Controle Difuso de Constitucionalidade

AutorGuilherme Sandoval Góes/Cleyson de Moraes Mello
Páginas955-1003
Capítulo 28
Controle Difuso de Constitucionalidade
28.1. Visão panorâmica do controle difuso de constitucionalidade
O objetivo deste capítulo é analisar as principais características que in-
formam o sistema brasileiro de controle difuso de constitucionalidade exer-
cido no âmbito de um processo subjetivo qualquer.
Como visto alhures, o sistema difuso brasileiro sofreu forte influência do
modelo norte-americano (Judicial Review), no qual o controle de constitu-
cionalidade é feito de modo difuso, reconhecendo-se competência a qual-
quer órgão do poder judiciário para executar tal tipo de controle. No entan-
to, há diferenças entre os sistemas. Em consequência, nosso desiderato é
compreender a dinâmica própria que rege a arguição incidenter tantum no
direito brasileiro.
Para tanto vamos examinar, dentre outros temas, a questão da cisão fun-
cional de competência e a cláusula de reserva de plenário, os efeitos da deci-
são final de mérito do Supremo Tribunal Federal, o papel do Senado Federal
no controle difuso, a teoria da transcendência dos motivos determinantes, a
mutação constitucional do artigo 52, X, da Constituição de 1988 e a possibi-
lidade de controle difuso em sede de ação civil pública.
O controle difuso, também denominado incidental (incidenter tantum),
aberto, reflexo, concreto, indireto, pela via de exceção ou defesa, é aquele
que se realiza a partir de um determinado caso concreto e, portanto, a partir
da atuação de qualquer órgão jurisdicional. Existe, no direito brasileiro, des-
de a primeira Constituição da República, em 1891.
O controle difuso surge de um conflito real embutido dentro de uma re-
lação jurídica qualquer, dentro de um processo judicial subjetivo normal, no
qual se demanda uma prestação jurisdicional para o caso concreto. É na solu-
ção desta lide submetida à apreciação do poder judiciário que nasce o con-
trole incidental, na medida em que o Estado-juiz necessita, antes de apreciar
o pedido principal, aferir a arguição de inconstitucionalidade do ato norma-
tivo que circunscreve tal lide de modo incidental.
De notar-se, por conseguinte, que o controle difuso de constitucionali-
dade pressupõe necessariamente um processo subjetivo, vale dizer, um pro-
cesso em que as partes litiguem sobre um determinado objeto.
Dessarte, a verificação da constitucionalidade do ato normativo é ato ne-
cessário para a solução do pedido principal da lide, é um antecedente neces-
sário e indispensável para a entrega da prestação jurisdicional. Para que se
tenha o julgamento do mérito do caso em tela, é preciso decidir incidental-
mente sobre a constitucionalidade do ato normativo impugnado.
De clareza meridiana, portanto, a ideia de que o pedido do autor não
pode ser a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, mas,
sim, a defesa de um direito constitucional violado, cuja inconstitucionalida-
de é arguida incidenter tantum. Nesse sentido, quando o autor da ação pro-
cura o Estado-juiz para a defesa de um direito constitucional violado, não
pode pretender a declaração de inconstitucionalidade da lei em tese, em abs-
trato. Ao revés, sua pretensão deve limitar-se à satisfação de um direito vio-
lado, exigível em face da parte adversa.
Ou seja, a questão constitucional somente é apreciada porque surge a
partir da aplicação de uma lei ou ato normativo qualquer, cuja compatibili-
dade vertical com a Carta Ápice é questionada de modo incidental. Isto sig-
nifica dizer que o juiz ou tribunal, para entregar a prestação jurisdicional
(conceber sua norma-decisão), é obrigado a aferir a questão da inconstitucio-
nalidade da norma em tela.
Em outras palavras, o objeto da ação é uma lide qualquer, cuja solução
será obtida dentro de uma relação jurídica normal (partes, juiz, ministério
público). No controle difuso, o objeto da ação nunca poderá ser a aferição de
inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo.
