Vedação à discriminação de preços sem justa causa: uma interpretação constitucional e útil do art. 39, X, CDC

AutorDaniel Dias, Rafaela Nogueira e Carina de Castro Quirino
Ocupação do AutorProfessor da FGV Direito Rio/Professora da FGV Direito Rio/Pesquisadora da FGV Direito Rio
Páginas55-92
VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS
SEM JUSTA CAUSA: UMA INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL E ÚTIL DO ART. 39, X, CDC
Daniel Dias
Professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com
período de pesquisa na LMU, em Munique, e no Instituto Max-Planck, em Hamburgo
(2014-2015). Pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017).
daniel.dias@fgv.br
Rafaela Nogueira
Professora da FGV Direito Rio. Pós-doutora e doutora em Economia pela Escola de
Pós-Graduação em Economia da Fundação Getulio Vargas (EPGE/FGV).
rafaela.nogueira@fgv.br
Carina de Castro Quirino
Pesquisadora da FGV Direito Rio. Professora substituta de Direito Constitucional e
Administrativo da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ). Doutoranda em Direito
Público na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
carinacastrodir@gmail.com
1. Introdução – 2. A origem do art. 39, X, CDC; 2.1 Vedação ao aumento de preços sem justa
causa no direito da concorrência; 2.2 Transposição para o CDC – 3. Propostas de interpretação
e sua crítica; 3.1 Propostas que levam à inconstitucionalidade do dispositivo; 3.1.1 Vedação ao
aumento de preço superior à elevação do custo dos insumos; 3.1.2 Vedação ao aumento de preço
em aproveitamento de “dependência” ou “catividade” do consumidor; 3.2 Propostas que levam à
inutilidade do dispositivo; 3.2.1 Vedação ao aumento de preço após a celebração do contrato; 3.2.2
Vedação ao preço excessivo; 3.2.3 Vedação ao aumento desproporcional e oportunista de preço;
3.2.4 Vedação ao aumento de preço de forma dissimulada; 3.2.5 Vedação ao aumento de preço
controlado ou tabelado – 4. Interpretação constitucional e útil do art. 39, X, CDC – 5. Aplicação
do art. 39, X, CDC; 5.1 Discriminação de preços pela quantidade de água consumida (tarifa pro-
gressiva); 5.2 Discriminação de preços pelo método de pagamento; 5.3 Discriminação de preços
em casas noturnas pelo gênero do consumidor; 5.4 Discriminação de preços pela localização do
consumidor (geopricing) – 6. Conclusão – 7. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Segundo o art. 39, inc. X, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), é vedado
ao fornecedor “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”.1 Apesar da
1. Agradecemos aos colegas da FGV Direito Rio que contribuíram com a leitura e comentários a versão an-
terior desse artigo no seminário de pesquisa da escola, em especial a Carlos Ragazzo, que, na qualidade de
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aparente clareza – com exceção da expressão “justa causa”, o conteúdo da vedação
parece ser bem claro –, há grave divergência na doutrina e jurisprudência em relação
à interpretação e aplicação desse dispositivo.
Há sete propostas de interpretação do art. 39, X, CDC. Elas têm em comum o
objetivo de resguardar o consumidor da cobrança de preços excessivamente altos.
Segundo uma tradicional posição, por exemplo, essa previsão exigiria que as elevações
de preços dos produtos ou serviços estivessem justif‌icadas em aumentos dos custos
dos respectivos insumos. Segundo uma outra proposta difundida, esse dispositivo
teria a f‌inalidade de impedir que os fornecedores se aproveitassem de situações de
escassez de produtos para elevar imoderadamente os seus preços e assim lucrar exage-
radamente. As linhas de interpretação até hoje propostas são, contudo, insatisfatórias,
pois levam ou à inconstitucionalidade do dispositivo ou à sua inutilidade prática.
O problema enfrentado nesse artigo é, portanto, o de se é possível extrair do art.
39, X, CDC uma interpretação constitucional e útil. Em outras palavras: se é possível
dele extrair norma jurídica que, para além de garantir sua constitucionalidade, tenha
efeitos práticos signif‌icativos. A hipótese da qual se parte é a de que há sim espaço
para uma tal interpretação do art. 39, X, CDC, não obstante as insuf‌iciências das
posições doutrinárias mapeadas no cenário brasileiro.
No presente artigo, propomos que o art. 39, X, CDC veda a discriminação de
preços sem justa causa. Ou seja, ele proíbe o fornecedor de cobrar preços diferentes
por um mesmo produto ou serviço, salvo se houver justa causa para tal discriminação.
De fato, essa não é uma interpretação a que se chega logo a partir de uma primeira
leitura do dispositivo, mas que exige algum esforço hermenêutico. Trata-se, no en-
tanto, de esforço necessário, pois essa é uma interpretação que, por um lado, está
dentro do âmbito do sentido literal possível do texto legal e que, de outro, garante
ao dispositivo a sua constitucionalidade e utilidade prática.
No desenvolvimento dessa posição, o artigo se divide em quatro partes. Pri-
meiramente, apresenta-se a origem do art. 39, X, CDC. Em seguida, são analisadas
criticamente as propostas existentes de interpretação desse dispositivo. Em terceiro
lugar, é apresentada a nossa proposta de interpretação e, por f‌im, são analisados
alguns grupos de casos de aplicação do art. 39, X, CDC.
A metodologia utilizada é a analítico-dogmática, uma vez que se busca nesse artigo
identif‌icar uma interpretação operacional do art. 39, X, CDC. Na interpretação desse
dispositivo, vale-se especialmente dos elementos histórico e sistemático de interpre-
tação.2 O recorte temático para a pesquisa sedimenta-se essencialmente no campo do
primeiro comentador, fez relevantes sugestões. Agradecemos também a Francisco Medina pelas conversas
sobre o tema, pela leitura atenta e pelas numerosas observações.
2. Sobre uma recente revalorização dos elementos savignyanos de interpretação, ver: HERZOG, Benjamin.
Anwendung und Auslegung von Recht in Portugal und Brasilien: eine rechtsvergleichende Untersuchung aus
genetischer, funktionaler und postmoderner Perspektive: zugleich ein Plädoyer für mehr Savigny und
weniger Jhering. Tübingen: Mohr Siebeck, 2014.
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VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO DE PREÇOS SEM JUSTA CAUSA
Direito do Consumidor, apesar de breve análise do Direito Concorrencial em função
da origem histórica do referido dispositivo. O procedimento de pesquisa obedece a
dois ditames gerais: a) a identif‌icação exaustiva e análise crítica dos posicionamentos
doutrinários sobre a interpretação do referido dispositivo; b) a análise de decisões judi-
ciais que utilizam o dispositivo na sua fundamentação; e c) a apresentação de grupos de
casos de aplicação do art. 39, X, CDC à luz da interpretação proposta no presente artigo.
2. A ORIGEM DO ART. 39, X, CDC
O art. 39, X, CDC tem sua origem em previsão da segunda lei de defesa da con-
corrência que vedava, como potencial infração da ordem econômica, o aumento de
preço sem justa causa. A compreensão dos pressupostos, da f‌inalidade e mesmo das
dif‌iculdades práticas de aplicação dessa norma no seu contexto original, levam, to-
davia, à conclusão de que ela não deveria ter sido transposta para o CDC. Contudo,
como a transposição de fato ocorreu, em função dessa sua inserção em sistema jurí-
dico consideravelmente diferente, no direito do consumidor a vedação ao aumento
de preço sem justa causa passou a ser objeto de novas e diferentes interpretações e a
ter de assumir um novo sentido normativo.
Portanto, antes de tratar da sua transposição para o direito do consumidor,
cumpre analisar a experiência da vedação ao aumento de preço sem justa causa no
direito da concorrência.
2.1 Vedação ao aumento de preços sem justa causa no direito da
concorrência
No direito da concorrência, a vedação ao aumento de preço sem justa causa
surgiu em um contexto de tentativa de concretizar a imposição constitucional de
que a lei deve reprimir o abuso de poder econômico que vise ao aumento arbitrário
dos lucros. Contudo, a elevação injustif‌icada de preços nunca foi, por si só, proibida.
Ela era relevante apenas quando o agente se encontrava em posição dominante no
mercado, de modo que, sem fazer face a uma concorrência efetiva, era capaz de sim-
plesmente “impor” aos consumidores a elevação do preço. Porém, por dif‌iculdades
práticas de aplicação, a previsão acabou sendo revogada da legislação concorrencial.
Desde 1946, todas as Constituições Federais – de 19463, de 19674 e a atual de
19885 – contém previsões que estabelecem como meta a repressão ao abuso do poder
3. “Art. 148. A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agru-
pamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por f‌im dominar os
mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.”
4. “Art. 157. A ordem econômica tem por f‌im realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...]
VI - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da
concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.
5. “Art. 173. [...] § 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”
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