Justiça fiscal, estabilidade financeira e as recentes alterações do sistema fiscal português

AutorJosé Casalta Nabais
Ocupação do AutorDoutor na especialidade de Ciências Jurídico-Políticas
Páginas301-341
13
JUSTIÇA FISCAL, ESTABILIDADE
FINANCEIRA E AS RECENTES
ALTERAÇÕES DO SISTEMA FISCAL
PORTUGUÊS
José Casalta Nabais1
Como será fácil de intuir, a partir do título que ostenta este escrito,
vamos procurar reectir sobre a realização da ideia de justiça scal no
actual quadro de estabilidade nanceira do Estado, percorrendo algumas
das medidas mais importantes de reforma scal adoptadas recentemente
em Portugal. O que implica que comecemos por dar nota, naturalmen-
te muito rápida, do signicado que a justiça scal teve no contexto do
desenvolvimento do Estado social que culminou nos anos noventa do
século passado, nos interroguemos sobre a manutenção dessa ideia no
século XXI no contexto das exigências da estabilidade nanceira que
vem sendo imposta pela União Europeia aos seus Estados membros, com
particular intensidade aos países mais afectados pelas dívidas soberanas
e sujeitos a programas de ajustamento, como Portugal, e, bem assim,
referir algumas das mais importantes alterações do sistema scal por-
tuguês recentemente adoptadas no sentido de fazer face ao mencionado
quadro nanceiro. Vejamos então, pela ordem que vimos de referir, cada
um destes núcleos problemáticos que a justiça scal apresenta nos tem-
pos que nos é dado viver.
1 Doutor na especialida de de Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Ciências Jur ídi-
co-Económicas (D ireito Fiscal). Professor associado com agregação na Faculdade
de Direito da Universida de de Coimbra.
Justiça Fiscal.indb 301 16/10/2015 16:52:27
302
justiça fiscal
misabel abreu machado derzi / joão paulo fanucchi de almeida melo (coordenadores)
call e put
I. A IDEIA DE JUSTIÇA FISCAL
Como é sobejamente reconhecido, a justiça scal prende-se com a
repartição dos encargos necessários ao suporte nanceiro da organização
e funcionamento da comunidade estadual, de modo a apresentar-se como
justa para os membros que integram esta comunidade. A justiça scal
procura, assim, responder à questão de saber como repartir os encargos
com o nanciamento do Estado, ou seja, mais especicamente, os en-
cargos de natureza tributária que os cidadãos têm de satisfazer, os quais,
num Estado scal, como são praticamente todos os actuais, se recondu-
zem fundamentalmente à gura dos impostos. Pois os demais tributos,
em que sobressaem como guras dominantes as taxas e as demais con-
tribuições a favor de entidades públicas, continuam a constituir receitas
com uma importância menor, apesar do peso crescente que estes outros
tributos vêm tendo nos últimos tempos, em virtude sobretudo das di-
culdades que enfrenta a obtenção de mais receitas através de impostos2.
Neste domínio vericamos que a repartição dos impostos, que con-
substanciou uma ideia de justiça scal no século XX, correspondente ao
êxito marcadamente civilizacional do Estado social, que atingiu o seu
cume nos nais dos anos setenta desse século, enfrenta hoje grandes di-
culdades e levanta os maiores problemas. O que podemos ilustrar com
a uma outra ideia, quase sempre associada à realização da justiça scal,
a ideia de reforma scal, uma realidade hoje em dia presente na gene-
ralidade dos Estados na qual encontramos a preocupação praticamente
permanente de realização de uma maior igualdade entre os contribuintes
enquanto suportes nanceiros do Estado. Preocupação tradicionalmente
apresentada com o sentido de que cada membro da comunidade estadual
contribua para esta de acordo com a sua capacidade contributiva ou ca-
pacidade de pagar, de modo a que os contribuintes com a mesma capaci-
dade contributiva paguem o mesmo imposto (igualdade horizontal) e os
contribuintes com capacidade contributiva diferente paguem impostos
diferentes na medida dessa diferença (igualdade vertical)3.
