Alienação de bem locado e cláusula de vigência (ou de respeito):origens, vicissitudes e releitura com base nos princípios da boa-fée da função social da pro priedade

AutorMarcos Alcino de Azevedo Torres e Vitor Gabriel de Moura Gonçalves
Páginas93-119
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ALIENAÇÃO DE BEM LOCADO
E CLÁUSULA DE VIGÊNCIA (OU DE RESPEITO):
ORIGENS, VICISSITUDES E RELEITURA
COM BASE NOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ
E DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Marcos Alcino de Azevedo Torres
Mestre e Doutor em Direito Civil pela UERJ. Prof. Adjunto do Departamento de Direito
Civil da UERJ. Professor da graduação e da pós-gradução da UERJ. Desembargador no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Vitor Gabriel de Moura Gonçalves
Mestre em Direito de Empresa e Atividades Econômicas pela UERJ. Advogado.
Sumário: 1. Introdução. 2. Notícia histórica do princípio “venda rompe locação”. 3. Tratamento da
questão nos principais sistemas codicados. 4. O estado atual da arte no direito brasileiro. 4.1 Visão
geral da questão. 4.2 O sentido da expressão “alienação”. 4.3 Da locação para ns comerciais. 4.4
Natureza jurídica da cláusula de vigência da locação na hipótese de alienação. 4.5 Oposição do
locatário à denúncia do adquirente. 4.6 Registro do título aquisitivo como requisito para a denún-
cia. 4.7 Averbação do contrato de locação. 4.8 Prazo para denúncia da locação. 4.9 Prazo para
desocupação. 4.10 Aspectos registrais. 5. Releitura do tema e conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Tendo sido agraciados com o honroso convite dos organizadores para participar
de uma obra em homenagem ao advogado, desembargador e após sua aposentadoria no
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, novamente advogado Sylvio Capanema de Souza,
professor ilustre de uma geração de juristas notáveis, conferencista de renome e exemplo
de atuação moral e prof‌issional, que nos deixou nesse ano de 2020, após brava luta contra
a Covid-19, pandemia que assolou e ainda assola o mundo desde o ano de 2020, trazendo
incertezas e inseguranças a todos nós, provocando uma mudança estrutural na vida em
sociedade e nas pessoas em particular, criando um ambiente de medo e pavor, em especial
agora com a chamada segunda onda de contaminação (f‌inal de 2020 e início de 2021).
Apenas para registro, no Brasil de março de 2020 até janeiro de 2021 teriam sido conta-
minadas cerca de 8.413.105 pessoas e levadas a óbito cerca de 209.868 pessoas conforme
noticiam os órgãos de imprensa.
O tema objeto deste ensaio ainda não tinha despertado atenção especial dos autores
deste texto considerando que tem lugar comum na tradição de nosso direito civil pelo me-
MARCOS ALCINO DE AZEVEDO TORRES E VITOR GABRIEL DE MOURA GONÇALVES
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nos desde o código civil de 1916 a aplicação do princípio “venda rompe a locação” (emptio
tollit locatum)1 até que instigados pelos coordenadores desta obra, empreendeu-se pesquisa
investigativa visando apontar aos leitores qual teria sido a inspiração de nosso sistema para
adotar referido princípio, em especial porque alguns dos principais sistemas também de
inspiração romano-germânica como o nosso adotaram solução diversa da que adotamos.
Pretende-se então neste texto analisar a questão relativa a subsistência ou não da
locação na hipótese de alienação de imóvel que é objeto de contrato de locação em vigor
em seus diversos aspectos a começar pela origem histórica do princípio, a verif‌icação da
fonte de inspiração do art. 1.197 do CC/16 que cuidou do assunto de modo específ‌ico,
o exame do pensamento dos autores a respeito tema bem como julgados que analisaram
sua aplicação.
Registre-se que concordamos com Pontes de Miranda quando af‌irma que a aplicação
do princípio de que a venda rompe a locação decorre do absolutismo do direito de proprie-
dade vigente no direito romano, considerando que em tese, cada proprietário aluga para
seu tempo e que “cada dômino tinha (e exercia) o seu direito e as suas pretensões, como
se, a respeito daquela coisa, só ele, no mundo, fosse interessado”2, o que reforça a ideia,
nos dias atuais, que devemos confrontar a aplicação do princípio com as modif‌icações
ocorridas no direito de propriedade e das obrigações por força do princípio da função
social e da boa-fé.
2. NOTÍCIA HISTÓRICA DO PRINCÍPIO “VENDA ROMPE LOCAÇÃO”
Embora se reconheça a inf‌luência do direito romano sobre o direito das nações,3
talvez por ter sido, como af‌irma Marcelo Caetanos, “a mais profunda das colonizações”
que “persistiu por oito séculos” fazendo de bisonhas tribos primitivas gente “integrada à
sua maneira na grande civilização”4 que espalhou na Europa atingindo a Portugal e por
consequência da colonização, inf‌luenciou também na formação de nosso ordenamento,
não se pode ignorar que o direito dos colonizadores vai se amoldando gradativamente às
peculiaridades do povo e da terra colonizada.5
Por consequência tem-se que reconhecer a inf‌luência gerada pelo direito romano no
direito português que vigeu por aqui ao tempo das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e
Filipinas, até que surgisse regras jurídicas próprias e como era natural, sob a inf‌luência
do país colonizador.
No direito romano a questão relativa aos impactos da venda do imóvel locado na
vigência do contrato de locação gerou solução diferentes conforme a época. Quando se
admitia o rompimento da locação, por ser o adquirente do bem pessoa estranha ao contrato
f‌irmado pelo alienante, concedia-se ao locatário o direito de buscar perdas e danos perante
1. Neste texto os autores adotaram tanto a expressão arrendamento quanto locação considerando que entre nós, em prin-
cípio não há diferença nesta modalidade contratual, salvo pela regulação diversa decorrente da natureza do bem objeto
do contrato: móveis, imóveis, urbanos, rústicos.
2. MIRANDA. Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, 2. ed. Editor Borsoi, 1962, t. XL, p. 218.
3. IHERING, Rudolf Von. O Espírito do Direito Romano, Alba Editora, vol. I, RJ, 1943 (Trad. Rafael Benaion), p. 14-15.
4. CAETANO, Marcelo. As Sesmarias no Direito Luso-Brasileiro. Estudos de Direito Brasileiro e Português, Ed. RT, SP, 1980,
p. 10-11.
5. Interessante registro histórico sobre o Direito Português e sua inf‌luência na formação do Direito Civil Brasileiro, traz
Moreira Alves no artigo: “A Contribuição do Antigo Direito Português no Código Civil Brasileiro, Estudos de Direito
Brasileiro e Português, SP: Ed. RT, 1980, p. 29 e ss.

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