As Lesões Associadas - Lesões 'intra vitam' e lesões 'post mortem
Autor | Jorge Paulete Vanrell |
Ocupação do Autor | Medicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia |
Páginas | 147-166 |
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Um dos problemas clássicos da Patologia Forense é a determinação da origem vital das lesões que apresenta um cadáver. As possibilidades diagnósticas foram baseadas fundamentalmente num exame das lesões à simples vista, com o apoio da microscopia a partir do século XIX. Nos últimos setenta anos, graças ao maior conhecimento da reação inflamatória aguda e os processos de reparação das lesões, se desenvolveram os marcadores de vitalidade, que ajudam a fornecer esse importante diagnóstico na maioria dos casos. Porém, a frequência de casos que se apresentam, a variedade dos mecanismos lesivos e as diferentes reações que apresentam os diferentes tecidos demonstram que, ainda hoje em dia, esse é um problema latente e sem solução definitiva.
Em 1954, Strassman definiu a reação vital apoiando-se na opinião de Plenk, feita em 1786, que dizia “aquela reação dos tecidos e órgãos para cuja presença é necessária a existência de células vivas”, acrescentando que, necessariamente, o processo deve ser em tecido conetivo vascularizado. Vinte séculos antes, o médico romano Aulo Cornélio Celso (séc. I d.C) descreveu os sinais e sintomas que caracterizam a lesão das feridas da pele, isto é, tumore, calore, rubore et dolorem (tumor, calor, rubor e dor), relação que foi complementada por Virchow no século XIX.
Os tecidos vivos têm uma característica muito importante, que é a capacidade de resposta aos estímulos externos. Se o estímulo é uma agressão traumática (biológica, física ou química), a reação dos tecidos constitui essen-cialmente a reação inflamatória aguda e reparativa proporcional e na magnitude da agressão. John Hunter, em 1979, assim descreveu esse fenômeno: “a inflamação
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é um efeito destinado a restaurar a função normal, não deve ser considerada uma doença, e sim um processo benéfico que se produz como conseqüência de uma noxa”.
A reação inflamatória aguda e a reparação são, na verdade, um fenômeno complexo e ainda não totalmente conhecido, constituído por inúmeros processos (reações bioquímicas e enzimáticas, mudanças hemodinâmicas e vasculares, diversas atividades celulares etc.) que se orientam a um objetivo comum, qual seja, destruir a noxa e reparar o dano produzido. Porém, “a reação vital” inclui fenômenos que não são considerados elementos da resposta inflamatória aguda no sentido estrito, como os da agregação plaquetária, agregação do complemento e outros.
O conjunto de todos esses complexos processos, que são ativados no tecido vivo frente à noxa, é conhecido como reação vital e não ocorre quando o tecido está morto.
Paulete Vanrell define a reação vital como: “o conjunto de signos macros-cópicos, microscópicos e químico-tisulares (histoquímicos, enzimáticos e bioquímicos) e que acontecem somente quando as lesões foram provocadas na vítima viva, e não depois da sua morte”.
Todos os autores clássicos da Medicina Legal, como Thoinot, davam já uma especial importância ao estudo das lesões produzidas logo após a morte e as diferenças com aquelas que haviam se produzido em vida.
Inúmeras são as perícias que exigem a diferenciação entre a origem vital ou pós-mortal que apresenta o cadáver em Patologia Forense, pois é o elemento essencial para esclarecer a causa, o mecanismo e as circunstâncias que acompanharam a morte. Na maioria dos casos, esse diagnóstico é feito graças ao exame da lesão realizado à vista desarmada, o que permite revelar as características próprias da lesão vital. Se a lesão foi produzida quando a pessoa estava viva, haverá uma reação constituída fundamentalmente por inflamação aguda, que será reconhecida pelos clássicos elementos de Celso. Se a lesão foi produzida depois da morte, não serão observados os sinais mencionados. Esse exame foi corretamente esquematizado por Legrand du Saulle.
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ESQUEMA DE LEGRAND DU SAULLE
• Lesão Vital:
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Bordas da ferida engrossadas, com infiltrações de sangue, e separadas pela retração da derme ou dos tecidos subjacentes. Mais tarde, exsudado linfático e supuração.
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Hemorragia abundante, com infiltração de sangue nos tecidos circundantes.
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Sangue coagulado no fundo da ferida ou sobre a pele.
