O Desenvolvimento Psicológico Infantil e a Influência das Propagandas Publicitárias no Ordenamento Jurídico Brasileiro

AutorJessica Sacramento da Silva Tiozzo
Páginas197-209

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Dentro da vida familiar o cuidado com a criação e educação da prole se apresenta como a questão mais relevante, porque as crianças de hoje serão os homens de amanhã, e nas gerações futuras é que se assenta a esperança do porvir.

Daí a razão pela qual o Estado moderno sente-se legitimado para entrar no recesso da família, a fim de defender os menores que aí vivem.1

1. Introdução

Consoante expõe o art. 227 da Constituição Federal, a família, a sociedade e o Estado compartilham o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem os cuidados especiais para um desenvolvimento digno, bem como o gozo da prioridade absoluta na efetivação dos seus direitos fundamentais. Mesmo após 25 anos do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, são imensos os desafios impostos à essa efetivação.

Dentre os fatores que prejudicam o exercício pleno dos direitos fundamentais por parte das crianças e dos adolescentes, têm-se as propagandas publicitárias. Referido prejuízo ocorre diante do fato de estes terem dificuldades para análise dos anúncios publicitários de forma crítica e reflexiva, conforme realizado por adultos. Assim, diante da vulnerabilidade inerente à infância e adolescência, as agências publicitárias instigam crianças e adolescentes ao tão prejudicial consumismo excessivo.

Diante deste cenário, o objetivo do presente artigo é averiguar os reflexos causados pela influência das propagandas publicitárias voltadas ao público infantil; apresentar elementos que busquem despertar a consciência crítica da sociedade quanto a esta influência e expor meios que possibilitem a minimização dos impactos negativos causados pelo excesso dessa exposição.

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2. O consumismo e a criança
2.1. A origem da cultura do consumismo

O consumo “é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e o uso dos produtos”2. Diante deste conceito, podese compreendê-lo como uma atividade rotineira e inerente ao ser humano, conforme expõe Zygmunt Bauman3.

Assim, sendo o consumo elemento inseparável da sobrevivência biológica dos seres humanos, qualquer das suas modalidades é apresentada como uma versão ligeiramente modificada das modalidades anteriores.

A grande problemática relacionada ao tema teve início com as modificações ocorridas no decorrer do tempo, quando houve a passagem do consumo para o consumismo.

A partir da “revolução paleolítica, que pôs fim ao modo de existência precário dos povos coletores e inaugurou a era dos excedentes e da estocagem [...]”4, ocorreram mudanças. A Modernidade ocorrida no século XIX, fruto das Revoluções, também trouxe grandes transformações, tais como:

[...] o desaparecimento da figura do artesão e da tendência de produção de um bem específico para cada pessoa, sendo seus lugares ocupados pela larga escala de produção. O tempo controlado pelo relógio passou a orientar a vida da sociedade moderna, que agora tinha como principal objetivo o lucro, uma decorrência da Reforma Religiosa.5

A cultura do consumismo, estabelecida a partir do século XX, promoveu uma expansão e diversificação de mercadorias e bens, instalando uma nova compreensão a respeito do mundo das coisas. Esta cultura está fundamentada em práticas sociais relacionadas ao ato de adquirir bens ou mercadorias, criar e perpetuar desejos em relação ao que não se tem, condicionando o ser humano a uma eterna insatisfação relacionada às necessidades de consumo.

O consumismo de massa nasceu na década de 1920 nos Estados Unidos. Como fruto do sistema capitalista, foi intensificado “com a publicidade, a moda, a mídia de massa e, principalmente, o crédito [...] com o crédito tornou-se possível satisfazer imediatamente todos os desejos”6. Desejos estes inerentes à condição humana que, juntamente com a incessante busca pelo prazer oriundo do consumo e da satisfação dos impulsos momentâneos, caracterizam a Pós-Modernidade.

Acostumamo-nos a todas estas mudanças, a algumas com maior resistência do que outras. Entretanto, as novas gerações parecem muito mais à vontade com estas transformações, visto que são crianças que não conheceram um mundo sem mídia, sem computador, sem celular, sem videogame ou sem internet. Assim, ser criança no mundo contemporâneo significa crescer e constituir-se a partir destas condições singulares e significativas do nosso cotidiano, em um meio cultural marcado pela transitoriedade, simultaneidade e flexibilidade em que as procuras pelo consumo se renovam constantemente.

