões re-
lativas ao conjunto das técnicas de reprodução assistida, foi aprovado o enunciado n. 105, da I Jornada de
Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Art. 1.597: as expressões ‘fecundação artif‌icial’, ‘concepção
artif‌icial’ e ‘inseminação artif‌icial’ constantes, respectivamente, dos incs. III, IV e V do art. 1.597 deverão
ser interpretadas como ‘técnica de reprodução assistida’”.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
58
Por f‌im, o Código Civil faz referência, ainda, ao termo “concepção” quando
reza que “a prova da impotência do cônjuge para gerar, à época da concepção, ilide
a presunção da paternidade” (art. 1.599). Doutrina contemporânea sustenta que
este dispositivo “não dispõe de qualquer razão de ser”, eis que “modernas técnicas
afastam cada vez mais a infertilidade e, no mundo pós-moderno, é descabido falar
em impotência”. Além do mais, ressalta que “toda a discussão travada sobre a ale-
gação – ou até mesmo a prova – da impotência, quer para a mantença de relações
sexuais (impotência coeundi), quer para procriar (impotência generandi), acaba se
esvaziando” em razão da alta probabilidade de certeza do vínculo genético af‌ian-
çado pelo exame de DNA. É claro que o fenômeno da “sacralização” do DNA deve
ser afastado, tendo em conta que nem sempre a comprovação científ‌ica do liame
consanguíneo deve preponderar em face da paternidade socioafetiva. Af‌inal, já se
af‌irmou que a “a paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato
cultural”47, o que reclama a desconstrução do discurso da preponderância genética
sobre a socioafetiva em sede de f‌iliação, que após avanços importantes foi posta em
xeque pela conf‌iabilidade e alto grau de certeza dos testes de DNA.48
Percebe-se, portanto, que o legislador não conferiu tratamento uniforme quanto
ao uso da expressão “concepção” no decorrer do Código Civil, pois em que pese tra-
dicionalmente o termo se ref‌ira ao nascituro, conforme preconiza o art. 2º – embora
haja divergência –, em outras passagens do texto codif‌icado ele faz referência tanto
ao nascituro, ou seja, aquele que se encontra em gestação, quanto aos embriões ha-
vidos por técnicas de reprodução assistida (arts. 1.597, III, IV e V, e 1.798). Assim, a
concepção não é um critério hábil para a qualif‌icação do nascituro, que se caracteriza
pelo fato da gestação se encontrar em curso, razão pela qual se diz que nascituro é
aquele que foi implantado no útero feminino e que se encontra em desenvolvimen-
to. Por outro lado, a concepção, e não a gestação em si, parece ser o fundamento da
presunção de paternidade, previsto no art. 1.597 do Código Civil, nos casos de f‌ilhos
havidos por meio das técnicas de reprodução humana assistida durante o casamento
ou mesmo após a morte do pai, se autorizado em vida a utilização do material genético.
4.2 Reprodução assistida post mortem, vocação hereditária dos embriões
congelados e as controvérsias sobre o prazo prescricional
A questão da reprodução assistida post mortem gera inf‌indáveis debates no di-
reito brasileiro resultantes principalmente do art. 1.597, inc. III e IV, do Código Civil
47. Ver, por todos, VILLELA, João Baptista. A desbiologização da paternidade.In: Revista da Faculdade de Direito
da UFMG. Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21, 1979, passim; e, BARBOZA, Heloisa Helena. Novas relações de
f‌iliação e paternidade. In: Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família, Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
48. Cabe lembrar o que o Supremo Tribunal Federal ao se pronunciar sobre o tema da multiparentalidade e a
prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, por maioria e nos termos
do voto do Relator, f‌ixou a tese n. 622 nos seguintes termos: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não
em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de f‌iliação concomitante baseado na origem
biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Desse modo, não há hierarquia entre paternidade biológica e
socioafetiva, que, a depender do caso concreto, podem ser concomitantes.