• Lesões Pós-mortais:
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Bordas da ferida moles, sem espessamento, aproximados e não retraídos. Ausência de exsudado linfático e supuração.
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Não apresenta hemorragia arterial nem venosa, não há infiltração dos tecidos.
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Não apresenta sangue coagulado.
Este quadro, que em linhas gerais cumpre o seu objetivo, na atuali-dade parece categórico demais nas suas afirmações, pois a prática diária ensina que há muitos casos em que não se observa o cumprimento desses critérios.
Quando a ferida é produzida nos momentos próximos à morte, antes ou depois, suas características não serão tão precisas e o diagnóstico de vitalidade será mais difícil.
Na cronologia das feridas, é possível verificar as seguintes etapas:
• lesões produzidas muito antes da morte; • lesões produzidas imediatamente antes da morte; • lesões produzidas imediatamente após da morte; • lesões produzidas um tempo depois da morte.
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França cita Janssen, que assim classificou tais eventualidades: reações definitivamente vitais, reações intermédias e reações seguramente depois da morte. Os períodos das reações chamadas intermédias são aqueles que apresentam as maiores dificuldades no diagnóstico.
Bem se sabe que os limites entre a vida e a morte não são precisos; uma pessoa está viva e um instante depois, morta no sentido absoluto do termo. A passagem de uma situação para outra acontece lenta e progressivamente: supõe a cessação da função respiratória e circulatória; tecidos, aparelhos e funções apresentam uma diferente capacidade de resistência à anóxia, com uma velocidade e características praticamente diferentes em cada pessoa, graças a muitos fatores (causa da morte, duração da agonia, constituição do indivíduo, terapêutica proporcionada nos últimos momentos da vida, fatores ambientais e outros), mas nunca de forma imediata. Se nesse processo dinâmico o corpo sofre algum tipo de agressão, os tecidos responderão com uma reação semelhante à descrita como reação vital, mas não igual; é o que se chama reação agônica ou reação intermédia, termos que, por sua falta de definição, mostram a imprecisão da própria reação produzida. Nesses casos, o diagnóstico preciso por meio de um simples exame macroscópico não é possível.
As dificuldades no diagnóstico levaram Tourdes a determinar a existência naquilo que ele mesmo chamou período de incerteza diagnóstica, que na sua época estabeleceu em 6 horas antes ou depois da morte. Durante o desenvolvimento do tema veremos como, nas últimas décadas, as atividades da investigação nessa área buscaram reduzir esse período de incerteza, permitindo diagnósticos de vitalidade mais precisos e precoces, graças ao emprego de técnicas que permitam revelar reações, cada vez mais sensíveis, características dos tecidos vivos. Paralelamente, muitos desses novos indicadores de vitalidade permitem determinar a data da lesão. A maioria das experiências se concentrou, essencialmente, nas feridas cutâneas.
Nos diversos textos clássicos da literatura médico-legal, são descritas muitas metodologias e marcadores que se desenvolveram para sua aplicação ao diagnóstico diferencial entre feridas vitais e pós-mortais. Para facilitar sua compreensão, serão sistematizadas em vários grupos, dependendo da técnica empregada.
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Inúmeros textos de Medicina Legal, como o dos professores Hoffmann e Haberda, de 1909, conferem uma especial importância ao exame à simples vista, que além dos sinais próprios de uma reação inflamatória, já referidos, permite a avaliação de outros aspectos característicos da resposta vital dos tecidos, como a hemorragia, a presença de trombos ou êmbolos, a aspiração do sangue, corpos estranhos etc. O seu valor é relativo, já que muitos dos fenômenos mencionados se produzem nas primeiras fases do período pós-mortal, e a sua presença não permite estabelecer um diagnóstico absoluto de vitalidade. No entanto, alguns deles alcançam tal valor definitivo, se se apresentam com a suficiente intensidade, e por isso merecem ser mencionados.
Há muito tempo já se observaram as diferenças no comportamento do sangue extravasado em vida e logo após a morte. No primeiro caso o sangue coagula rapidamente e no segundo não coagula, ou o faz de maneira incompleta e lenta. O sangue não perde sua capacidade de coagulação no próprio momento da morte, conservando tal capacidade por até seis horas depois do óbito.
De qualquer modo, a verdade é que a coagulação do sangue procedente das lesões produzidas em vida é...
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