2.2. A inversão de valores da sociedade: a necessidade de “ter”

As grandes transformações, ocorridas principalmente a partir da segunda metade do século XX modificaram a nossa compreensão geral em face dos valores e das orientações éticas que regem as nossas escolhas.

O consumismo tornou-se especialmente importante, se não central, para a maioria das pessoas, o verdadeiro propósito da existência; a capacidade de querer, desejar e ansiar passou a sustentar a economia. A máxima abusiva do pensamento de Descartes — penso, logo existo — é utilizada por François Brune, nos seguintes termos: “consumo,

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logo existo. Esta é a máxima que parece resumir o nosso tempo”7.

O mundo contemporâneo, cercado de veloci-dade, é transitório e efêmero; um mundo em que impera o homocentrismo. Segundo Marshall Berman: “Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’”8. Nesta perspectiva, a cultura contemporânea coloca-nos diante de enormes desafios: pra “ser” é preciso “ter”.

2.3. O desenvolvimento psicológico infantil e a criança como consumidora

Na cultura contemporânea, a criança ocupa uma posição social notória definida pela visibilidade com que a infância se torna alvo da oferta de produtos e serviços. Enquanto os adultos são dotados de um juízo crítico que possibilita a seleção de produtos que melhor correspondem às suas necessidades, as crianças “são mais vulneráveis às mensagens persuasivas, por estarem em desenvolvimento”9.

Esta promoção da infância ao reconhecimento social está apoiada pelos meios de comunicação em massa, por meio de anúncios e propagandas que integram nosso cotidiano, redefinindo e elevando a criança à potencial consumidora, capaz de contribuir efetivamente na dinâmica social do consumo.

Dentre os principais meios de comunicação em massa tem-se a mídia televisiva. A partir de 1960, foi se impondo como meio de comunicação hegemônico. Este meio afeta grandemente a população infantojuvenil no Brasil, pois não necessita de alfabetização infantil para ser compreendido.

Atualmente, em 98% dos lares brasileiros, há, pelo menos, um televisor. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatísticas (IBOPE), as crianças brasileiras passam, em média, 5 horas diárias em frente à televisão e assistem, aproximadamente, 40 mil propagandas em 1 ano.

Os riscos que envolvem a exposição das crianças à mídia televisiva têm sido objeto de pesquisas e estudos no mundo inteiro. Os questionamentos giram em torno da possibilidade de a mídia educar, interagir, informar e influenciar na formação subjetiva da criança, abrangendo a qualidade de programações e anúncios oferecidos ao público infantil e a quantidade de horas em que as crianças estão expostas a esta mídia.

Quanto à preocupação da influência das propagandas publicitárias, Montigneaux explica que a partir de 5 e 6 anos as crianças começam a realizar comparações entre os produtos; aos 6 anos, são capazes de citar pelo menos uma marca por categoria de produto; a partir dos 6 anos, começam a entender outras dimensões dos produtos, além da cor e da forma, e de 7 a 8 anos, entendem o conceito de marca10. Assim, constata-se que o consumo infantil inicia-se de forma precoce, conforme menciona Baader: “conhecem produtos, marcas, personagens, e utilizam critérios próprios para avaliá-los e conceituá-los. Isso ocorre desde muito cedo, antes mesmo da alfabetização propriamente dita”11.

As crianças formam um grupo que precisa ser analisado na sua interação com as mensagens da propaganda por terem um jeito próprio de compor fantasia e realidade, bem como por não conseguirem entender o seu caráter persuasivo e irônico. Elas acreditam no que ouvem e veem, entendendo, assim, que o produto ou serviço anunciado proporcionará todos os benefícios e prazeres prometidos pela publicidade, mesmo que seja algo irreal e impossível de realizar. “Trata-se, portanto, de um jogo desigual, no qual quem anuncia para crianças sabe o que está fazendo, enquanto elas não sabem exatamente o que estão comprando.”12

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Diante das perspectivas analisadas, inegável é a necessidade de reflexão quanto aos cuidados da precoce exposição da criança à mídia e aos potenciais riscos que esta pode causar; especialmente...

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