Deveres e responsabilidade no tratamento e na promoção do consumidor superendividado

AutorFernando Rodrigues Martins e Cláudia Lima Marques
Ocupação do AutorÉ professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon/É professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela ...
Páginas671-691
DEVERES E RESPONSABILIDADE NO
TRATAMENTO E NA PROMOÇÃO DO
CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO
Fernando Rodrigues Martins
É professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do
Brasilcon.
Claudia Lima Marques
É professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela
Universidade de Heidelberg (Alemanha), mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade
de Tübingen (Alemanha) e ex-presidente do Brasilcon.
Sumário: 1. Introdução – 2. Atualização do CDC: tutelas ex ante; ex post; e ex supra – 3. A inserção
de princípios normativos: entre educação, meios e m – 4. Novos direitos e deveres básicos e
a responsabilidade civil: indenização, prevenção e atenuação – 5. A identicação do dano de
assédio de consumo – 6. A cláusula geral de indenização pelo descumprimento da prevenção – 7.
Considerações nais – 8. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Os deveres são como ‘tijolos’,1 que constroem um ‘edifício’: a obrigação. Essa pri-
meira ‘obrigação’ (Schuld) é de cumprimento voluntário. Os deveres são imputados,
por exemplo, a quem concede crédito, a quem intermedia compras a prazos, a quem
faz marketing ou ofertas aos consumidores na sociedade brasileira, fazem nascer
obrigações que devem ser cumpridas por todos. A lei, por exemplo o CDC atualizado
pela Lei 14.181/2021, pode imputar deveres (legais) aos fornecedores de produtos e
serviços, que serão fontes destas obrigações, sejam pré-contratuais, contratuais, pós-
ou extracontratuais. Atente-se que este ‘edifício obrigacional’ projeta sempre uma
‘sombra’ (Haftung), uma consequência: a segunda obrigação, aquela de cumprimento
impositivo, coativo, por império do Direito e que pode ser exigida na Justiça. No sentido
1. Esta f‌igura de linguagem é originalmente de Karl Larenz, renomado autor alemão, que não será citado no
corpo do texto, em respeito ao movimento alemão atual de diminuir a circulação de nomes de juristas com
passado nazista. Veja LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des deutschen Bürgerlichen Rechts. Munique: Beck,
1977, p. 23 e 24. Veja sobre a obrigação, LARENZ, Karl, WOLF, Manfred. Allgemeiner Teil des deutschen
Bürgerlichen Rechts. 9. ed. Munique: Beck, 2004, § 13, p. 225 e seguintes, livro que não traz mais a f‌igura
de linguagem aqui citada.
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FERNANDO RODRIGUES MARTINS E CLAUDIA LIMA MARQUES
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romano, ‘obligare’ é criar um vínculo,2 é chamar para ‘responder’,3 mas em Roma não se
fazia diferença entre Schuld e Haftung (eram usados como sinônimo: debitum, obligare,
nectare, solvere), mesmo destacando que a violação da obrigação levava à responsabi-
lidade.4 Realmente responder/responsabilidade é a consequência daquele que viola sua
obrigação primeira ou viola quaisquer dos deveres a ele imputado!
Aqui queremos nos concentrar nos novos deveres imputados pela Lei 14.181/2021,
que entrou em vigor no dia 2 de julho de 2021 para atualizar o Código de Defesa do
Consumidor-CDC. Lei que teve uma entrada em vigor sem vacacio legis, imediata
(Art. 5°), inclusive também no que diz respeito aos “efeitos produzidos após a entrada
em vigor’ dos contratos de crédito assinados antes de 2 de julho de 2021 (Art. 3° da
Lei 14.181/2021). Em outras palavras, as modif‌icações trazidas pela Lei 14.181, de
1° de julho de 2021 nos direitos dos consumidores e nos deveres dos fornecedores
aplicam-se imediatamente aos efeitos atuais (como cobrança de dívidas, retiradas
de consignados e débitos em conta) dos contratos anteriores,5 mas também devem
reger imperativamente (Art. 1° do CDC) toda a oferta de crédito (e de venda a prazo)
desde aquela data na sociedade brasileira.
A entrada em vigor da Lei 14.181/21, que dispõe sobre a prevenção e tratamen-
to ao superendividamento, teve por escopo não apenas inserir no mundo jurídico
o instituto do crédito responsável (Art. 6°, XI do CDC), bem como a prevenção e
tratamento ao superendividamento (Art. 4°, X c/c Art. 6°, XI do CDC), mas essen-
cialmente atualizar o Código de Defesa do Consumidor para evitar a exclusão social
(Art. 4°, X do CDC), com medidas extrajudiciais e judiciais de conciliação, revisão
e repactuação de dívidas (Art. 5°, VI e Art. 6°, XI do CDC), que preservem o mínimo
existencial (Art. 6°,XIII do CDC).6
A legislação que altera o CDC seguiu, na base, as mesmas diretrizes de trinta anos
atrás. Fixou princípios normativos (e estratégicos) até então pouco difundidos no
2. JUSTINIANO, Flavius P. S. Institutas do Imperador Justiniano (trad. Edison BINI), EDIPRO, 2001, p.
154: “A obrigação é um vínculo de direito, constituído com base no nosso Direito Civil,...” ou HONSELL,
Heinrich. Römisches Recht, 5. Ed, Berlin: Springer, 2002, p. 81:” I,3, 13 pr;: obligatio est iuris vinculum...
secundum nostrae civitatis iura.”
3. Assim LIEBS, Detlef. Römisches Recht, 6. Ed, Göttingen: UTB, 2004, p.229: “…‘obligare i.S.v. ‘halftabere
machen’ ist das Kunstprodukt.”
4. HONSELL, Heinrich. Römisches Recht, 5. Ed, Berlin: Springer, 2002, p. 81:” Einen Unterschied zwischen
Schuld und Haftung haben die Römer nicht gemacht. Die Nichterfüllung der Schuld führte zur Haftung.”
5. O Artigo terceiro da Lei não foi considerado pelo e. Superior Tribunal de Justiça no recente caso da autorização
para débitos em conta, que não garantam o mínimo existencial dos consumidores. No mínimo deveria ser
reaberto o prazo para os consumidores se liberarem dos débitos em conta que afetam o mínimo existencial,
sem as penas normalmente impostas de vencimento antecipado das dívidas, o que impede que consumidores
superendividados retirem ou rescindam os seus débitos em conta, referentes a contas a prazo. Destaque-se
assim a norma: “Art. 3º A validade dos negócios e dos demais atos jurídicos de crédito em curso constituídos
antes da entrada em vigor desta Lei obedece ao disposto em lei anterior, mas os efeitos produzidos após a
entrada em vigor desta Lei subordinam-se aos seus preceitos.” Acessível in L14181 (planalto.gov.br).
6. Veja-se MARQUES, Claudia Lima, Cap. 4, in BENJAMIN, Antonio Herman; MARQUES, Claudia Lima;
LIMA, Clarissa Costa de; VIAL, Sophia Martini. Comentários à Lei 14.181/2021: a atualização do CDC
em matéria de superendividamento. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 179 e seg.
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