A proteção de dados pessoais na legalidade constitucional: estudo de caso sobre o censo do IBGE

AutorGabriel Schulman e Ana Carolina Contin Kosiak
Páginas179-204
A PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NA
LEGALIDADE CONSTITUCIONAL:
ESTUDO DE CASO SOBRE O CENSO DO IBGE
Gabriel Schulman
Doutor em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e Bacha-
rel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito pela
Universidade de Coimbra. Professor da Escola de Direito da Universidade Positivo (UP),
onde leciona a disciplina de proteção de dados, coordena o curso de Pós-Graduação
em Direito e Tecnologia, e é líder do grupo “Pessoa, Tecnologia e Mercado”. Advogado.
Ana Carolina Contin Kosiak
Mestre e Bacharel em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestranda
e Bacharel em Direito pela Universidade Positivo (UP).
Sumário: 1. Introdução. 2. Legalidade constitucional: “premissas metodológicas a caminho do
direito civil constitucional”. 3. O caso concreto: discussão objeto da Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade 6.387. 4. A leitura da proteção de dados e da própria LGPD à luz da Constituição.
5. “O caminho se faz no andar”: aprendizados e considerações nais. 6. Referências.
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra1
O IBGE esclarece alguns princípios fundamentais sobre a adoção da Medida Provisória 954. Essa Me-
dida Provisória atende a pedido do Ministério da Economia, a partir de demanda técnica emergencial
apresentada pelo IBGE. Para atender as recomendações de afastamento social do Ministério da Saúde
e da OMS, o IBGE adiou o Censo Demográco e suspendeu todas as suas pesquisas presenciais no dia
17 de março. Em função disso, para não comprometer a produção de indicadores e estatísticas sobre
a economia, e fornecer um retrato dedigno e atualizado sobre o País, o IBGE, como a maioria dos
institutos de estatística do mundo, terá que migrar suas pesquisas para formas de coleta de dados não
presenciais, adotando, principalmente, a coleta por telefone. Para isso o instituto necessita ter acesso
aos dados (nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou
jurídicas) das operadoras telefônicas de modo a viabilizar a aplicação de suas pesquisas2.
1. MANGUEIRA. História pra ninar gente grande. Samba enredo de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-
de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2019/01/19/mangueira-veja-a-letra-do-samba-enredo-do-carnaval-2019-no-rj.
ghtml. Acesso em: 05 nov. 2020.
2. IBGE. Comunicado sobre adoção da Medida Provisória 954/2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/novo-
portal-destaques/27477-comunicado-sobre-adocao-da-medida-provisoria-954-2020.html. Acesso em: 05 nov.
2020.
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GABRIEL SCHULMAN E ANA CAROLINA CONTIN KOSIAK
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1 INTRODUÇÃO
Em 17 de abril de 2020 foi editada a Medida Provisória 954/2020, que dispõe sobre o
compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações para o Instituto Brasileiro
de Geograf‌ia e Estatística – IBGE. Por força da MP, as empresas de telefonia deveriam
“disponibilizar à Fundação IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números
de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas” (art. 2º).
A medida provisória gerou absoluta controvérsia, e contou com dura oposição de
diversas entidades. Tamanha a repercussão do tema, prontamente foram distribuídas
cinco ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), promovidas por grupos de diferentes
posições políticas3 para discutir a (falta de) higidez constitucional da MP.
Neste contexto, elege-se como objeto de análise o acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal Federal por meio da ADI 63874, que reconheceu a inconstitucional material da
Medida Provisória 954/2020. Dentre os vários temas que af‌loram do acórdão, o recorte
proposto recai sobre a leitura à luz da Constituição, e o reconhecimento da proteção de
dados como direito fundamental. Como percurso, inicia-se com um resgate da legalidade,
ao que se segue a discussão do caso concreto julgado pelo STF e, por f‌im, extraem-se
aprendizados úteis.
Sob o prisma metodológico, a escolha do caso do Censo do IBGE se justif‌ica por
variados fundamentos. Além da repercussão social e jurídica, consiste no primeiro caso
em que o STF reconheceu expressamente a autodeterminação informativa como direito
fundamental, bem como a primeira oportunidade em que tratou da Lei Geral de Proteção
de Dados Pessoais (LGPD).
Salienta-se igualmente que na solução do caso, a despeito da menção expressa aos
princípios da LGPD, o Supremo utilizou-se da leitura constitucional. Como se exporá
ao longo na seção seguinte, a legalidade constitucional rejeita qualquer possibilidade
de interpretação que não seja à luz da Constituição. De todo modo, o exame do acórdão
auxilia na compreensão da sistemática interpretativa e afasta alguns argumentos frágeis
como a visão de que o texto constitucional não possuísse força normativa, fosse exces-
sivamente abstrato ou tivesse aplicação subsidiária5.
É inevitável também a comparação do caso do censo brasileiro com o julgamento pela
Corte Alemã, que considerou inconstitucional a Lei do Censo de 19826. A despeito das
diferenças de contexto, de sistemas jurídicos, os casos apresentam interessantes pontos
de contato, eis que, além de versarem sobre o uso de dados sobre censo, permitiram aos
3. As ações diretas de inconstitucionalidade, que questionam o repasse das informações de empresas telefônicas ao
IBGE, estabelecido pela MP 954/2020 foram propostas pela Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 6387) e pelos
partidos políticos PSDB (ADI 6388), PSB (ADI 6389), PSOL (ADI 6390), e PCdoB (ADI 6393). Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441728 Considerando que as ações diretas
de inconstitucionalidade igualmente impugnam a validade constitucional da Medida Provisória n. 954/2020,
determinou-se a tramitação conjunta dos feitos, e com a reprodução da decisão da ADI 6387 nos demais casos.
4. STF. ADI n. 6387. Rel. Min. Rosa Weber. Tribunal pleno. Dje: 11.11.2020.
5. FLÓREZ-VALDÉS, Joaquín Arce y. El derecho civil constitucional. Madrid (Espanha): Civitas, 1991. p. 89-94.
6. MENDES, Laura Schertel. Habeas Data e autodeterminação informativa: dois lados da mesma moeda. Revista
Direitos Fundamentais & Justiça, a. 12, n. 39, p. 185-216, jul./dez. 2018.
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