A cláusula geral de bons costumes no direito civil brasileiro

AutorThamis Dalsenter
Páginas431-452
A CLÁUSULA GERAL DE BONS COSTUMES
NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
Thamis Dalsenter
Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Professora de
Direito Civil do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro – PUC-Rio.
Sumário: 1. Introdução. 2. Teoria tríplice da autonomia existencial ou extrapatrimonial. 3. A
cláusula geral de bons costumes como instrumento para limitação e garantia da autonomia
privada existencial. 4. As funções da cláusula geral de bons costumes: função geradora de
deveres, função limitadora de direitos, função de cânone interpretativo. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Somos livres para escolher os rumos das nossas vidas? Há limites para a liberdade de
existir? Pode o Estado determinar os caminhos para o projeto de livre desenvolvimento
pessoal? Esses questionamentos, de vocação claramente f‌ilosóf‌ica, ganharam espaço na
teoria civilista contemporânea e ocupam atualmente o centro de um intenso debate sobre
quais são os limites que podem ser legitimamente impostos à liberdade extrapatrimonial
em um ambiente de legalidade democrática.
No contexto jurídico brasileiro, a promulgação da Constituição Federal de 1988
estabeleceu uma nova agenda crítica para o civilista contemporâneo, especialmente no
que diz respeito ao regime das liberdades. Enquanto a autonomia privada patrimonial
passou a ser compreendida e limitada pelas lentes de uma ordem pluralista que f‌ixou a
solidariedade social e democrática1 como um dos objetivos da República, os contornos
da autonomia privada existencial passaram a ser def‌inidos pelo princípio da dignidade
da pessoa humana, assentado como um dos fundamentos da República, com viés fran-
camente coexistencial, voltado para a proteção da pessoa no seu ambiente social, nas
constantes experiências intersubjetivas e nos processos de construção de identidades
pessoais e grupais.
Tendo isso em vista, as tutelas oferecidas pelo ordenamento jurídico deverão ser
qualitativamente diferentes, a se tratar de liberdade que incide sobre o patrimônio ou
de liberdade sobre atos de natureza existencial. Se a autonomia patrimonial encontra
limites internos impostos pela função social e pela boa-fé, a autonomia existencial não
suporta limitações dessa ordem, não estando protegida em razão de sua aptidão para a
realização de interesses alheios ao seu titular.
1. A denominação solidariedade democrática é utilizada por Stefano Rodotà para descrever a ampliação da noção de
solidariedade social. RODOTÀ, Stefano. Solidarietà: un’utopia necessaria. Roma-Bari: Laterza, 2014, p. 4-21.
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Esse raciocínio não deve induzir o intérprete à equivocada conclusão de que a
autonomia existencial estaria imune à incidência de limites, já que na legalidade cons-
titucional não há espaço para direitos absolutos na ordem privada. Mas de muito pouco
adianta esse argumento senão houver um esforço hermenêutico para indicar em quais
hipóteses a autonomia existencial poderá receber os limites excepcionais que o orde-
namento jurídico tem a oferecer e quais são os institutos jurídicos podem realizar essa
tarefa constritora. Nesse sentido, ainda que o grande problema que envolve o tema se
apresente diante de comandos legais ou decisões judiciais que visam à proteção da pessoa
contra ela mesma, há também um importante campo de conf‌litos quando a autonomia
existencial coloca em risco o exercício da liberdade de outra pessoa. Por isso, o presente
artigo tem como objetivos investigar o alcance da autonomia existencial no contexto
de pluralismo democrático, ou seja, da multiplicidade de concepções sobre a vida dig-
na e compreender os fundamentos legítimos para restrição da autonomia privada nas
relações existenciais. Feito isso, será possível analisar a partir dessas premissas como a
cláusula geral de bons costumes pode desempenhar nas situações jurídicas existenciais
papel democrático semelhante ao desempenhado pela função social e pela boa-fé nas
situações jurídicas patrimoniais.
2. TEORIA TRÍPLICE DA AUTONOMIA EXISTENCIAL OU EXTRAPATRIMONIAL
Em breves linhas, é possível af‌irmar que a autonomia existencial é espécie do gê-
nero autonomia privada e se conf‌igura como instrumento da liberdade individual para
realização das potencialidades da pessoa humana e de seus interesses não patrimoniais,
incidindo nas situações jurídicas subjetivas situadas na esfera extrapatrimonial, cujo refe-
rencial objetivo é o próprio titular no espaço de livre desenvolvimento da personalidade.
Não há linhas que inscrevam def‌initivamente, a priori, situações jurídicas subje-
tivas somente no campo existencial ou no campo patrimonial2, já que há situações que
envolvem a realização de interesses tanto patrimoniais quanto extrapatrimoniais3/4. Mas
é preciso ressaltar que, enquanto as situações patrimoniais devem ser funcionalizadas à
realização de interesses extrapatrimoniais e sociais, as situações existenciais têm como
função direta a realização de interesses pessoais do seu titular. Decorre daí a diferença
qualitativa da tutela da autonomia privada em ambos os casos: enquanto a autonomia
nas situações patrimoniais é protegida se realizar interesses socialmente relevantes nem
sempre coincidentes com os do titular, a autonomia nas situações existenciais, ou nas
mistas com função predominantemente existencial, deve ser protegida como instrumento
de concretização da função pessoal e dos valores da dignidade humana.
Ainda que a função da situação existencial seja pessoal, atrelada à realização de
interesses do próprio titular, é possível verif‌icar que os efeitos decorrentes do ato de au-
tonomia poderão gerar consequências em esferas jurídicas distintas, cujas repercussões
2. Sobre o tema, v. KONDER, Carlos Nelson e TEIXEIRA, Carolina Brochado. Situações jurídicas dúplices:
controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo e
FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, v. III, p. 8.
3. MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 34.
4. PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2088, p. 669.
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