Aplicabilidade das Normas Constitucionais

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas161-225
Capítulo 6
Aplicabilidade das Normas Constitucionais
6.1. Introdução
A reconstrução neoconstitucionalista do direito e a dogmática pós-posi-
tivista trouxeram mudanças paradigmáticas para a teoria da eficácia das nor-
mas constitucionais, seja pela capacidade científica de atribuir efetividade
aos princípios jurídicos, até então considerados invólucros vazios de conteú-
do normativo, seja pela superação do positivismo, calcado na aplicação me-
cânica do direito.
Com efeito, a cada dia que passa novas fórmulas hermenêuticas são in-
corporadas à teoria da eficácia constitucional com o objetivo de reaproximar
o direito da ética, bem como de garantir a força normativa da Constituição.
É nesse diapasão que a teoria pós-positivista da eficácia das normas constitu-
cionais vem desenvolvendo constructos exegéticos avançados baseados na
força jurígena das decisões judiciais, que asseguram a aplicabilidade das nor-
mas constitucionais insculpidas sob a forma de princípios jurídicos, sem vio-
lar a separação de poderes.1
É por isso que uma das finalidades do presente capítulo é exatamente
examinar a construção teórica de uma nova forma de pensar a eficácia da
Constituição, especialmente voltada para a plena efetividade das normas
constitucionais garantidoras de direitos fundamentais, independentemente
de serem classificadas como regras ou princípios, normas programáticas ou
normas de aplicação, normas de eficácia limitada, normas de eficácia contida
ou normas de eficácia plena.
O que importa aqui é garantir a força normativa da Constituição, ainda
que se reconheça que tal efetividade, em determinadas hipóteses, fique res-
1 Em consequência, o neoconstitucionalismo pós-positivista deslocou para o epicentro
da hodierna teoria da eficácia das normas constitucionais a normatividade de regras e prin-
cípios, garantindo-lhes igual possibilidade de aplicação direta, sem a obrigatoriedade de
intervenção legislativa no caso dos princípios constitucionais. Não cabe mais aqui, portan-
to, aquela vetusta interpretação positivista de que os princípios constitucionais não são
normas jurídicas, mas, tão somente comandos axiológicos, que vinculam apenas a ativida-
de legiferante do Poder Constituinte Derivado Reformador e Decorrente, sem aptidão
para gerar direito subjetivo para o cidadão comum.
trita ao seu conteúdo jurídico mínimo, ou seja, ao seu núcleo essencial. Para
tanto, a teoria da eficácia das normas constitucionais não tem outro caminho
epistemológico a trilhar senão o de superar o legalismo estrito da escola po-
sitivista, cuja dinâmica exegética não reconhece o princípio constitucional
como verdadeira norma jurídica, exatamente porque tal tipo de norma não
se presta ao “raciocínio de subsunção silogística”.2
Assim sendo, pode-se afirmar que a teoria da eficácia constitucional con-
temporânea – neste afã de garantir plena efetividade aos princípios constitu-
cionais sem dependência do legislador ordinário superveniente – necessita
de modelos avançados como, por exemplo, a teorização do núcleo essencial,
uma construção teórica mais sofisticada, que busca garantir a efetividade do
conteúdo jurídico mínimo das normas constitucionais, sem o qual se torna-
riam invólucros vazios de conteúdo.
Nessa mesma linha de pensamento mais sofisticado, a aplicabilidade das
normas constitucionais não depende apenas do seu texto escrito, legislado in
abstracto, mas, também, é função dos elementos fáticos que incidem sobre
o caso decidendo (facticidade), bem como da argumentação jurídica trazida
por juízes, tribunais e operadores do direito na solução desse caso concreto.
Isto significa dizer que a aplicabilidade de uma determinada norma constitu-
cional em caso concreto específico poderá ser objeto de um processo de pon-
deração de valores envolvendo outras normas de mesma dignidade constitu-
cional.
Trata-se do conflito aparente de normas constitucionais em tensão, cuja
solução perpassa pela dogmática pós-positivista, que faz uso científico de
técnicas já bastante festejadas, e.g., as obras de Ronald Dworkin3 e Robert
Alexy.4 De fato, a partir destes trabalhos paradigmáticos, foi possível traçar
a diferença qualitativa entre regras e princípios, eixo hermenêutico central
sobre o qual gira a força normativa da Constituição e, na sua esteira, a teoria
da aplicabilidade das normas constitucionais, uma vez que a Constituição é
composta tanto de regras quanto de princípios jurídicos.
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2 O texto aberto de um princípio constitucional – que apenas projeta um valor axioló-
gico a ser defendido – não indica a hipótese de incidência e suas consequências jurídicas,
vale dizer, não indica os meios ou as condutas necessárias para a consecução desse valor
axiológico positivado.
3 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press,
1998. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1999. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
4 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson
Schild Silva. São Paulo: Landy Livraria Editora e Distribuidora, 2001. Teoria de los dere-
chos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997.
O Direito Constitucional hodierno (neoconstitucionalismo) caracteriza-
se exatamente pela aptidão científica da aplicação direta de qualquer que
seja o tipo da norma constitucional: regra de texto fechado ou princípio de
texto aberto; norma de eficácia plena ou norma de eficácia limitada, normas
de aplicação ou normas programáticas (instituidoras de programas, metas e
fins a serem atingidos no futuro).
Eis aqui o momento culminante do ataque geral ao positivismo (general
attack on positivism) feito por Dworkin e Alexy: a Constituição é um siste-
ma aberto de regras e princípios, ambos capazes de gerar diretamente, sem
intermediação, direitos subjetivos para o cidadão comum.
Em consequência disso tudo, as teorizações do núcleo essencial e das
técnicas pós-positivistas da ponderação de valores passam a permear a teoria
da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais do tempo pre-
sente.5
Enfim, é este o espectro temático do presente capítulo: seu grande desi-
derato é evidenciar que a teoria tradicional da aplicabilidade das normas
constitucionais ainda continua perfeitamente válida no campo científico,
mas, já não é mais capaz de lidar com os problemas constitucionais da pós-
modernidade.
Ao contrário, é preciso expandir as fronteiras exegéticas da teoria da efi-
cácia das normas constitucionais com espeque na dogmática do núcleo es-
sencial e da ponderação de valores. Não há outro caminho a trilhar.
O estudioso da eficácia das normas constitucionais deve ser capaz de
captar a essência dessa nova teoria, calcada na busca da efetividade ou eficá-
cia social do núcleo essencial, bem como de um domínio normativo eficacial
reservado aos princípios que se harmonizam (concordância prática) ou aos
princípios que vencem por apresentarem maior peso relativo no caso concre-
to (postulado da tríade subprincipial da proporcionalidade).6 Com tal tipo
de intelecção em mente, fica mais fácil compreender as razões pelas quais o
neoconstitucionalismo deve servir de base para a nova teoria da aplicabilida-
de das normas constitucionais.
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5 Aqui é importante destacar, desde logo, que a teorização do núcleo essencial desen-
volve uma estrutura eficacial dual: a eficácia positiva e a eficácia negativa do núcleo essen-
cial das normas constitucionais. Da mesma forma, com relação à ponderação de valores, os
princípios da concordância prática e da proporcionalidade serão examinados detalhada-
mente de modo a projetarem, cada um deles, uma diferente modalidade de eficácia cons-
titucional.
6 A dificuldade de chegar-se à plena efetividade de toda e qualquer norma constitucio-
nal (regra ou princípio; de eficácia plena ou limitada) não minimiza a necessidade de se
buscar a normatividade possível, vale dizer a normatividade do seu núcleo essencial e da
sua área de ponderação.

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