O apoio às pessoas com deficiência em tempos de coronavírus e de distanciamento social

AutorRaquel Bellini de Oliveira Salles
Ocupação do AutorProfessora-Associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora
Páginas435-450
O APOIO ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS E DE
DISTANCIAMENTO SOCIAL
Raquel Bellini de Oliveira Salles
Professora-Associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Juiz de Fora. Mestre e Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Università di Camerino, Itália. Coorde-
nadora do projeto de extensão “Núcleo de Direitos das Pessoas com Deciência” da
UFJF. Advogada. E-mail: raquel.bellini@ufjf.edu.br.
Houve no mundo tantas pestes, como as guerras. E, contudo, as pestes,
como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.
(Albert Camus, A Peste, 1947)
Sumário: 1. Introdução: a realidade das pessoas com deciência no contexto da pandemia –
2. O sistema de apoios às pessoas com deciência em face da Covid-19: antigos desaos em
novo cenário – 3. Considerações nais: a adversidade como oportunidade – 4. Referências.
1. INTRODUÇÃO: A REALIDADE DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO
CONTEXTO DA PANDEMIA
O presente trabalho propõe-se a levantar ref‌lexões sobre o sistema de apoios às pes-
soas com def‌iciência em tempos de coronavírus e de distanciamento social, partindo de
percepções da realidade brasileira e de constatações baseadas em relatos de pessoas com
def‌iciência, seus familiares, prof‌issionais assistentes e organizações da sociedade civil.1
Por ocasião da pandemia do vírus A – H1N1, há alguns anos, adveio o alerta para
o fato de que
O mundo está diante das primeiras ‘pestes globalizadas’, cuja velocidade de contágio, sem preceden-
tes, é inversamente proporcional à lentidão da política do direito. A aceleração do trânsito de pessoas
e de mercadorias reduz os intervalos entre os fenômenos patológicos de grande extensão em número
de casos graves e de países atingidos, ditospandemias. Assim, tratar apandemiagripal em curso como
um espetáculo pontual é um grande equívoco.2
1. Registra-se especial agradecimento às pessoas e instituições que, com seus relatos, contribuíram para o presente
trabalho em parceria com o projeto de extensão “Núcleo de Direitos das Pessoas com Def‌iciência” da UFJF, entre
elas o Grupo de Apoio a Pais e Prof‌issionais de Pessoas com Autismo – Gappa JF, Instituto Aviva, Instituto Bruno
Vianna, Alae – Associação de Livre Apoio ao Excepcional, Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo
Def‌iciente Sensorial e Associação dos Cegos de Juiz de Fora.
2. DALLARI, Sueli e VENTURA, Deisy, in A era das pandemias e a desigualdade, disponível em: https://www1.folha.
uol.com.br/fsp/opiniao/fz3107200908.htm, acessado em: 09.04.2020. Vale ainda transcrever a seguinte ref‌lexão
das citadas especialistas, que serve também ao momento presente: “(...) A pandemia pode trazer, ainda, a estigma-
tização de grupos de risco ou de estrangeiros, favorecendo a cultura da insegurança, pois o medo é tão contagioso
quanto a doença. Por tudo isso, urge revisar o papel da OMS no sistema internacional e retomar o debate sobre a
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RAQUEL BELLINI DE OLIVEIRA SALLES
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A pandemia do novo coronavírus, porém, vem impondo ao mundo a necessidade
de enfrentamento de desaf‌ios nunca antes imaginados. As particularidades da Covid-19
incitam a medicina e as políticas públicas a lidarem com a signif‌icativa facilidade de
contágio e rapidez da disseminação, a inexistência de vacina ou medicamento curativo,
a evolução de muitos casos para a síndrome respiratória aguda grave, a insuf‌iciência de
aparelhos de ventilação mecânica e de leitos hospitalares de tratamento intensivo e a
alta letalidade entre os mais vulneráveis, sobretudo idosos e pessoas com doenças de
base ou crônicas.
