Locação e a questão urbano-ambiental

AutorRicardo Pereira Lira
Páginas325-346
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LOCAÇÃO E A QUESTÃO URBANO-AMBIENTAL
Ricardo Pereira Lira
Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor
Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Ex-Diretor da Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Presidente Cientíco
da Academia Brasileira de Direito Civil – ABDC.
Sumário: 1. Introdução: a questão urbano-ambiental. 2. Ainda a questão urbano-ambiental. 3. Direito
urbanístico. 4. O direito ambiental. 5. A funcionalização dos institutos e instituições. 6. A função
social da propriedade. 7. A função social da posse. 8. O Estatuto da Cidade. 9. Da regularização
fundiária. 10. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO: A QUESTÃO URBANO-AMBIENTAL
A análise dos aspectos primordiais da questão urbano-ambiental impõe algumas
ref‌lexões sobre a histórica ocupação irregular e iníqua do espaço urbano, enfocando os
problemas de sempre – velhos, revelhos e novos – e abordando as tentativas de soluções,
sob a perspectiva dos Direitos Reais.
Antes de fazê-lo, gostaríamos de deixar clara a distinção da estrutura mental do ser
humano da Cidade, de um lado, e do ser humano rural do outro lado.
É do conhecimento de todos que os agregados populacionais urbanos, em nosso
País, embora sem elevar-se no mesmo gradiente que se verif‌icava há alguns anos atrás,
ainda cresce signif‌icativamente, apresentando marcada densidade, caracterizados pela
concentração em espaços muitas vezes limitados.
Temos hoje, no Brasil, uma população total de cerca de 180 milhões de habitantes,
sendo que mais de 80% vive nos centros urbanos.
De todos conhecidas são as experiências realizadas na Universidade de Wisconsin,
por John Emlen e seus alunos, com camundongos. Mantiveram-se inúmeros deles em
determinado espaço, com a emigração impedida e abundante fornecimento de alimentos.
À medida que a população aumentava, diminuía evidentemente o espaço possível
para cada camundongo nos nichos disponíveis, de forma que rapidamente as colônias se
tornaram superpovoadas.
Consequentemente, a caça, as lutas e o canibalismo aumentaram drasticamente,
deixando as fêmeas de cuidar de seus ninhos e f‌ilhotes
Quando isso aconteceu, a taxa de mortalidade entre os f‌ilhotes alcançou 100%, embora
a taxa de nascimento permanecesse alta. Um incremento sensível na taxa de mortalidade,
como decorrências das lutas e do canibalismo, manteve o equilíbrio da população (in “Bio-
logia”, Parte II, texto organizado pelo “Biological Sciences Curriculum Study”, impresso
no Brasil em 1967, Edart São Paulo Livraria Editora Ltda, p. 328-329).
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A inf‌luência adversa do fenômeno da metropolização, ou da megalopolização, sobre
a vida mental dos indivíduos, foi, magistralmente, estudada por GEORG SIMMEL, em
“The Metropolis and Mental Life”, publicado pela primeira vez em 1902.
Respiguem-se algumas constatações do eminente teórico da sociologia formal:
“Com cada atravessar de rua, com o ritmo e a multiplicidade da vida econômica, ocupacional e social, a cidade
faz um contraste profundo com a vida de cidade pequena e a vida rural no que se refere aos fundamentos
sensoriais da vida psíquica.
A metrópole extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de consciência
diferente do que a vida rural extrai. Nesta, o ritmo de vida e do conjunto sensorial de imagens ui mais lentamente,
de modo mais habitual e mais uniforme. É precisamente nesta conexão que o caráter sosticado da vida psíquica
metropolitana se torna compreensível – enquanto oposição à vida da pequena cidade, que descansa mais sobre
relacionamentos profundamente sentidos e emocionais” (apud “O Fenômeno Urbano”, ed. Zahar, 1979, p. 12)
Prossegue Simmel:
“Assim o tipo metropolitano de homem – que naturalmente existe em mil variantes individuais – desenvolve
um órgão que o protege das correntes e discrepâncias ameaçadoras de sua ambientação externa, as quais, do
contrário, o desenraizariam. Ele reage com a cabeça, ao invés de reagir com o coração”.
(...)
“A metrópole sempre foi a sede da economia monetária. Nela, a multiplicidade e concentração da troca
econômica dão uma importância aos meios de troca que a fragilidade do comércio rural não teria permitido.”
(...)
“A economia monetária e o domínio do intelecto estão intrinsecamente vinculados”.
(...)
“O dinheiro se refere ao que é comum a tudo: ele (o homem urbano) pergunta pelo valor de troca, reduz toda
qualidade e individualidade à questão: quanto?”
(...)
“....trabalha-se com o homem como um número, como um elemento que é em si mesmo indiferente. Apenas
a realização objetiva, mensurável, é de interesse”;
(...)
“Os relacionamentos e afazeres do homem metropolitano típico são habitualmente tão variados e complexos,
que, sem a mais estrita pontualidade nos compromissos e serviços, toda a estrutura se romperia e cairia num
caos inextricável”;
(...)
“...a técnica da vida metropolitana é inimaginável sem a mais pontual integração de todas as atividades e
relações mútuas em um calendário estável e impessoal”;
(...)
“Os mesmos fatores que assim redundaram na exatidão e precisão minuciosa da forma da vida redundaram
também em uma estrutura da mais alta impessoalidade, por outro lado promoveram uma subjetividade
altamente pessoal”;
(...)
“É um fato decisivo que a vida da cidade transformou a luta entre os homens pelo lucro, que aqui não é con-
ferido pela natureza, mas pelos outros homens”. Há uma “brevidade e escassez dos contatos inter-humanos
conferidos ao homem metropolitano, em comparação com o intercâmbio social na pequena cidade”.
A tenuidade das relações intersubjetivas na grande metrópole é perceptível a uma
primeira inspeção.
Como anotava LOUIS WIRTH, no seu “Urbanismo como Modo de Vida”, in “O
Fenômeno Urbano”, ed. Zahar, 1979, p. 96, “os traços característicos de modo da vida

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