59
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
vigente, que cuidam da hipótese de presunção de paternidade nos casos de repro-
dução assistida homóloga, mesmo que falecido o pai. Parte da doutrina se posiciona
de maneira desfavorável à aceitação do uso das técnicas de reprodução assistida post
mortem, sob a justif‌icativa de a futura criança vir a nascer sem a f‌igura do pai, fato
que afrontaria o direito à biparentalidade e o princípio da paternidade responsável, e,
por via de consequência, a própria dignidade do f‌ilho a porvir49. Por outro lado, com
o reconhecimento da família monoparental em sede constitucional no art. 226, § 4º,
outros autores entendem ser possível a constituição da monoparentalidade através
do recurso à reprodução artif‌icial post mortem.50
Nessa linha, a Resolução n. 2.168/2017 do CFM estabelece no item VIII que é
“permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia es-
pecíf‌ica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo
com a legislação vigente”. Cabe frisar que o Provimento n. 63, de 14 de novembro de
2017, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre o registro de nascimento
e emissão da respectiva certidão dos f‌ilhos havidos por reprodução assistida, entre
outros, prevê, no § 2º, do art. 17, que, além dos documentos necessários para o registro
independentemente de autorização judicial, nos casos de reprodução assistida post
mortem, “deverá ser apresentado termo de autorização prévia específ‌ica do falecido ou
falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público
ou particular com f‌irma reconhecida”51. Tal previsão reforça o reconhecimento da
reprodução assistida post mortem no direito brasileiro.
Desse modo, apesar da ausência de lei específ‌ica sobre o assunto, é possível
concluir, em conformidade com os valores constitucionais, especialmente diante do
direito ao livre planejamento familiar, que a reprodução assistida post mortem é ad-
mitida no direito pátrio. Em outros termos, não há afronta à paternidade responsável
e ao melhor interesse do f‌ilho a porvir, eis que tais princípios se densif‌icam apenas a
partir do exercício efetivo e emancipatório da autoridade parental independentemente
do modelo familiar escolhido. Além disso, a biparentalidade, por si só, não assegura
49. Rose Melo Vencelau Meireles entende que “acolher a possibilidade de uma pessoa ser concebida sem pai,
é frustrá-la do convívio familiar e, principalmente, afrontar a sua dignidade. A criança tem direito à bipa-
rentalidade”, refutando a possibilidade de argumentação com base na proteção às famílias monoparentais,
“pois o que se pretende com a norma do §4º do art. 226 da CF é que também tenham proteção do Estado,
uma vez que venham a se formar tais circunstâncias. Diferencia-se a hipótese do legislador estimular certas
situações, daquela em que se protege uma situação em que venha ocorrer, como na concretização da família
monoparental” (O elo perdido da f‌iliação: entre a verdade jurídica, biológica e afetiva no estabelecimento do
vínculo paterno-f‌ilial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 56).
50. Neste sentido, v. CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito de
família. Vol. 18 (arts. 1.591 a 1.710). AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2004;
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 8 ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3 ed. rev., ampl. e atual.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; ALMEIDA, Vitor. O Direito ao Planejamento Familiar e as novas Formas
de Parentalidade na Legalidade Constitucional. In: Direito Civil: Estudos - Coletânea do XV Encontro dos
Grupos de Pesquisa – IBDCIVIL. São Paulo: Blucher, 2018, pp. 419-448.
51. O provimento n. 52/2016, que anteriormente regia o assunto, previa apenas o documento por instrumento
público.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
60
o desenvolvimento sadio da futura criança, mesmo porque impossível garantir tal
formação dúplice familiar, visto que o pai pode falecer durante a fase gestacional.
