Dignidade da Pessoa Humana

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas297-337
Capítulo 9
Dignidade da Pessoa Humana
9.1. Construção Histórica
A análise da construção histórica da dignidade humana se impõe como
necessário, pois existe uma distinção entre dignidade (a dignitas romana ou
expressões gregas) como valor, honra e apreço e a expressão dignidade da
pessoa humana como inerente à própria condição humana. Aquela é condi-
cional, transitória, inigualitária e contingente; esta é universal e incondicio-
nal. A dignidade como valor, honra e apreço se refere a uma postura pessoal
objetivamente apreciada pela sociedade; já a dignidade referida a condição
humana possui caráter polissêmico e aberto encontrando-se em estado per-
manente de mutação e desenvolvimento ao longo do tempo e do espaço que
está em constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.1
Daí a importância da distinção, pois ambas andam de mãos dadas nos dias
atuais: ora a expressão dignidade pode ser utilizada como qualidade, apreço
ou status social; ora pode ser entendida como ideia de igual dignidade ine-
rente a todo e qualquer ser humano, especialmente, incorporada nos diplo-
mas jurídico-constitucionais do segundo pós-guerra.
Na Roma antiga, a expressão dignitas estava relacionada ao status social
do indivíduo na sociedade, tais como honra, respeito, deferência e conside-
ração social até mesmo pela função pública que o sujeito exercia na comuni-
dade. Era uma espécie de status privilegiado particular que o indivíduo os-
tentava no seio da sua comunidade.
De acordo com Ingo Sarlet, “no pensamento filosófico e político da an-
tiguidade clássica, verificava-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana
dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de
reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se
em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a
existência pessoas mais dignas ou menos dignas. Por outro lado, já no pensa-
mento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que, por ser inerente
1 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a
exclusão social. In: Revista interesse público. Belo Horizonte. n. 4. 1999, p. 24.
ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no sentido de que todos os
seres humanos são dotados da mesma dignidade, noção esta que se encontra,
por sua vez, intimamente ligada à noção de liberdade pessoal de cada indiví-
duo (o homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino), bem
como a ideia de que todos os seres humanos, no que diz com a sua natureza,
são iguais em dignidade. Com efeito, de acordo com o jurisconsulto político
e filósofo romano Marco Túlio Cícero, é a natureza quem descreve que o ho-
mem deve levar em conta os interesses de seus semelhantes, pelo simples
fato de também serem homens, razão pela qual todos estão sujeitos às mes-
mas leis naturais, de acordo com as quais é proibido que uns prejudiquem
aos outros, passagem na qual (como, de resto, encontrada em outros autores
da época) se percebe a vinculação da noção de dignidade com a pretensão de
respeito e consideração a que faz jus todo ser humano. Assim, especialmente
em relação a Roma – notadamente a partir das formulações de Cícero, que
desenvolveu um compreensão da dignidade desvinculada do cargo ou posi-
ção social – é possível reconhecer a coexistência de um sentido moral (seja
no que diz às virtudes pessoais do mérito, integridade, lealdade, entre ou-
tras, seja na acepção estóica referida) e o sociopolítico de dignidade (aqui no
sentido da posição social e política ocupada pelo indivíduo).”2
Dessa maneira, é possível afirmar que os primórdios da dignidade da
pessoa humana encontram-se na antiguidade clássica e o seu sentido e alcan-
ce estava relacionado à posição que cada indivíduo ocupava na sociedade.
Como dito acima, a palavra dignidade provém do latim dignus que repre-
senta aquela pessoa que merece estima e honra, ou seja, aquela pessoa que é
importante em um grupo social.
No período medieval, a dignidade da pessoa humana passou a entrela-
çar-se aos valores inerentes à filosofia cristã. Melhor dizendo: a ideia de dig-
nidade passa a ficar vinculada a cada individuo, lastreada no pensamento
cristão em que o homem é criação de Deus sendo salvo de sua natureza ori-
ginária por Ele e possuindo livre arbítrio para a tomada de suas decisões. Se-
verino Boécio (480-524) é o divisor de águas de dois tempos: a antiguidade
e o medievo. Boécio é, pois, o precursor da definição filosófica de pessoa
(humana), embora seu desenvolvimento pleno tenha se dado na metade do
século XIII. O seu contributo foi situar a pessoa humana no horizonte da ra-
cionalidade a partir de sua condição de singularidade. A partir de Boécio, a
noção de pessoa como substância individual e racional elevou o ser humano
a uma nova esfera de dignidade e responsabilidade, implicando em nova
perspectiva de ser e estar no mundo.
298 Guilherme Sandoval Góes Cleyson de Moraes Mello
2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria dos Ad-
vogados; 2011, p. 34-36.
De acordo com Savian Filho3 e Ricardo Antonio Rodrigues4, “Boécio ela-
bora no capítulo III, do texto Contra Eutychen et Nestorium a definição de
Persona que se tornará clássica no pensamento medieval e moderno. Já pre-
sente no contexto das controvérsias teológicas dos primeiros séculos, em
oposição com natura (physis) e essentia (ousia), persona torno-se palavra
central também para a antropologia filosófica e teológica. Para um breve his-
tórico dos principais passos da evolução do conceito convém considerar que
há sempre controvérsias em torno dessa palavra, mas que passou por seu sig-
nificado ligado ao teatro; sentido de máscara, inclusive ligada a antiguidade
Greco-romana do culto à divindade Perséfone, onde a tal objeto se chamava
phersu, e era usado nos rituais religiosos; depois o próprio sentido do teatro,
inclusive é essa conotação mais aproximada se considerarmos a língua grega.
O sentido geral dos romanos é que persona não era apenas o objeto em si,
mas também o papel desempenhado por cada ator e ligando ao Direito e ao
sentido político, tal máscara não caracterizava algo de essencial, pois era a
expressão do papel mutável e não-essencial exercido por quem a usava. Ti-
nha como uma conotação de personalidade no sentido do não essencial. Isso
em se tratando do século I. Já para os gregos prosopón tinha uma conotação
que transcendia o aspecto gramatical, jurídico, religioso, e fundava-se num
caráter mais filosófico de insurreição contra o trágico da existência, que so-
mos também contingência e isso implica numa luta para a afirmação da liber-
dade. Parece haver uma relação entre a leitura de Boécio, Agostinho e os pa-
dres Capadócios, pois a ideia de individualidade, substância, etc têm relação
direta com a leitura trinitária de Deus. Ou seja, não há como negar que a lei-
tura filosófica e antropológica de Boécio sobre a pessoa humana tenha um
viés fortíssimo da teologia trinitária cristã.”
Para Boécio o primordial não é o coletivo como fundamento, mas o su-
jeito que pensa e reflete e, por isso, é capaz de viver em comunidade. Assim,
a contribuição de Boécio foi deslocar o sentido de racionalidade e individua-
lidade como condição primeira, destacando a noção de individualidade com
o acento na racionalidade da pessoa. Na visão do autor, as coisas inanimadas,
os animais, os vegetais não podem nunca serem elevados a condição de pes-
soa, mas somente dos seres portadores de alma racional. 5
Boécio afirma que “disso tudo decorre que, se há pessoa tão somente nas
substâncias, e naquelas racionais, e se toda substância é uma natureza, mas
não consta nos universais, e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém de
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3 BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Tradução, introdução, estudos introdu-
tórios e notas Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2005, p. 225-227.
4 RODRIGUES, Ricardo Antonio. Severino Boécio e a Invenção Filosófica da Dignida-
de Humana. In: Seara Filosófica. N. 5, Verão, 2012, p. 3-20.
5 Ibid.

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