As medidas de precaução e de distanciamento social recomendadas pela ciência
médica e pela Organização Mundial de Saúde3, ratif‌icadas por ações governamentais
amplamente adotadas4, impactaram profundamente na rotina, no trabalho, nas fontes
de renda, na circulação de pessoas e coisas, no mercado e na dinâmica social como um
todo. Para as pessoas com def‌iciência, que já vinham enfrentando dif‌iculdades para a
efetivação do modelo social inclusivo5 preconizado pela Convenção das Nações Unidas
de 20076 e pela Lei Brasileira de Inclusão de 20157, a situação mostra-se ainda mais grave
em face das barreiras sociais, que já impunham às pessoas com def‌iciência certa forma
de “quarentena”, no sentido que af‌irma Boaventura de Sousa Santos:
Têm sido vítimas de outra forma de dominação, além do capitalismo, do colonialismo e do patriarca-
do: o capacitismo. Trata-se da forma como a sociedade os discrimina, não lhes reconhecendo as suas
necessidades especiais, não lhes facilitando acesso à mobilidade e às condições que lhes permitiriam
desfrutar da sociedade como qualquer
outra pessoa. De algum modo, as limitações que a sociedade lhes impõe fazem com que se sintam a
viver em quarentena permanente. Como viverão a nova quarentena, sobretudo quando dependem de
quem tem de violar a quarentena para lhes prestar alguma ajuda? Como já há muito se habituaram a
viver em condições de algum connamento, sentir-se-ão agora mais livres que os «não-decientes» ou
mais iguais a eles? Verão tristemente na nova quarentena alguma justiça social?8
criação de um verdadeiro sistema de vigilância epidemiológica no Brasil, apto a regular a eventual necessidade de
restrições a direitos humanos e a organizar a gestão das pandemias com a maior transparência possível”.
3. Cf. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019, acessado em: 09.04.2020.
4. No Brasil, a Lei n. 13.979, publicada no D.O.U. em 07.02.2020, estabeleceu medidas de distanciamento social para
enfrentamento da emergência de saúde pública, e o Decreto Legislativo n. 6, publicado no D.O.U. em 20.03.2020,
reconheceu, para os f‌ins do art. 65 da Lei Complementar n. 101, de 04.05.2000, a ocorrência do estado de cala-
midade pública.
5. Fazendo uma contraposição com os modelos anteriores, Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida af‌irmam, in
BARBOZA, H. H.; ALMEIDA JUNIOR, V. de A. Reconhecimento, inclusão e autonomia da pessoa com def‌iciência:
novos rumos na proteção dos vulneráveis. In: BARBOZA, H. H.; MENDONÇA, B. L. de; ALMEIDA JUNIOR, V. de
A. (Coords.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Def‌iciência. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2017, p. 17-
23: “O primeiro, se não o mais importante, efeito da adoção do modelo social consiste em promover a inversão da
perspectiva na apreciação da def‌iciência, que deixa de ser uma questão unilateral, do indivíduo, para ser pensada,
desenvolvida e trabalhada como relação bilateral, na qual a sociedade torna-se efetivamente protagonista, com
deveres jurídicos a cumprir. (...) Depreende-se, portanto, que o desaf‌io na tutela integral das pessoas com def‌iciência
reside na inef‌icácia social das normas que decorre em boa medida de sua invisibilidade e não reconhecimento, eis
que desde a década de 1980 já existe legislação específ‌ica, mas a situação pouco avançou na defesa dos direitos
desse grupo vulnerável”.
6. Referida Convenção foi ratif‌icada pelo Brasil em 2008 e entrou em vigor em agosto de 2009 por força do Decreto
nº 6.949 de 25 de agosto de 2009, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm, acessado em: 29.09.2018.
7. Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/
lei/l13146.htm#art127, acessado em: 29.09.2018.
8. SANTOS, Boaventura de Sousa. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020.
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