Acresça-se ao debate a família monoparental, constitucionalmente reconhecida, à
qual não deve ser negado o direito ao planejamento familiar. O tema é complexo e
escapa, assim, dos limites do presente estudo.52
Superados os obstáculos à possibilidade de reprodução assistida post mortem,
descortinam-se as questões relativas aos direitos sucessórios dos f‌ilhos póstumos, que
incluem saber se os embriões concebidos após a morte e os que se encontrem conge-
lados na data da abertura da sucessão possuem legitimidade sucessória e, portanto,
integram a ordem de vocação hereditária. Observe-se que o Código Civil ao relacionar
as hipóteses de presunção de paternidade não estabeleceu qualquer prazo nos incisos
III, IV e V, diferentemente do que fez nos incisos I e II, ensejando o surgimento de
f‌ilhos póstumos a qualquer tempo. Fica em aberto o momento em que pode ocorrer
a gestação dos embriões já concebidos, que é o caso dos excedentários, ou até dos
não concebidos ao tempo da abertura da sucessão, em razão do disposto nos incisos
IV e V. Em consequência, permanece pendente por tempo indeterminado, se não a
transmissão, o deferimento da herança, que poderá jamais se operar, uma vez que,
tanto nas hipóteses do art. 1.597, inc. III, IV e V, existe apenas uma possibilidade,
cuja verif‌icação dependerá de diversos fatores.53
Cabe lembrar, como destacado, que a transmissão da herança se opera em favor
dos herdeiros existentes no momento da abertura da sucessão, a teor do art. 1.784,
do Código Civil, que além disso devem estar legitimados a receber, nos termos do
art. 1.798, do mesmo diploma. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, ao enfrentar
a possibilidade da vocação dos embriões congelados na sucessão causa mortis legí-
tima, esclarece que:
[...] deve-se considerar, de acordo com o sistema introduzido pelo novo CC, que o embrião não
implantado não pode ser considerado no bojo do art. 1.798, CC, porquanto no sistema jurídico
brasileiro é vedada a possibilidade da reprodução assistida post mortem, diante dos princípios da
dignidade da (futura) pessoa humana, da igualdade dos lhos em direitos e deveres e, principalmente,
do melhor interesse da criança (arts. 226, § 7º, e, 227, caput, e § 5º, ambos da Constituição Federal).54
No que tange à tutela sucessória, Maria Berenice Dias defende que não é possível
excluir herdeiro por ter sido concebido através das técnicas de reprodução assistida
post mortem, independentemente da modalidade – se homóloga ou heteróloga, mas
52. Ver sobre o assunto: BARBOZA, Heloisa Helena. A reprodução humana como direito fundamental. In: DIREITO,
Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEREIRA, Antônio Celso Alves (Orgs.).
Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 777-801.
53. Cabe sublinhar que embora não se aplique, por lei, a presunção de paternidade na hipótese de união estável,
em havendo autorização expressa para utilização do material genético do companheiro falecido é possível
o registro de nascimento independentemente de decisão judicial, uma vez que o Provimento n. 63/2017
não diferencia os f‌ilhos havidos de reprodução assistida post mortem de pais casados ou que viviam em
união estável. Cf. TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau.
Fundamentos do direito civil: direito das sucessões. v. 7, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 77.
54. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Op. cit., p. 43.
61
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
nesta ressalva a indispensabilidade da autorização –, por força do princípio constitu-
cional da igualdade assegurada à f‌iliação, conforme reza o art. 227, § 6º. A autora crítica
aqueles que indicam o prazo de dois anos para a concepção póstuma em analogia
ao art. 1800, § 4º, pois “esta limitação não tem qualquer justif‌icativa”. Af‌irma que a
“tentativa de emprestar segurança aos demais sucessores não deve prevalecer sobre
o direito hereditário do f‌ilho que veio a nascer, ainda que depois de alguns anos”.55
Alerta a doutrina que a “legitimidade sucessória se rege pelo princípio da co-
existência, o qual seria afastado caso se admita a legitimidade sucessória dos f‌ilhos
havidos de reprodução assistida post mortem56. A rigor, a regra do 1.798 diz respeito
à legitimação e não à vocação propriamente dita, que é o chamamento dos herdei-
ros. Desse modo, cabe frisar que os embriões congelados somente serão chamados
a suceder se (i) vierem a ser implantados e (ii) nascerem com vida. Por isso, não há
que se falar em sucessão do embrião congelado57, mas tão somente em legitimidade
sucessória sujeita ao futuro nascimento com vida para efetivar sua vocação hereditária.
