Relações privadas e a aplicabilidade dos direitos fundamentais: uma análise sob a perspectiva do princípio do contraditório

AutorMarcos Ehrhardt Jr. e Ewerton Gabriel Protázio de Oliveira
Páginas293-313
RELAÇÕES PRIVADAS E A APLICABILIDADE
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS:
UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Marcos Ehrhardt Jr.
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de
Direito Civil na Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e no Centro Universitário
CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC).
Ewerton Gabriel Protázio de Oliveira
Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Pós-
-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Sumário: 1. Notas introdutórias. 2. Como aplicar os direitos fundamentais às relações parti-
culares? 2.1 Breves considerações históricas: a dimensão objetiva dos direitos fundamentais.
2.2 As teorias de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas. 2.3 A evolução
do tratamento da matéria no âmbito do STF. 3. O princípio do contraditório nas relações
privadas. 3.1 O contraditório como direito fundamental. 3.2 A visão contemporânea da
noção de contraditório no âmbito do processo. 4. A concepção de processos particulares e a
necessidade de se resguardar o devido processo legal e seus corolários. 4.1 Exemplos clássicos
de processos particulares. 4.2 O caso das punições no âmbito das redes sociais, plataformas
digitais e aplicativos. 4.2.1 A discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil
da Internet. 5. Considerações nais. 6. Referências.
1. NOTAS INTRODUTÓRIAS
Pensar que o campo privado das relações jurídicas seja um espaço intocável pelos
princípios constitucionais é pensamento que, hodiernamente, não mais se compactua
com a complexa sociedade que se estabelece diariamente. É preciso entender como, a
partir da história, o homem passou a enxergar os direitos fundamentais em outra dimen-
são que não a subjetiva, e daí a exigi-la nas mais diversas relações jurídicas existentes.
Dessa forma, princípios eminentemente processuais são promovidos a uma cate-
goria até então restrita do direito constitucional, estimulando o debate se essa ascensão
poderia vincular, inclusive, as relações jurídicas eminentemente privadas. Com base
nessas premissas, este trabalho pretende abordar, através de método indutivo de pes-
quisa bibliográf‌ica, como seria possível a aplicação dos direitos fundamentais ao âmbito
privado, em especial sob a perspectiva do princípio do contraditório.
Para tanto, o artigo se dividirá em três partes: a primeira tratará da possibilidade e
das teorias de aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas; a segunda, com
EBOOK DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL.indb 293EBOOK DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL.indb 293 21/04/2021 15:27:4721/04/2021 15:27:47
MARCOS EHRHARDT JR. E EWERTON GABRIEL PROTÁZIO DE OLIVEIRA
294
um viés processual, abordará o princípio do contraditório e a viabilidade de sua inserção
no campo privado, adotando a ideia de processos particulares; e a terceira apresentará
ref‌lexões acerca de possíveis exemplos práticos dessa incidência.
2. COMO APLICAR OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ÀS RELAÇÕES
PARTICULARES?
2.1 Breves considerações históricas: a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais
Sem pretensão de esgotar os detalhes históricos essenciais à compreensão do tema,
este tópico f‌icará adstrito às mudanças de perspectivas ocorridas da passagem do Estado
Liberal para o Estado Social.
Com origens que remontam às revoluções liberais do f‌im do século XVIII, o Estado
Liberal considerou os direitos fundamentais como uma esfera intangível da autonomia e
da liberdade individual em face do poder do Estado, o que correspondia à ideia de Estado
Mínimo, “que conf‌iava na ‘mão invisível” do mercado’ para promover o bem comum”1.
A teoria liberal que assegurava essa forma de Estado limitava o alcance dos direitos
fundamentais às relações públicas. É dizer, as que o tinham em um de seus polos. Em
verdade, os supracitados direitos tinham como f‌im primordial limitar o exercício do
poder estatal, considerado o principal adversário da liberdade humana, notadamente
pela feição nada democrática que adotou em período antecedente.
Com essa limitação, era necessária a utilização da técnica da separação dos poderes,
de modo a constranger o arbítrio e incentivar a moderação na ação estatal2. Bem ref‌letiu
Paulo Lôbo ao escrever que:
As constituições liberais nada regularam sobre as relações privadas, cumprindo sua função de delimitação
do Estado mínimo. Ao Estado coube apenas estabelecer as regras do jogo das liberdades privadas, no
plano infraconstitucional, de sujeitos de direitos formalmente iguais, abstraídos de suas desigualdades
reais e sem qualquer espaço para a justiça social.3
Havia um abstencionismo por parte do Estado no que toca ao direito privado,
permitindo-se que os indivíduos, a partir de uma igualdade formal, perseguissem seus
interesses privados e celebrassem negócios jurídicos. Com o processo de democratiza-
ção, desdobrado das transformações sociais e econômicas relacionadas ao processo de
industrialização, de busca pelo poder político por classes não operárias, do surgimento
de grupos sociais (partidos, sindicatos, por exemplo), da exação do sufrágio universal, a
ideia de liberalismo estatal não se mostrava suf‌iciente para resolver os novos problemas
sociais, ligados às áreas econômica, social, assistencial etc.
1. SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 80.
2. Este modelo de Estado era chamado por Carl Schmitt de “Estado Burguês de Direito”. SCHMITT, Carl. Teoría de
La Constitución. Presentación de Francisco Ayala. Primera edición em “Alianza Universidad Textos” 1982. Cuarta
reimpresión em “Alianza Universidad Textos”. Madrid. España. 2003.
3. LÔBO, Paulo. Direito Civil: v. I: Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 61.
EBOOK DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL.indb 294EBOOK DIREITO CIVIL NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL.indb 294 21/04/2021 15:27:4721/04/2021 15:27:47

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT