Direito real de habitação sucessório. Contexto atual

AutorLuiz Paulo Vieira de Carvalho
Páginas111-129
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO SUCESSÓRIO.
CONTEXTO ATUAL
Luiz Paulo Vieira de Carvalho
Advogado, parecerista, consultor jurídico, conferencista e árbitro. Professor Emérito
da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Membro do Fórum
Permanente de Direito de Família e Sucessões da Escola da Magistratura do Estado do
Rio de Janeiro – EMERJ. Membro do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Presidente da Comissão de Direito
de Família e Sucessões do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB Rio de Janeiro.
Vice-Presidente da Comissão de Direito das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito
de Família-IBDFAM. Mestrado e Pós-Graduação em Ciências Jurídicas na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal. Ex-Defensor Público Geral do Estado
do Rio de Janeiro.
Sumário: 1. Considerações e fundamentos – 2. Conclusão – 3. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES E FUNDAMENTOS
Acerca do Direito Real de Habitação Sucessório a favor do cônjuge sobrevivente
(art. 1.611, § 2º, do CC/16,1 inserido pela Lei 4.121/62-Estatuto da Mulher Casa-
da), também estendido ao companheiro sobrevivente pelo art. 7º, § único, da Lei
9.278/96,2 diz, nos tempos atuais, o Código Civil de 2002: “Art.1.831: “Ao cônjuge
sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da
participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a
inventariar.”
Trata-se de direito real ex lege,3 isto é, nasce automaticamente com a abertura da
sucessão do hereditando, conferido expressamente a favor do cônjuge sobrevivente,
1. Art. 1.611 § 2º do CC/16: “Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto
viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito
real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem
daquela natureza a inventariar.”
2. Art. 7° da Lei n.º 9.278/96: “Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta
Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos. Parágrafo único.
Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação,
enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência
da família”.
3. Pontes de Miranda, ((Tratado de direito privado. t. XII. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012) indaga se o
direito brasileiro conteria alguma hipótese de legado (art.1.912 e ss. do CC, isto é, bem singularizado, res
certa, apartado do monte hereditário) ex lege, nos seguintes termos: “Temos algum caso de legado legal, isto
é, sucessão singular de alguma coisa ou valor em virtude da lei? No Código Civil alemão, evidentemente há:
no § 1.932, além do que herda o cônjuge sobrevivo, que concorre com parentes da segunda ordem ou com
avós, recebe os objetos que fazem parte do lar, ou são pertenças de um imóvel, e os presentes de núpcias, e a
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olvidando-se, porém, o legislador atual de continuar contemplando, com o mesmo
benefício, o companheiro sobrevivente, em evidente retrocesso social.4
Tem o referido direito por objeto o imóvel residencial em que ex-casal residia
por ocasião da morte de um deles, a permitir ao parceiro sobrevivo ali continuar
morando a título gratuito e em caráter vitalício, com o f‌ito de garantir-lhe moradia,
independentemente de sua participação na herança em propriedade.
A respeito de suas peculiaridades e de seu cerne, vaticinam os respeitados dou-
trinadores paulistas Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim:
Habitação distingue-se de usufruto, pois tem caráter mais restrito que este. Consiste em uso para
moradia, não abrangente da percepção de frutos, por isso somente confere direito de habitar,
gratuitamente, imóvel residencial alheio. Quem habita não pode alugar, nem emprestar, mas
somente ocupá-lo com sua família.5
esse Voraus aplicam-se as regras jurídicas relativas aos legados; no § 1.969, o herdeiro é obrigado a, durante
trinta dias a contar da abertura da sucessão, dar sustento, como o fazia o falecido, aos membros da família
que por ocasião da morte, faziam parte do lar, e a lhes facultar o uso da residência e os objetos da habitação,
– permitido ao testador dispor diversamente: aplicam-se as regras jurídicas sobre legados. São os únicos
casos de legado legal, excelentemente inspirados.” A tal indagação, responde o mestre, a época, que não, ao
concluir que a hipótese contida no art. 1.569, inciso III, do Código Civil/1916, hoje o art. 965, inciso III, do
Código Civil/2002: “Goza de privilégio geral, na ordem seguinte, sobre os bens do devedor: III – o crédito
por despesas com o luto do cônjuge sobrevivo e dos f‌ilhos do devedor falecido, se foram moderadas; seria
melhor enquadrada como modo ou encargo legal, e não como legado legal.” Por sua vez, Orlando Gomes
(Sucessões, cit., p. 65, cit, t. 57, p. 146-147) af‌irma: “O cônjuge sobrevivo não se torna herdeiro pela atribui-
ção do direito real de habitação, sendo legatário legítimo, com sequelas próprias de semelhante condição”.
Assim, para nós, não é despiciendo, na atualidade, repetir a mesma dúvida, e indagar acerca da possibilidade
da ocorrência de legado ex lege no direito brasileiro. Sob o ponto de vista do contido na legislação ora em
análise, mormente quando essa individualiza, singulariza, aparta do monte hereditário imóvel específ‌ico
de que o de cuius em vida era titular, determinando sua entrega ao cônjuge sobrevivente, como objeto do
direito real de habitação a favor desse (ou então, ao companheiro sobrevivente), entendemos se classif‌icar
tal benefício como um legado ex lege.
4. A propósito, conf‌ira-se toda a autoridade do notável jurista português José Joaquim Gomes Canotilho
(Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998.): “O princípio da proibição
do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado
através de medidas legislativas [...] deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucio-
nais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se
traduzam na prática numa ‘anulação’ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do
legislador e inerente autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.” Entre os cons-
titucionalistas pátrios, leia-se, p. ex., a seguinte passagem do doutor professor Guilherme Peña de Moraes
(Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 86): “De outro lado, as normas constitucio-
nais que pretendam delimitar os f‌ins a serem alcançados pelo Estado e sociedade são revestidas de ef‌icácia
negativa [...], como também invalidam a revogação de normas infraconstitucionais, que regulamentavam
normas constitucionais programáticas, sem determinação de política substitutiva ou equivalente, pelos
Poderes Executivo e Legislativo, com a consequente vedação do retrocesso, tal como as normas inseridas
nos arts. 215, 217 e 226 da CRFB”. Vide também Ana Paula de Barcellos. (A ef‌icácia jurídica dos princípios
constitucionais – o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002) e Ingo Wolfang
Sarlet. (A ef‌icácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 274-277).
5. Oliveira, Euclides; AMORIM; Sebastião. Inventários e partilhas. Direito das sucessões. Teoria e prática. 23.
ed. São Paulo: LEUD, 2013. p. 154.) Resume a respeito o Código Civil peruano (1984): “Articulo 1027º.-
Derecho de habitacion. Cuando el derecho de uso recae sobre una casa a parte de ella para servir de morada,
se estima constituido el derecho de habitacion. Articulo 1028º. – Extension de los derechos de uso y habitacion.
Los derechos de uso y habitacion se extienden a la familia del usuario, salvo disposicion distinta. Articulo

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