De fato, é preciso assegurar os direitos sucessórios não apenas aos f‌ilhos conce-
bidos/implantados f‌isiologicamente que venham a nascer após a abertura da sucessão
de seus pais, mas também aos gerados através de técnica de reprodução assistida,
que se conclua ou realize post mortem de seus pais.
A aplicação do prazo previsto no art. 1.800, § 4º, se revela profundamente
restritiva e prejudicial ao f‌ilho posteriormente gerado, além de propiciar grande
insegurança jurídica, quando se considera a permissão dada pela Lei ao testador
para estabelecer “disposição em contrário”, subtraindo a herança que caberia aos
herdeiros legítimos, conforme prevê o citado § 4º. É de se questionar como resolver
a situação dos concebidos e/ou nascidos depois do prazo de dois anos, possibilidade
que não pode ser descartada quando se trata das técnicas de reprodução assistida. Não
parece razoável inibir, por força da aplicação analógica de um dispositivo pertinente
à sucessão testamentária, o direito de herdeiro necessário, que venha a nascer dois
anos após a abertura da sucessão. Nestes termos, parece mais adequada a prescrição
contida no enunciado n. 267, da III Jornada de Direito Civil, promovido pelo Cen-
tro de Estudos Judiciários da Justiça Federal: “A regra do art. 1.798 do Código Civil
deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução
assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos
efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança”.
Há, contudo, que se admitir que tal prazo prescricional pode se estender por perí-
odo ainda maior, uma vez que, nos termos do art. 198, inc. I, do Código Civil, não corre
a prescrição contra os absolutamente incapazes. Por isso, adverte a doutrina que “[H]
haveria assim, pelo menos, 26 anos até a prescrição do pedido da petição de herança
55. DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 122 e 124.
56. TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Op. cit., p. 76.
57. Cf. MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Sucessão do embrião. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord.). Ar-
quitetura do Planejamento Sucessório. 2. ed., ver. ampl. e atual., Belo Horizonte: Fórum, 2019, pp. 209-221.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
62
(16 anos de vida do sucessor mais 10 anos do prazo de petição de herança, além do
prazo necessário para a implantação do embrião e para eventual controvérsia judicial
com herdeiros), o que é tempo demasiadamente longo para se concluir a sucessão
de alguém”58. Já se propôs como alternativa a utilização de testamento para limitar
o lapso temporal em que a reprodução assistida post mortem poderia ocorrer59. Cabe
mencionar que tal problema não afeta exclusivamente os f‌ilhos póstumos oriundos
das técnicas reprodutivas. Considerando que o prazo prescricional não corre contra
qualquer herdeiro absolutamente incapaz, pode acontecer problema similar no caso
de haver ação investigatória de paternidade, que é imprescritível. Em tal hipótese,
o início da contagem do prazo de prescrição para petição de herança só começa a
correr após a decisão def‌initiva que reconhece a paternidade e legitima o pedido de
petição da herança que, af‌inal, cabe ao f‌ilho reconhecido desde a abertura da sucessão.
A possibilidade de implantação de embriões após morte de um do cônjuges já
alcançou nossas instâncias pretorianas. O Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou
pedido de autorização para utilização de material genético de falecido para f‌ins de
reprodução assistida post mortem, por entender que a retirada ocorreu após o óbito
e sem a expressa autorização do falecido em vida.60
Em outro caso, em reforço ao elemento volitivo, o referido Tribunal entendeu,
em ação movida pelos f‌ilhos do falecido contra o hospital Sírio Libanês e o cônjuge
sobrevivente, que em respeito ao acordo f‌irmado em vida pelo casal os embriões
congelados f‌icariam sob o guarda do supérstite.61
Em sede de recurso especial, o conf‌lito acima começou a ser apreciado pela 4ª
turma do Superior Tribunal de Justiça. No caso concreto, os f‌ilhos do homem falecido,
havidos de seu primeiro casamento, contestam a decisão do tribunal paulista, que ao
reformar a sentença permitiu que a terceira esposa do pai realizasse a implantação
dos embriões após o seu falecimento.62
O Ministro Relator, Marco Buzzi, votou no sentido de permitir a implantação
dos embriões criopreservados, eis que em seu entendimento é incontroverso que o
falecido nutria o desejo, em vida, de ter f‌ilhos com sua esposa, tanto que se submete-
ram ao processo de fertilização in vitro, realizando o falecido, inclusive, procedimento
cirúrgico de aspiração de espermatozoides para tal f‌im. Ressaltou, ainda, o Relator
que, caso a implantação seja bem-sucedida, haverá “induvidosas consequências em
suas esferas de direitos, em especial sucessórios e patrimoniais”.