2 De facto, de um lado, atent o o carácter tão abrangente das sit uações já sujeitas à
incidência dos impostos e, de out ro lado, ao elevado nível das taxas ou alíquotas
que os mesmos atingem, a busca de mais receitas têm-se vira do para o recurso
a outros tributos que não passam, muitas vezes, de impostos disfarçados, de
impostos que não ousam d izer o seu verdadeiro nome.
3 Sobre a repartição dos impostos, v., por todos José Joaquim Teixeira Ribeiro, Li-
ções de Finanças Públicas, 5ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 260 e ss. e
«A justiça na tr ibutação», Boletim de Ciências Económicas, XXX, 1987, p. 157 e ss.
Justiça Fiscal.indb 302 16/10/2015 16:52:27
justiça fiscal, estabilidade financeira e as recentes alterações do sistema fiscal português
josé casalta nabais
303
Olhando, pois, para as perspectivas de realização da ideia de justiça
scal, a partir da maneira como se vem encarando a reforma dos actuais
sistemas scais, vericamos que a referida ideia não apresenta hoje os
mesmos contornos nem desperta os mesmos entusiasmos do passado,
mais especicamente os que estiveram associados à concretização do
Estado social4 no terceiro quartel do século passado, que vieram concre-
tizar o que podemos designar por Estado scal social que teve o êxito a
que já nos referimos5.
Naturalmente que o sistema scal é simultaneamente resultado e fac-
tor que contribui para a realização do correspondente modelo de Estado.
O que, obviamente, não poderia deixar de se vericar também no que
respeita ao Estado social, contribuindo para a intervenção económica e
social em que esta forma de Estado se concretiza. Foi, de resto, no qua-
dro do Estado social que se aceitou mais claramente que o sistema de
impostos pudesse ser colocado ao serviço da mencionada intervenção.
O que conduziu a uma tributação mais diversicada e intensa de modo a
obter as receitas acrescidas que o Estado intervencionista exigia, tendo,
por conseguinte, aumentado signicativamente o nível da carga scal.
Assim o sistema scal, quer no seu conjunto, quer sobretudo atra-
vés dos impostos sobre o rendimento, foi convocado para ser suporte
de uma empenhada redistribuição do rendimento. O que signicou a
defesa da evolução dos sistemas scais no sentido de deslocar a carga
scal dos impostos indirectos, sobretudo dos impostos sobre o consu-
mo, para os impostos sobre o rendimento e, dentro destes, para além
da rejeição mais ou menos generalizada do princípio do benefício pelo
princípio da capacidade contributiva ou capacidade de pagar6, a defesa
de impostos de natureza pessoal caracterizados sobretudo por serem
impostos comum taxa ou alíquota progressiva. Por isso, nas reformas
scais levadas a cabo nesse período, pretendeu-se sempre que o siste-
ma scal assentasse cada vez mais em impostos directos e impostos
de natureza pessoal, diminuindo, em contrapartida, progressivamente
o tradicional peso dos impostos indirectos.
4 No que constitui pa radigma sobretudo a (então designad a) Europa Ocidental.
5 V. o nosso estudo «A reforma scal num Estado scal suportável», Por um Estado Fis-
cal Suportável – Es tudos de Direito Fiscal, vol. II, Almedi na, Coimbra, 2008, p. 67 e ss.
6 Um princípio que assim cou reserva do para os t ributos com estrutu ra bilateral
ou de natureza comutat iva, as taxas e as dem ais contribuições nanceiras a favor
das entidades públicas. V, a tal respeito, José Joaquim Teixeira Ribeiro, Lições de
Finanças Públic as, cit., p. e ss. e Sérgio Vasques,
Justiça Fiscal.indb 303 16/10/2015 16:52:27

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT