O 'novo' perfil do direito à identidade pessoal: o direito à diversidade

AutorMaria Cristina De Cicco
Páginas241-257
O “NOVO” PERFIL DO DIREITO À IDENTIDADE
PESSOAL: O DIREITO À DIVERSIDADE
Maria Cristina De Cicco
Sumário: 1. Introdução. 2. Diversidade e diferença: um problema de qualicação. 3. Acenos
à diversidade cultural na jurisprudência italiana. 4. Diversidade como expressão do direito à
identidade pessoal. 5. O caso da bodyart e da body modication. 6. E da identidade de gênero.
7. O outro lado da medalha: aceno à tolerância. 8. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Um dos maiores desaf‌ios do século XXI para os juristas, especialmente os civilistas,
diz respeito ao alcance da igualdade na atual sociedade globalizada, caracterizada pela
multietnia e pelo multiculturalismo. A primeira manifestação do princípio da igualdade,
consistente na proibição de tratamentos discriminatórios, é essencialmente formal. No
entanto, a consciência do fato que as pessoas não gozam de idênticas condições sociais,
econômicas, para não dizer psicológicas, levou à previsão da necessidade de tratar as
pessoas, quando desiguais, em conformidade com as próprias desigualdades, emergindo,
assim, o perf‌il substancial do princípio de igualdade.
Neste contexto, o presente trabalho parte da convicção de que, no âmbito do prin-
cípio da igualdade, o principal problema concerna, hoje, ao direito à diversidade1.
O objetivo inicial da pesquisa era verif‌icar a possibilidade de conf‌igurar o direito à
diversidade2 como um direito autônomo, lembrando sempre que tratando-se de ques-
tão ligada às pessoas, não se deve ter a pretensão de encontrar “a” solução, mas sim,
soluções ligadas às especif‌icidades do caso concreto. Por esse motivo, mais do que dar
uma resposta, procurou-se evidenciar os múltiplos aspectos que a questão apresenta. O
estudo do direito por problemas acompanha o posicionamento da pessoa no ápice do
1. Não se pretende abordar, neste trabalho, a delicada e complexa questão dos direitos dos imigrantes e da condição
jurídica dos estrangeiros, mas colocar em evidência, sem pretensões de exaurir o problema, que a presença de
uma pluralidade de culturas no mesmo território apresenta problemas complexos relacionados à regulação ético-
jurídica, na medida em que traz à tona as diferenças e as diversidades seja no plano das concepções culturais,
f‌ilosóf‌icas, religiosas, seja no plano dos costumes e tradições, colocando em crise o princípio da igualdade formal
e substancial entendido de forma absoluta. Sovre a relação entre direito e pluralismo, v. BRIGHENTI, A. Realmente
distinti, ma inseparabili: il diritto e l’altro. Sociol. dir., 2003, 2, p. 37 ss.
2. Adverte que o direito diversidade, o direito à diferença não nasceram “sobre as cinzas da igualdade formal, mas
usando-a de qualquer forma como seu pedestal!”, RODOTÀ, S. Repertorio di f‌ine secolo, Bari, 1999, p. 112.
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MARIA CRISTINA DE CICCO
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sistema jurídico, de acordo com a lição de Pietro Perlingieri3, que coloca em evidência a
necessidade de uma teoria da interpretação orientada para a realização dos valores fun-
damentais do ordenamento, em procedimento voltado não ao mero respeito da lei, mas à
realização da justiça do caso concreto. É nessa direção que devem ser entendidas tanto a
necessidade de releitura dos institutos civilísticos à luz da Constituição, quanto a direta
aplicação das normas constitucionais nas relações interprivadas. Uma reconstrução do
direito civil como setor não separado do direito constitucional, mas como parte integrante
de um ordenamento unitário que requer a concretização dos princípios constitucionais
também nas relações entre particulares4.
Nessa ótica, mesmo sem pretender encontrar “A” resposta, pelo menos até o pre-
sente momento a conclusão tem sido negativa, no sentido de que o direito à diversidade
não se conf‌igura como um direito autônomo, podendo ser entendido, contudo, como
expressão do direito à identidade pessoal. Isso porque a diversidade é, de toda sorte, um
valor e como tal deve ser analisada.
Lembrando que o Homem, como entidade que representa universalmente a to-
talidade do gênero humano, não existe5, quando se leva em consideração o conjunto
dos direitos fundamentais de sujeitos portadores de elementos de diversidade em um
ordenamento, os aspectos a serem considerados são essencialmente dois: i) o relativo
à identidade cultural vista como expressão de uma individualidade caracterizada por
valores que podem ser também não compartilhados ou mesmo conf‌litantes com os do
ordenamento considerado; ii) e um segundo, relativo ao possível modo de se entender
os direitos fundamentais6.
2. DIVERSIDADE E DIFERENÇA: UM PROBLEMA DE QUALIFICAÇÃO
Ao abordar o tema, a dif‌iculdade maior foi distinguir entre “diversidade” e “dife-
rença” posto que em muitos textos as duas palavras são usadas quase como sinônimo e
por vezes o que um autor considera diversidade, para outros é diferença.
3. Das obras de P. Perlingieri, v., em língua portuguesa, Perf‌is do Direito Civil. Uma introdução ao direito civil
constitucional. Trad. Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro, Renovar, 1997; Normas constitucionais nas relações
privadas, Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 6 e 7, 1998/1999, p. 63 ss.; O Direito Civil na Legalidade
Constitucional, edição brasileira organizada por Maria Cristina De Cicco, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
4. Sobre a metodologia do direito civil-constitucional, além de Pietro Perlingieri, Il diritto civile nella legalità costituzionale
secondo il sistema italo-comunitario delle fonti, Napoli, ESI, 2006, v., entre todos, principalmente, E. R. Grau A Constituição
Brasileira e as Normas Programáticas, in Revista de Direito Constitucional e Ciências Política, 1985, n. 4, p. 41 s.; M. C. De
Cicco, Teoria da interpretação e normas de direito civil, Revista brasileira de f‌ilosof‌ia, ano 59, v. 235, julho-dezembro,
2010, p. 231 ss.; G. T., Premissas metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil, in Id., Temas de Direito Civil,
Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 1 ss.; Id, A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro, in
Id., Temas de Direito Civil, Rio de janeiro, Renovar, 2004, p. 23 ss.; M/ C. Bodin de Moraes, Danos à pessoa humana
uma leitura civil-constitucional dos danos morais, Rio de Janeiro, Renovar, 2003; Id, A Caminho de um Direito Civil
Constitucional, Revista de Direito Civil, 1993, v. 65, p. 21 ss.; Id, Ampliando os direitos da personalidade, in José Ribas
Vieira (a cura di), 20 anos da Constituição cidadã: efetivação ou impasse institucional?, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p.
371 ss.; L. E. Fachin, Questões de Direito Civil Brasileiro Contemporâneo, Rio de Janeiro, Renovar, 2008.
5. Nesse sentido, H. Arendt, La vita nella mente. Trad. di G. Zanetti, Bologna 1987, p. 99, para quem a pluralidade é
a lei da terra posto que “non l’Uomo, ma uomini abitano questo pianeta”.
6. Para uma visão dos direitos fundamentais como base de uma nova antropologia humana v. S. Rodotà, L’età dei diritti
al crepuscolo?, em Italia civile. Atti del convegno dedicato al centenario di Norberto Bobbio, Torino, 15 ottobre
2009, passim.
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