A marcha da autonomia existencial na legalidade constitucional: os espaços de construção da subjetividade

AutorVitor Almeida
Páginas407-430
A MARCHA DA AUTONOMIA EXISTENCIAL NA
LEGALIDADE CONSTITUCIONAL: OS ESPOS
DE CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Direito da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ). Professor Adjunto de Direito Civil
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ). Advogado
A pessoa é digna, pois é um ser livre.
Béatrice Maurer
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. A trajetória da dignidade humana e da autonomia pri-
vada no direito civil: aproximando os conceitos. 3. As transformações da autonomia privada
na legalidade constitucional. 4. A autodeterminação nas escolhas existenciais: a autonomia
extrapatrimonial entre a liberdade e a solidariedade. 5. Considerações nais. 6. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A célebre tríade contrato-propriedade-família durante longo período não só carac-
terizou a essência do direito civil brasileiro, como demonstrava a inspiração adotada
pelo Código Civil de 1916, calcado no individualismo e patrimonialismo excessivos,
projetando, desse modo, ideais tipicamente liberais. A promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 e a percepção de que as pessoas humanas deveriam
ser o centro das preocupações de uma renovada dogmática do direito civil, carreadas, no
plano doutrinário nacional, pela constitucionalização deste campo, privilegiando, assim,
não mais os sujeitos virtuais, mas as pessoas concretamente consideradas1, possibilitaram
o deslocamento axiológico do ter para o ser, fundamentado, sobretudo, no princípio da
dignidade da pessoa humana, tido como vetor axiológico central e princípio fundante
da ordem normativa brasileira.
A prevalência das situações subjetivas jurídicas existenciais sobre as patrimoniais
determina que se supere a tradicional primazia da proteção conferida pelo ordenamento
às f‌iguras do ter, como o contratante e o proprietário, para tutelar e promover as esferas
mais íntimas do ser, entendido como a manifestação dos atributos essenciais de sua
personalidade, voltados, prioritariamente, à integridade e dignidade da pessoa humana,
1. Cf. TEPEDINO, Gustavo. Do Sujeito de Direito à Pessoa Humana. Temas de Direito Civil, t. II, Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.
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respeitando, nesse passo, não só a liberdade do tráfego jurídico do patrimônio, mas as
decisões pessoais livres e autônomas ligadas à sua existência.
Com a alteração do valor axiológico nuclear, papel antes desempenhado pelo
individualismo e patrimonialismo, mas atualmente protagonizado pela dignidade
humana e solidariedade constitucional, mostra-se desarrazoada a manutenção da
clássica lição civilista atada ao contrato-propriedade-família. A partir desta constata-
ção, a autonomia privada, valor tão caro ao direito civil de índole liberal, não mais é
exclusivamente direcionada à liberdade de troca e disposição do ter, mas sobretudo
alcança a autodeterminação nas questões afetas à integridade e dignidade da pessoa
humana. Em outras palavras, é possível af‌irmar que houve uma alteração qualitativa
da autonomia privada2, de modo a atender também a liberdade voltada aos interesses
e a realização existenciais, ou seja, ao conjunto de atributos indispensáveis ao livre
desenvolvimento da pessoa.
A expansão da autonomia privada a terrenos antes restritos ao paternalismo estatal
ou ao não reconhecimento da autodeterminação individual suscita indagações e debates
relevantes e, carentes, ainda hoje, de maior atenção por parte da doutrina nacional, ainda
resistente em perceber a primazia do ser sobre o ter3. Uma justif‌icativa para tal af‌irmativa
é que ela se encontra ainda arraigada à valores já superados pelo ordenamento e presa a
um Código Civil que, embora promulgado no século XXI, não incorporou, em muitos
aspectos, as inovações dos comandos constitucionais, sobretudo, suas diretrizes funda-
mentais previstas no art. 1º, incisos II e III.
Sob essa perspectiva, o marco teórico do direito civil constitucional4 caracterizado,
entre outros, pelo (i) reconhecimento da centralidade da Constituição no direito privado,
ao invés do Código Civil, caráter hierárquico estendido aos demais ramos do direito;
(ii) a prevalência das situações existenciais em relação às patrimoniais; (iii) reconheci-
mento da historicidade das regras jurídicas; e, (iv) a valorização da função dos institutos
2. Sobre a alteração da autonomia privada, após a chamada constitucionalização do direito civil, remete-se a
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: SOUZA
NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações
práticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 309-320.
3. Dentre as honrosas exceções, cf. DALSENTER, Thamis. A função da cláusula de bons costumes no Direito Civil
e a teoria tríplice da autonomia privada existencial. In: Revista Brasileira de Direito Civil, v. 14, p. 99-125, 2018;
BODIN de MORAES, Maria Celina; CASTRO, Thamis. A autonomia existencial nos atos de disposição do próprio
corpo. In: Pensar (UNIFOR), v. 19, p. 779-818, 2014; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial.
Revista Brasileira de Direito Civil, v. 16, p. 75-104, 2018; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e
dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, passim.
4. Ver, por todos, sobre a doutrina do direito civil-constitucional: PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is do direito civil:
Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed., rev. e ampl., Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. Para uma compreensão mais aprofundada sobre a chamada constitucionalização do direito civil
na experiência e cenário brasileiros, torna-se imprescindível a leitura de BODIN DE MORAES, Maria Celina. A
caminho de um direito civil-constitucional. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.
Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 3-20 e Perspectivas a partir do direito civil constitucional. In: TEPEDINO,
Gustavo. Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. Anais do Congresso
Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro. São Paulo: Atlas, 2007, p. 29-41;
TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas sobre a constitucionalização do direito civil. Temas de Direito
Civil. 4. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2008; e, SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson. Uma agenda
para o direito civil-constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 10, p. 1-20, 2016.
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