Fenômenos Destrutivos do Cadáver

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas191-205

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Os fenômenos transformativos do cadáver se constituem de uma série de mudanças estruturais, que se estabelecem progressiva e sucessivamente sobre o corpo e que traduzem a certeza da morte. Isso, porque referidas transformações são de tal magnitude e tão universais que impossibilitariam, de maneira irretorquível, qualquer possibilidade de vida.

Tais fenômenos compreendem o conjunto de processos abióticos que transformam o cadáver, quer pela sua destruição, quer pela conservação. Podem dividir-se em destrutivos e conservadores:

  1. destrutivos a - autólise b - maceração c - putrefação

  2. conservadores a - saponificação b - mumificação c - congelação ou congelamento d - petrificação e - coreificação

Fenômenos destrutivos

Ocorrendo a cessação da vida, desde logo começa a produzir-se a lise das células, seguida da decomposição dos tecidos e das transformações morfológicas do próprio corpo.

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a) Autólise

É um processo autodestrutivo de células e tecidos, que se opera sem interferência externa, decorrente do aumento não seletivo da permeabilidade das membranas plasmáticas, o que possibilita a liberação de enzimas proteolíticas contidas nos lisossomas (“suicide bags”).

Pela ação de referidas enzimas, ocorre o ataque e desdobramento catabólico dos substratos celulares e teciduais, muitos dos quais dão azo à formação de subprodutos ácidos diversos que, em pouco tempo, reduzem o pH do meio, que, de ser neutro ou ligeiramente alcalino, em vida, passa a ser ácido, logo nas primeiras horas depois do óbito.

A acidez que resulta da autólise celular e tissular, pela rapidez com que se instala e pela constância com que aparece, é um importante elemento indicativo de morte real.

Tanto é verdade que diversas provas – importantes para o diagnóstico da morte, e que, inclusive, foram alvo de estudo em outra parte desta obra – estão baseadas no resultado da autólise, como, e.g., as provas de Brissemoret e Ambard, de Cloquet-Laborde, de De Dominicis, de Lecha-Marzo e de Silvio Rebelo (ver capítulo 5, “Provas de cessação da vida”).

Todavia, citada acidez, tanto dos tecidos como dos líquidos orgânicos, resultante da autólise referida é de curta duração, haja vista que, assim que se instalam os processos putrefativos, com a proteólise bacteriana há decarboxilação dos aminoácidos – com liberação de CO2 –, que ficam, destarte, apenas com as suas funções amina, e que não tardam em se desdobrarem para formar amônia, substância esta que se torna responsável pela neutralização e ulterior alcalinização progressiva do meio interno do cadáver; este, por sua vez, normalmente atinge valores de pH da ordem de 8,0 a 8,5, logo na primeira semana após o óbito.

b) Maceração

É o processo de transformação destrutiva em que ocorre o amolecimento dos tecidos e órgãos, quando os mesmos ficam submersos em um meio líquido e nele se embebem. O mais frequente é que aconteça com a água e com o líquido amniótico.

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Nesta variedade de fenômeno abiótico transformativo ocorrendo, em geral, na ausência de putrefação ou previamente à instalação desta, tecidos e órgãos se edemaciam. A pele se torna esbranquiçada, friável, corruga-se longitudinalmente e faz com que a epiderme se solte da derme e possa até se rasgar em grandes fragmentos. Isso é bastante evidente nas mãos, onde a pele de desprende ao modo de “luvas”.

Externamente, a derme, pelas razões acima apontadas, fica exposta e em geral se mostra brilhante, luzidia, por causa do próprio edema que a embebe e a torna túrgida. Já, internamente, as cavidades naturais e a luz dos próprios órgãos são infiltradas por líquido, de coloração avermelhada devido à hemoglobina resultante da hemólise. A consistência de tecidos e órgãos se perde progressivamente, e acaba por promover a desintegração do próprio cadáver.

Não resta dúvida que o caso mais frequente e mais característico de maceração é o que ocorre nos fetos quando do seu óbito “intra-útero”, e que se inicia logo nas primeiras 24 horas.

Nessas circunstâncias, o cadáver do concepto é retido dentro do âmnio ou “bolsa das águas”, imerso em líquido amniótico, completamente asséptico. Em consequência, o cadáver do feto não tem condições de sofrer putrefação, porquanto não entrou ainda em contato com qualquer tipo de bactérias. Dois fenômenos, somente, ocorrerão: autólise (cf. supra) e edema.

O primeiro – a autólise – em virtude da liberação das enzimas contidas nos lisossomos, pelo próprio aumento de permeabilidade das membranas plasmáticas atingidas pelo processo letal. O segundo – o edema –, em decorrência da infiltração tissular pelo líquido em que o cadáver, neste caso o feto, está submerso.

Os ossos do crânio, em virtude das mudanças volumétricas do conteúdo, perdem a sua coaptação e se imbricam; os tecidos, progressivamente, se liquefazem restando formes apenas os mais consistentes: ossos e cartilagens. Tal situação confere ao feto e ao útero gravídico, durante a palpação externa, ou mesmo durante a palpação bimanual com toque, uma consistência toda especial denominada (porque faz lembrar) “saco de nozes”.

Outro caso em que se pode observar maceração se dá nos cadáveres dos afogados, quando permanecem no meio líquido por vários dias, sendo certo

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que nestes sói haver uma associação com os fenômenos de putrefação e/ou de saponificação (cf. infra). O elemento mais marcante nesses casos, considerando o enrugamento e desprendimento de extensas lâminas do integumento, é a produção das chamadas “luvas”. Estas nada mais são que a epiderme das mãos (eventualmente também dos pés), que – por ser um tecido mais coeso, em virtude dos desmossomas que mantêm coladas suas células – se descola por embebição da lâmina basal. Esse processo se inicia logo nas primeiras 24 horas após o óbito, e a referida “luva” pode ser recuperada em até 15 dias depois ou mais, possibilitando, se adequadamente manuseada, a coleta das impressões digitais do de cujus para sua eventual identificação datiloscópica.

c) Putrefação

Dá-se o nome de putrefação ao processo biológico de decomposição da matéria orgânica por bactérias, principalmente, bem como pela fauna macros-cópica e pela flora (fungos), o que acaba por devolvê-lo à condição de matéria...

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