A justiça dos tributos

AutorHeleno Taveira Torres
Ocupação do AutorProfessor Titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Advogado
Páginas217-253
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A JUSTIÇA DOS TRIBUTOS
Heleno Taveira Torres1
1. A FUNÇÃO JUSTIÇA NO SISTEMA CONSTITUCIONAL
TRIBUTÁRIO
A noção de justiça tributária variou segundo as épocas e as formas
de tributação. No passado o patrimônio individual e a produção agríco-
la foram os índices principais de aferição de capacidade econômica e,
como justo, na Idade Média, predominava o destino das receitas justi-
cado pelo “bem comum”; mais tarde, passou-se para os fatos signos
presuntivos de riqueza e para os fatos com demonstração de capacidade
contributiva, tendo-se a destinação da arrecadação dos tributos dirigida
para atender à despesa pública e aos custos dos direitos fundamentais.
Como se percebe, a justiça tributária é substantiva, por ser materialmente
qualicada segundo certos critérios.
Adolf Wagner inicia seu capítulo sobre justiça tributária com uma
desaadora indagação: “che cosa è il giusto?”.2 É certo que a aplicação
justa dos tributos, individualmente, não se pode bastar com conjecturas
de cunho losóco, à guisa de uma utópica justiça distributiva, em uma
correlação entre meios e ns, sempre aleatórios e variáveis no tempo e
nas concepções teóricas. Essa constatação, porém, não deve desanimar o
jurista na busca dos critérios de justiça do sistema tributário e dos tribu-
tos, isoladamente considerados.
1 Professor Titular de Direit o Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Advogado.
2
WaGner
, Adolfo. La scienza delle nanze. Trad. Maggior ino Ferraris; Giovan ni
Bistol. Torino: Unione Tipogra co, 1891, p. 884. Para um exame d a relação ent re
segurança ju rídica e justiça tributária, veja-se a inda:
Gutmann
, Daniel. Du droit à la
philosophie de l’impôt. Archives de philosophie du droit. Par is: Dalloz, 2002. p. 7-14.
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justiça fiscal
misabel abreu machado derzi / joão paulo fanucchi de almeida melo (coordenadores)
call e put
A “segurança”, per se, ao lado da “justiça” e da “liberdade”, formam
os valores clássicos do direito de qualquer sociedade livre, justa e igua-
litária. Para Gustav Radbruch, ainda que numa concepção ontológica, a
segurança seria um subprincípio da justiça,3 porque, dada a diculdade
para se xar o “justo”, ao menos deve-se procurar xar aquilo que é
“jurídico”, como equivalente a “seguro”. Em face dessa necessária com-
plementação, diz, então, Radbruch: “Ainsi le bien commun, la justice, la
sécurité se révèlent comme les buts suprêmes du droit”.4 Ainda que esta
seja uma assertiva coerente sob a égide de um modelo metafísico, de
valores absolutos, na atualidade, ainda que esses valores tenham uma es-
cala de preferibilidade diferenciada, todos os valores5 (pluralismo axio-
lógico) informam a produção legislativa ou perpassam a hermenêutica
nos múltiplos atos de “aplicação do Direito”.6
Essa segurança jurídica substantiva do Sistema Constitucional Tri-
butário, como não poderia deixar de ser, abrange a concretização dos
critérios e valores de justiça,7 como é o caso daqueles de determinação
da capacidade contributiva, da generalidade, da não discriminação e da
vedação de privilégios. Como observa Michel Bouvier: “La légitimité
du pouvoir scal est aujourd’hui principalement liée à la sécurité scale
qu’il peut assurer aux contribuables”.8 Em matéria tributária, deveras,
3 Eduardo Garcia May nez fazia preponderar o valor justiça, cf.:
Garcia
maynez
,
Eduardo. Just ice and legal security. Philosophy and Phenomenological Research.
vol. 9, n. 3, p. 496-503, New York: Wiley Higher, 1949.
4
radbruch
, Gustav. Le but du droit. In: L’Institut Internat ional de Philosophie du
Droit et de Sociologie Juridique. Le but du d roit: bien commun, justice, sé curité.
