A Terceirização e o Setor Elétrico Brasileiro

AutorCarlos Zangrando e Gustavo De Marchi
Ocupação do AutorAdvogado, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)/Sócio e coordenador do Departamento de Direito de Energia do escritório Décio Freire & Associados
Páginas238-300
238 A TERCEIRIZAÇÃO E O SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO
11.1 DA TERCEIRIZAÇÃO
Deinições são perigosas. Por si só, uma “deinição” nunca preveniu nem
colocou im a uma disputa ou debate. Isso porque, tal qual na Física, no
campo das Ciências Humanas também existe uma Teoria da Incerteza,1 mais
facilmente veriicável, já que não precisamos chegar ao mundo subatômico
para enxergá-la.
Quando tentamos deinir alguma coisa, sempre a limitamos, e no mais
das vezes, também a alteramos de algum modo, distorcendo um pouco o seu
sentido real, em conformidade com a percepção do próprio agente. Por essa
razão, Georges Braque,2 pintor francês, avisava que para realmente deinir
alguma coisa, devemos substituir a deinição pela própria coisa deinida.
Daí a necessidade de iniciar este tópico avisando o leitor, pois ele versa
justamente sobre os graves problemas causados pela tentativa de “deinir”
um negócio jurídico complexo, e também de “determinar” seus limites e
efeitos. É o que aconteceu com a chamada “terceirização”.
Terceirização ou terciarização é um neologismo criado para explicar
um negócio jurídico complexo, no qual uma empresa contrata os serviços
especializados de outra, que os prestará, normalmente, por intermédio de
seus empregados ou sócios.
A “terceirização” consiste, assim, na transferência, por uma empresa,
da execução de certos serviços, originariamente por ela realizados, à outra
empresa, que os prestará por intermédio de seus empregados ou sócios,
os quais poderão ou não trabalhar diretamente nos estabelecimentos da
empresa tomadora dos serviços, formando o que alguns doutrinadores
1 A Teoria da Incerteza foi exposta em 1927 pelo ísico alemão Werner Karl Heisen-
berg (1901-1976), um dos fundadores da Teoria Quântica. Basicamente, signiica
dizer que existe uma incerteza inerente em toda medição ísica. Heisenberg desco-
briu que no deslocamento das partículas, nem sempre estas seguiam a rotina ísica
da sua trajetória “normal”, Descobriu também que as partículas que integram a
estrutura atômica ora se comportam como partículas, ora como ondas, e que é
impossível observar ao mesmo tempo a posição dos elétrons, porque o simples
ato de observá-los os altera. Heisenberg ganhou o prêmio Nobel de Física de 1932.
A teoria da incerteza de Heisenberg foi comprovada pelo ísico norte-americano
Murray Gellmann (prêmio Nobel de Física, 1969).
2To de ϔine a thing is to substitute the deϔinition for the thing itself”. GEORGES
BRAQUE (1882-1963) pintor, escultor e designer francês. The Times, edição de
12 de maio de 1962.
CARLOS ZANGRADO E GUSTAVO DE MARCHI 239
denominam relação contratual triangular, ou contrato triangular.3 Noutras
paragens, essa prática é conhecida como “outsourcing”.
Essa estratégia administrativa, bastante característica da Terceira
Revolução Industrial, teve regulamentação jurídica original no Brasil ao
inal da década de 1960, com a edição do Dec.-Lei nº 200/1967, que no §
7º de seu artigo 10º, estabeleceu as seguintes diretrizes:
Art. 10...omissis...
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coorde-
nação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento
desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará
desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo,
sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que
exista, na área, iniciativa privada suicientemente desenvolvida e capaci-
tada a desempenhar os encargos de execução.
O ideal, portanto, era centrar a administração da coisa pública naquilo
que realmente interessa, legando todo o resto a terceiros, prestadores de
serviços. Posteriormente, esse mesmo ideal foi ampliado com a Lei nº
6.019/1974, que regulamentou o trabalho temporário, seguida da Lei nº
7.102/1983, sobre serviços de vigilância; da Lei nº 8.987/1995, sobre o
regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos; da Lei
nº 9.472/1997, sobre a Organização dos Serviços de Telecomunicações; e
ainda mais recentemente, da Lei nº 11.442/2007, que dispôs sobre o trans-
porte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração.
Alguns especialistas denominam esse processo de “especialização
lexível”, ou seja, o surgimento de empresas com acentuado grau de espe-
cialização em determinado tipo de produção, mas capazes de se adaptar
às mudanças necessárias, de acordo com o requisitado por seus clientes.4
É o que acontece, por exemplo, quando uma empresa contrata outra,
especializada no serviço de alimentação, com o objetivo de fornecer refei-
ções aos empregados da primeira. No mesmo sentido, quando contrata
serviço de limpeza e conservação, de manutenção predial, de vigilância e
segurança, transporte de empregados etc.
3
PRUNES, José Luiz Ferreira. Contratos triangulares de trabalho. 1ª ed. Curitiba:
Juruá, 1993, p. 25.
4
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2. ed. São Paulo: RT,
2006. p. 424.
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Várias são as vantagens administrativas, econômicas e operacionais da
terceirização : a empresa passa a ter maior disponibilidade para concen-
trar sua atenção no processo produtivo e na sua melhoria contínua, por
isso a utilização de serviços ditos “terceirizados” se tornou lugar comum
nas operações empresariais.
Essa situação trouxe uma série de repercussões, que veremos mais
adiante. Agora devemos deinir a natureza da “terceirização”.
11.2 AUSÊNCIA DE NORMATIZAÇÃO ESTATAL
E CONSEQUENTE “NORMATIZAÇÃO”
JURISPRUDENCIAL
No Brasil, a despeito de vários projetos apresentados nas últimas décadas,
não existe lei especíica regulamentando a contratação da prestação de
serviços. Algumas regras gerais podem ser retiradas do Código Civil, mas
não servem para a solução das questões prementes que se apresentam.
O vácuo normativo, somado a muitas experiências malfadadas e outras
situações factuais, acabou criando várias questões, as quais só obtiveram
resposta no pronunciamento do Poder Judiciário.
Com efeito, nas décadas de 1980 e 1990 se observaram inúmeras expe-
riências desastrosas, em que empresas de “fachada” eram criadas para
“terceirizar” atividades absolutamente indissociáveis daquela objeto da
empresa “contratante”. Em outras situações, as empresas “contratadas”
não tinham capacidade inanceira de arcar com suas obrigações e, assim
que rescindiam um contrato de prestação de serviços, “desapareciam” no
meio da noite, deixando seus empregados à míngua dos mais comezinhos
direitos trabalhistas.
Tudo isso – e algo mais – levou o Tribunal Superior do Trabalho, no ano
de 1986, a consolidar pela primeira vez sua jurisprudência sobre o tema,
editando a Súmula TST nº 256, assim redigida:
“Súmula n. 256. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE.
Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos
nas Leis n.s 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contra-
tação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo
empregatício diretamente com o tomador dos serviços.”
Passado o tempo, e em vista de algumas questões legais especíicas,
o posicionamento inicial foi revisto em 1993, levando à edição da Súmula
TST nº 331, assim atualmente redigida:

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