58. TEPEDINO, Gustavo; NEVARES, Ana Luiza Maia; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Op. cit., p. 78.
59. Id. Ibid., p. 78.
60. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 7ª Câm. de Dir. Priv. Apelação nº 1000586-
47.2020.8.26.0510, Rel. Des. José Rubens Queiroz Gomes, julg. 11 fev. 2021.
61. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 9ª Câm. de Dir. Priv. Apelação nº 1082747-
88.2017.8.26.0100, Rel. Des. Ângela Lopes, julg. 19 nov. 2019.
62. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4ª T., Resp. n. 1.918.421-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, autuado em 02
fev. 2021. Após pedido de vista, o feito encontra-se concluso para julgamento ao Min. Luis Felipe Salomão.
63
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
No entanto, o Ministro Luis Felipe Salomão, acompanhado posteriormente
pelos Ministros Raul Araújo e Antonio Carlos Ferreira, abriu a divergência e se
posicionou pela necessidade de autorização expressa já que implica na expressão
da autodeterminação com efeitos para além da vida, com repercussões existenciais
e patrimoniais. Desse modo, em 08 de junho de 2021, a Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, deu provimento ao Recurso Especial nº
1.918.421, reformando a decisão proferida pela 9ª Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de não autorizar a esposa do f‌inado a
realização de implantação de embriões formados com material genético do casal.
O principal argumento que impediu o uso do material genético após a morte foi a
inexistência de manifestação de vontade prévia, inequívoca, expressa e formal do
falecido para efetivação da reprodução.
Tal entendimento no sentido da impossibilidade de implantação de embriões
de um casal após a morte de um dos cônjuges sem manifestação expressa e formal
descortina velhos dilemas e amplia o debate sobre os limites da disposição do material
genético após a morte para f‌ins de procriação. A própria divergência de posiciona-
mento no âmbito do STJ, com o voto vencido do relator, Ministro Marco Buzzi e da
Ministra Maria Isabel Gallotti, no sentido de permitir a implantação de embriões post
mortem, demonstra a acesa controvérsia sobre o assunto e permanecem, portanto, as
dúvidas a respeito dos direitos sucessórios dos f‌ilhos póstumos, fruto de reprodução
assistida após a morte do pai ou da mãe, ou, inclusive, de ambos, que envolvem a
aplicabilidade do prazo prescricional de dez anos para pleitear a herança, de acordo
com o art. 205, observado o impedimento ao curso do prazo previsto no art. 198,
inc. I, ambos do vigente Código Civil.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As técnicas de reprodução humana assistida há tempos desaf‌iam os dogmas
jurídicos calcados em fatos naturais antes tidos como certos e imutáveis, a iniciar
com o repensar dos próprios institutos da paternidade e da maternidade, colocados
em xeque com o uso de material heterólogo e a gestação de substituição. Indubitá-
vel que tais técnicas atingem a “sacralidade” da natureza e permitem que pessoas
solteiras, casais homoafetivos e transgêneros63 tenham acesso ao projeto parental
biologicamente vinculado, mas sem a manutenção de relação sexual para esse f‌im.
Como visto, é crescente no Brasil a procura pelos serviços de reprodução assistida,
o que descortina questões relacionadas à efetividade do direito ao planejamento fa-
miliar e à própria fundamentalidade do direito à reprodução, já havendo demandas
63. Por força da Resolução n. 2.283/2020 do Conselho Federal de Medicina que alterou a redação do item II.2
da Resolução n. 2.168/2017, atualmente é “permitido o uso das técnicas de RA para heterossexuais, homo-
afetivos e transgêneros”. Cabe destacar que na redação original mencionava-se “relacionamentos homoa-
fetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico”, sendo que a
parte f‌inal não foi reproduzida na redação atual. Além disso, ao mencionar “heterossexuais, homoafetivos
e transgêneros” contempla pessoas solteiras ou em relacionamentos.