Paris: Sirey, 1938. t. 3. p. 48. Outros, como Coing, pr eferem ver na “paz” o m
precípuo do direito, o que evoca nece ssariamente a “seg urança”, por esta condição
necessária da quela. In verbis: “La paz y el derecho son coetáneos y simult áneos; el
derecho aporta la p az, y la paz es el presupuesto del desar rollo del derecho” (
coinG
,
Helmut. Funda mentos de losoa del derech o. Trad. Juan Ma nuel Maur i. Barcelo-
na: Ediciones Ariel, 1961. p. 34).
5 Seguindo o subjetivis mo de Müller-Freienfels, cf.:
Stern
, Alfred. Filosof ía de los va-
lores. 2. ed. Buenos Aires: Fabril, 1960. p. 134.
6
elSt
, Raymon Vander. Justice et sécurité ju ridique. Justice et argumentation. Ess ais
à la mémoire de chaïm Perelma n, Bruxelles: Bruylant, 1986. p. 21.
7 Como bem observou Hegel, o sistema dos i mpostos vive o paradoxo de que ele deve
ser absolutamente justo, ao m esmo tempo em que cada qual deve contribu ir na pro-
porção da gra ndeza da sua posse, o que nem sempre pode ser ca lculado com justeza
e precisão.
heGel
, George Wilhelm Friedrich. O sistema da vida ét ica. Trad. Arthur
Morão. Lisboa: Edições 70, 1991. p. 81.
8 BOUVIER, Michel. La question de l’impôt ideal. Archives de philosophie du
droit. Par is: Dalloz, 2002, p. 20; cf. ainda:
berlir i
, Luigi Vittorio. El impuesto
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não basta a legalidade e a isonomia, é preciso adicionar requisitos de
aferição da justiça individual e sistêmica, não importa quão perfeito seja
o sistema tributário.
Dentre outros requisitos, os tributos devem ser distribuídos unifor-
memente entre os indivíduos (princípios da pessoalidade, generalidade
e universalidade), e, “pour être juste, l’impôt doit être uniforme”,9 nas
palavras de Gaston Jèze, a existência de privilégios parece ser algo injus-
ticável (princípio da não discriminação tributária), e a tributação mais
gravosa conforme a demonstração de riqueza um lugar-comum (princí-
pios de proporcionalidade, capacidade contributiva, progressividade e
vedação ao efeito de consco). Como arma Tipke: “Um tributo injus-
to não se justica em um Estado de Direito, mesmo se quanto ao mais
preenche otimizadamente todas as máximas tributárias”.10 Daí falar-se
em uma Ciência da Justiça Tributária, como modelo de análise sistêmi-
ca com ns de justiça.
Cabe-nos examinar os pressupostos materiais do âmbito normativo
e o conteúdo essencial dos princípios e garantias da função justiça do
Sistema Constitucional Tributário, para os ns de sua concretização, em
conformidade com o positivismo jurídico metódico-axiológico.
2. JUSTIÇA TRIBUTÁRIA DA LEGITIMIDADE DO TRIBUTO
PELA DESTINAÇÃO: A TEORIA DA CAUSA IMPOSITIONIS
E A DESTINAÇÃO AO BEM COMUM
Não se adere aqui ao coro da doutrina que só admite o surgimento das
limitações ao poder de tributar e proteção das pessoas e seus bens con-
tra a ação impositiva, com a chegada do Estado de Direito. É certo que
em algumas fases prevalecia o poder de império e a discricionariedade,
justo. Trad. Fernando Vicente-Arche Dom ingo. Madrid: Instituto de Est udios Fis-
cales, 1986.
9 JÈZE, Gaston. Cou rs de nances publiques. Paris: LGDJ, 1935. p. 80.
10 E prosseguem: “A máxima da jus tiça tributária est á vinculada ao postula do de Estado
de Direito da iguald ade scal e inclui i mposição uniforme segundo a cap acidade con-
tributiva econômica . Justiça sca l em sentido jurídico é a execução sistematicamente
consequente da igu aldade tributária e dos pri ncípios, que concretizam o princípio da
igualdade” (
tiPke
, Klaus;
lanG
, Joachim. Direito tributário. Trad. Luiz Dória Fur-
quim. Porto Alegr e: Fabris , 2008. vol. 1. p. 394). Para Luigi Einaudi, por ém, “la igual-
dad es axiomática . En una sociedad de hombres iguales , quién se atreveria a mantener
la desigualdad del impue sto?” (
einaudi
, Luigi. Mitos y paradojas de la just icia tribu-
taria. Trad. Gabriel Solé Villalonga. Barcelona: A riel, 1959. p. 234).
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