Em síntese, o controle concreto de constitucionalidade das leis se carac-
teriza pela existência de casos concretos que serão submetidos aos juízes e
tribunais no desempenho de sua tarefa fiscalizatória da supremacia constitu-
cional (processos judiciais subjetivos). No dizer de Luís Roberto Barroso: “é
o controle exercido quando o pronunciamento acerca da constitucionalidade
ou não de uma norma faz parte do itinerário lógico do raciocínio jurídico a
ser desenvolvido”.1
Portanto, o controle judicial concreto faz a análise da compatibilidade
vertical da norma em apreço levando em consideração os elementos fáticos
e as circunstâncias do caso concreto específico. O juiz exerce o controle de
constitucionalidade dentro de sua função jurisdicional normal, resolvendo a
situação específica a partir da sua própria interpretação no contexto do con-
tencioso existente.
Já a ideia de controle judicial difuso projeta a imagem de que a questão
constitucional será aferida por qualquer órgão jurisdicional dentro de sua
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1 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Ex-
posição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. Rio de Janeiro: Saraiva,
2009, p. 49.
competência pré-estabelecida, isto é, cada caso concreto será resolvido pelo
órgão judicial competente, cabendo-lhe a apreciação da arguição de incons-
titucionalidade.
Em outro dizer, o controle difuso no Brasil é exercido no bojo de proces-
sos judiciais que são acionados a partir de ações comuns, como, por exemplo,
mandados de segurança (individuais e coletivos), habeas corpus, ações popu-
lares, ações de conhecimento, de execução, cautelares etc.
Finalmente, a ideia de controle judicial incidental projeta a imagem de
que a atuação fiscalizadora de juízes e tribunais não é a questão principal
do processo subjetivo; tal questão figura, apenas, como um passo interme-
diário que eles precisam superar antes de apresentar a norma-decisão, com
a apreciação do mérito do pedido formulado pelo autor da ação. Nesse sen-
tido, a arguição incidenter tantum da inconstitucionalidade é questão pre-
judicial, que necessita ser resolvida para a obtenção da questão principal de
mérito.
Em visão panorâmica sintetizadora do controle difuso, considere a se-
guinte situação hipotética: se um contribuinte se insurge contra um determi-
nado imposto X, fixado pela Lei Y, inconstitucional por violar, por exemplo,
o princípio da anterioridade tributária, pretendendo não mais pagar tal im-
posto inconstitucional, além de obter do Poder Público a devolução do que
pagou indevidamente, como deveria agir?
Deveria requerer ao juiz natural a declaração de inconstitucionalidade
da Lei Y, que instituiu o imposto X, de modo a obter a repetição do indébito?
Ou, de modo contrário, deveria requerer ao juiz apenas a repetição do indé-
bito e a interrupção do pagamento do imposto X, apoiando-se, em sua fun-
damentação, na inconstitucionalidade da Lei Y violadora do princípio da an-
terioridade tributária?
O juiz, por sua vez, poderia declarar diretamente a inconstitucionalidade
da Lei Y, determinado a interrupção do pagamento do imposto X e a repeti-
ção do indébito? Ou, deveria o juiz limitar-se a conceder ou não o pedido de
repetição do indébito e de interrupção do pagamento, de acordo com a sua
conclusão acerca da inconstitucionalidade ou não da Lei Y, sem, entretanto,
em nenhum momento, declarar que a Lei Y é inconstitucional.
Além disso, questões fundamentais da dinâmica do controle difuso bra-
sileiro estão relacionadas com a possibilidade ou não de as partes (autor e
réu), terceiro, o próprio Ministério Público e até mesmo o juiz (de ofício)
poderem arguir incidentalmente a inconstitucionalidade de uma lei ou ato
normativo.
Assim, o incidente é arguido em controle difuso no curso de um proces-
so e constitui questão prejudicial do julgamento da lide, constituindo-se,
pois, premissa indispensável para análise da questão principal ou do mérito.
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