Direito à saúde e danos extrapatrimoniais: reflexões em tempos de covid-19

AutorBruno Leonardo Câmara Carrá e Lívia Oliveira Lemos
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Universidade de São Paulo com pós-doutorado na Scuola di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha/Mestranda em Relações Privadas e Desenvolvimento na UNI7
Páginas339-358
DIREITO À SAÚDE E DANOS
EXTRAPATRIMONIAIS: REFLEXÕES
EM TEMPOS DE COVID-19
Bruno Leonardo Câmara Carrá
Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo com pós-doutorado na Scuola
di Giurisprudenza da Universidade de Bolonha. Academic visitor na Faculty of Law
da Universidade de Oxford. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em
sentido estrito (mestrado) em Direito na UNI7 – Centro Universitário 7 de Setembro.
Juiz Federal. E-mail: bruno.carra@uni7.edu.br.
Lívia Oliveira Lemos
Mestranda em Relações Privadas e Desenvolvimento na UNI7. Graduada em Direito
pela UNI7. E-mail: livialemosss@hotmail.com.
Sumário: 1. Considerações preliminares: Covid-19, um Act of God – 2. Covid-19 e dano
extrapatrimonial à saúde – 3. Experiência norte-americana: fear cases – 4. A quem e em que
situações responsabilizar? – 5. O problema do nexo causal – 6. Conclusões – 7. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES: COVID-19, UM ACT OF GOD
Com o aparecimento da Covid-191, o mundo vem atravessando uma crise sanitária
sem precedentes recentes. . Na realidade, , como pronunciado por Yuval Harari logo
ao seu início, ela parece ser a maior de nossa geração.2 Não é necessário, no ponto, ser
exaustivo. Os fatos falam por si somente e praticamente todo ser humano vivente no
Planeta teve sua vida afetada pela pandemia, isso se, infaustamente, não a teve, ou de
algum familiar, ou conhecido mais próximo, tolhida pelo coronavírus. Vive-se, com
efeito, tempos excepcionais, em uma quarentena global como há décadas não se via.
É com esse pano de fundo que se realiza o presente estudo, absolutamente preliminar,
dado o contexto mesmo de emergência no qual vem a ser escrito.
Em que pese muito, em termos jurídicos, já tenha se passado desde a primeira edição
deste contributo, suas conclusões continuam sendo ainda muito mais pensamentos que
reclamam amadurecimento constante que realmente certezas já elaboradas. Na medi-
da em que vivemos um quadro de excepcionalidade, a qual naturalmente pôs à prova
as bases normativas dos ordenamentos jurídicos de praticamente todos os países, foi
1. Covid signif‌ica Corona Virus Desease. O número 19 se refere ao fato de que o vírus surgiu no ano de 2019. A doença
também é denominada, popularmente, como Coronavírus. Fonte: https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-
-a-coronaviruses (acesso feito em 08/04/2020).
2. Em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75 (acesso feito em 08/04/2020).
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necessário realizar um amplo e extenuante rápido trabalho de ajuste legislativo, tarefa
que de pronto deve ser reconhecida, foi levada a efeito com muito êxito pelo legislador
brasileiro. Assim, agora com uma base normativa mais estabilizada prossegue-se nas
ponderações anteriormente realizadas sobre eventuais ref‌lexos da pandemia no âmbito
da responsabilidade civil, ou mais precisamente, seus possíveis revérberos como dano
extrapatrimonial por ofensa ao direito à saúde, inclusive, sendo o caso, para conf‌irmar
ou retroceder em relação àquelas primeiras considerações feitas. .
Feito o decote metodológico do problema, o passo seguinte vem a ser o de def‌inir
juridicamente a situação que se vivencia. Vale dizer, qual a natureza jurídica da pandemia.
A emergência decorrente da contaminação em massa pelo Coronavírus de outra coisa
não se pode tratar que de uma catástrofe biológica, mercê de sua propagação incontida
para todos os cantos da Terra, atingindo não somente a integridade física dos indivíduos,
mas também, por conta de seu incontido potencial deletério, o patrimônio das pessoas
e a economia mundial3.
Como catástrofe, a Covid-19 é perfeitamente def‌inível, dentro de nossa tradição
jurídica, como situação de caso fortuito ou de força maior, já que desde o Código Civil
de 1916, assim se deve considerar quando se está diante de “fato necessário, cujos efei-
tos não era possível evitar ou impedir” (art. 1.058). A questão é que, como já ensinava
Clóvis Beviláqua em seus comentários ao Estatuto revogado, embora até possam ser
conceitualmente distintas ambas categorias geram como consequência os mesmos
efeitos práticos pelo que foram reunidos numa mesma def‌inição legal.4 De lá para cá,
toda doutrina nacional repete a lição, tanto que o vigente Código Civil de 2002 veicula
idêntica regra, com idêntica redação inclusive (art. 393).
A situação pela qual se passa, todavia, é tão profunda que a aplicação tout court da
regra padrão poderia levar a resultados mais deletérios que vantajosos para a sociedade.
Note-se que, como pode ser visto dos manuais de Direito Privado, não se tem por aqui
o hábito de se fazer um estudo mais aprofundado do tema, provavelmente porque não
temos grandes catástrofes naturais ou crises sanitárias. É iterativo constatar, por exem-
plo, que o tema é tratado debaixo de uma dinâmica pontual, ou seja, a partir de eventos
que atingem partes bem def‌inidas e raramente sendo enfrentado pelos tribunais. Por
isso mesmo, como referido, a aplicação draconiana da isenção de responsabilidade do
devedor, no âmbito contratual, ou a desconf‌iguração do nexo causal, quando se trate
de responsabilidade aquiliana pelos prejuízos ou danos resultantes de caso fortuito ou
força maior possa se revelar temerária no caso da pandemia da Covid-19.
É o que, imagina-se, também procurou demonstrar José Fernando Simão em artigo
na rede mundial de computadores (internet), cuja transcrição do sugestivo título já serve
como explicação para o que se deseja colocar em evidência: “O contrato nos tempos
da covid-19: Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio.”5 É por isso que se
3. SOUZA, Carlos Eduardo Silva e; PESSOA, Conrado Falcon. Os danos catastróf‌icos e a responsabilidade civil do
Estado. Revista Jurídica Direito & Paz, São Paulo, n. 36, p. 255-270, 1º Semestre, 2017.
4. BEVILÁQUA, Clóvis. Código dos Estados Unidos do Brasil comentado. 10. ed. atual. por Achilles Beviláqua e Isaías
Beviláqua. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955. v. IV. p. 174.
5. Em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covi-
d-19--esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-negocio (acesso feito em 08/04/2020).
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