HELOISA HELENA BARBOZA E VITOR ALMEIDA
64
relativas à obrigação do Poder Público de custear tais técnicas, bem como dos planos
de saúde cobrir os custos da reprodução assistida.
O substancial aumento na importação de material genético64 e as demandas
judiciais que envolvem pedidos de autorização para utilização de material genético
de pessoas falecidas revelam novos desaf‌ios, especialmente em razão da inexistência
de lei específ‌ica sobre o assunto. Diante desse cenário, dilemas sobre o direito ao
conhecimento da ascendência genética transnacional e os direitos sucessórios do
embriões crioconservados se colocam como novas fronteiras rompidas pelas técnicas
de reprodução assistida. A legitimidade sucessória dos embriões congelados, o direito
ao material genético deixado pelo autor da herança, assim como as controvérsias a
respeito do prazo prescricional, examinados acima, são problemas que integram o
rol de situações que reclamam solução urgente do legislador.
Ao se analisar as diversas correntes e perspectivas sobre o tema, concluiu-se
que aplicar a regra do § 4º, do art. 1.798 c/c 1.800, do Código Civil, para resolver
a ausência de prazo no art. 1.597, da Lei Civil, para a conclusão da técnica de re-
produção assistida iniciada pelo casal, não parece a melhor solução. Cabe lembrar
que, além das razões acima apontadas, a imposição de uma limitação temporal para
o nascimento do f‌ilho acabaria por restringir indiretamente o direito de a mulher
decidir sobre ter, e de quando ter, o f‌ilho, que lhe é assegurado constitucionalmente
(art. 226, § 7º), já que o f‌ilho, havido após dois anos não seria herdeiro. Além disso,
haveria afronta ao princípio da plena igualdade entre os f‌ilhos, uma vez que exclu-
ídos estariam os havidos após o prazo. Considere-se, ainda, não ser recomendável
aplicar limitações de qualquer ordem por interpretação extensiva. Em resumo, não
f‌ica satisfatoriamente respondida a pergunta: o que ocorreria caso houvesse concep-
ção (ou gravidez) após os dois anos? Qual o fundamento para se negar os direitos
sucessórios, de origem constitucional, a um potencial herdeiro necessário concebido
ou nascido após esse prazo?
Em face de tais argumentos, aplicar o prazo prescricional, para limitar apenas
a possibilidade de petição da herança, mantendo o respeito às normas sobre conta-
gem do prazo, ainda que isto acarrete um prazo mais longo, parece ser a solução que
melhor atende os valores estampados na tábua axiológica constitucional, uma vez
que não ofende a origem da f‌iliação e nem desampara o f‌ilho fruto de reprodução
assistida post mortem.
Destaque-se, por f‌im, que a observância do princípio da plena igualdade entre
os f‌ilhos não deve implicar o afastamento do prazo prescricional para a petição de
herança, direito de natureza patrimonial. Esta proposta, se não é a solução ideal,
64. “Nos últimos sete anos (2011 a 2017) foram emitidas anuências referentes à importação de 1.950 amostras
seminais e 357 oócitos. Somente no ano de 2017 foram emitidas 860 anuências de importação de amostras
seminais e 321 oócitos”. ANVISA. 2º Relatório Dados de Importação de Células e Tecidos Germinativos para
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65
OS DESAFIOS DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SEUS EFEITOS SUCESSÓRIOS
pelo menos atende à orientação constitucional, preservando, independentemente de
prazo, os direitos existenciais, como o direito ao estado de f‌ilho e, por conseguinte,
ao nome e ao parentesco pela linha paterna ou materna. Mesmo que nada receba na
sucessão do falecido genitor, o f‌ilho póstumo, nascido a qualquer tempo, terá even-
tual direito à herança de seus avós por direito de representação, bem como a herdar
de outros parentes.
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