Capacidade e direitos dos filhos menores

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Páginas219-239
CAPACIDADE E DIREITOS
DOS FILHOS MENORES
Maria Celina Bodin de Moraes
Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora As-
sociada do Departamento de Direito da PUC-Rio. Doutora em Direito Civil. E-mail:
mcbm@puc-rio.br.
L’enfant est une personne.
– Françoise Dolto
Sumário: 1. Introdução. 2. Os direitos da personalidade. 3. O direito de conhecer as próprias origens
genéticas. 4. O direito de conviver com ambos os pais. 5. O direito a ser assistido, criado e educa-
do pelos pais. 6. O direito às próprias escolhas afetivas. 7. O direito de ir à escola. 8. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Com as mudanças trazidas pelo Estatuto das Pessoas com Def‌iciência em 2015,
manteve-se, no Código Civil, apenas “os menores de 16 anos” na condição de pessoas
“absolutamente incapazes”, cuja vontade, portanto, é tida por inexistente e qualquer
ato praticado considerado nulo. A origem do instituto da incapacidade baseia-se, como
se sabe, no conceito de discernimento, isto é, a possibilidade, mais ou menos ampla,
de “entender e querer”, ideia que, todavia, foi abandonada pelo EPD no que se refere às
pessoas maiores de qualquer grau de def‌iciência mental.
O arbítrio radical na determinação da incapacidade dos menores faz com que o
legislador trate pessoas com níveis de discernimento completamente diferentes – como
são, por exemplo, a criança de 4 anos e o adolescente de 14 anos –, de maneira idêntica.
Enquanto o sistema do direito civil dizia respeito unicamente a situações patrimoniais,
essa política ainda poderia ser aceitável porque se trata, neste caso, de proteger o pa-
trimônio de terceiros e da família. Todavia, quando se cuida de situações existenciais,
que se referem exclusivamente à personalidade da criança e do adolescente até os 16
anos, sua vontade não pode mais ser ignorada nem tampouco o exercício de tais direitos
atribuído a outrem.
Daí decorre que capacidade de exercício em matéria existencial não deve ser aferida
da mesma forma como se avalia a capacidade de agir para a prática de atos de natureza
patrimonial.1 E, com efeito, o direito dos menores à vida privada é assegurado não apenas
pela Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, mas também pelo Estatuto da
1. RUSCELLO, Francesco. Potestà genitoria e capacità dei f‌igli minori: dalla soggezione all’autonomia. Esperienze
giuridiche. Vita Notarile Edizioni Giuridiche, 2000, p. 59.
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MARIA CELINA BODIN DE MORAES
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Criança e do Adolescente que garante aos seus destinatários todos os direitos deferidos
à pessoa humana, inclusive a vida privada individual.2
No campo das situações existenciais, portanto, a criança e o adolescente são sujeitos
de direitos que não podem ser negados pelo exercício do poder familiar: o nome, a imagem,
a intimidade, as inclinações e aspirações pessoais, dentre outros. Cabe à autoridade parental
respeitar as disposições que garantem aos menores o direito de brincar, de se divertir, de
escolher o esporte que pretendem praticar, sua liberdade de crença e culto e a sua liberdade
de expressão (ECA, art.16). A sujeição do menor à autoridade parental, se e quando egoísta
ou desarrazoada, no trato dessas questões não patrimoniais, implica violação ao princípio
da dignidade e da solidariedade, prejudicando o desenvolvimento da sua personalidade.3
Reconhece-se aqui uma ambivalência que é própria das relações familiares porque
na conjugação dos deveres de cuidar e educar, ora se cerceia e ora se promove a liberdade.
Assim, se de muitas formas a família limita o menor e o sacrif‌ica em sua pretensão de
liberdade, por outro lado e ao mesmo tempo, a família também o liberta, promovendo,
pelos contatos mais profundos a que dá origem, sua realização pessoal.4
A maior dif‌iculdade está, claramente, na aferição do grau de discernimento do me-
nor. Para avaliar sua maturidade e seu nível de compreensão cumpre ouvi-lo, por meio
de diálogo no qual ele se sinta respeitado e considerado como um interlocutor ativo. A
propósito, o Código Civil italiano, em modif‌icação de 2013, incluiu no art. 315-bis que
o f‌ilho de 12 anos, ou mesmo de idade inferior se tiver discernimento, tem o direito de
ser ouvido em todas as questões que lhe disserem respeito.
Visa-se assim compartilhar um conhecimento consolidado para o incremento do
pensamento jurídico no que tange às relações paterno-f‌iliais, em que às crianças deve
ser atribuído, como titulares de direitos existenciais e em prol da realização de seus
próprios interesses, pelo menos o direito a ser ouvido5 Trata-se, em última análise, do
reconhecimento jurídico da pessoa da criança.
2. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Situações existenciais pertinentes ao corpo, aos dados genéticos e à recusa de trata-
mento médico não podem mais ser atribuídas apenas aos pais, no esquema da substituição
3. RUSCELLO, Francesco. Postestà genitoria, cit., p. 69. No mesmo sentido, AUTORINO, Gabriella. Situazioni
esistenziali dei f‌igli minori e potestà dei genitori, p. 186. In: G. Autorino; P. Stanzione. Diritto civile e situazioni
esistenziali. Torino: Giappichelli, 2007, p. 178.
4. VILLELA, João Baptista. Liberdade e família. Movimento Editorial da Revista da Faculdade de Direito da UFMG, vol.
1. n. 2. Belo Horizonte: Edição da Faculdade de Direito da UFMG, 1980, p. 10.
5. A propósito, embora numerosas experiências já tenham sido feitas, indica-se aqui apenas uma pesquisa demonstrativa
da competência das crianças. Weithorn e Campbell compararam as respostas de participantes com 9, 14, 18 e 21
anos a problemas hipotéticos de tomada de decisão relativos a tratamento médico e psicológico. As crianças de 14
anos não diferiram dos grupos adultos em nenhum dos principais padrões de competência para consentir: evidência
de escolha; compreensão dos fatos; processos de tomada de decisão razoáveis; resultado razoável da escolha. Até
mesmo as crianças de 9 anos mostraram-se tão competentes quanto o adulto médio, de acordo com os padrões de
evidência e razoabilidade de escolha (Michael Freeman. The Best Interests of the Child? Michael Freeman, The
Best Interests of the Child? Is the Best Interests of the Child in the Best Interests of Children? International Journal
of Law, Policy and the Family 11, (1997), 366-367).
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