As Manchas de Sangue: Sua Interpretação em Locais de Morte Violenta

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas667-687

Page 667

Introdução

A perícia criminal está em evidência. Ao longo dos últimos anos, ganhou destaque no jogo processual penal. Entre as provas potencialmente apreciadas, paulatinamente avança terreno, pois tem uma característica singular: lastro científico.

Em casos de perícias em locais de morte violenta, não é diferente. Por muito tempo, a prova testemunhal reinou absoluta. Hoje, o laudo pericial é peça imprescindível na materialização do fato criminoso e até na determinação da autoria.

Nesse contexto, insere-se a análise das manchas de sangue. Trata-se de um elemento material de suma importância na reconstrução de eventos violentos. Uma análise bem feita encaminha o perito ao passado, revelando a dinâmica da cena estática ora encontrada.

Para realizar essa tarefa, faz-se necessário conhecer a fundo esse objeto de estudo. Com base nas propriedades físicas do sangue e nas leis da Física, o expert tem um instrumental fenomenal para proceder à análise.

Assim sendo, nesse capítulo, tem-se o intuito de apresentar os conceitos básicos da teoria forense de manchas de sangue. Ressalte-se que o escopo aqui proposto é bem definido. As manchas de sangue são abordadas no que tangue ao seu processo de formação. Aspectos biológicos ou químicos não entram no domínio de conhecimento aqui delineado.

Para alcançar o objetivo em tela, o capítulo é dividido em quatro partes. A primeira apresenta um breve histórico da análise das manchas de sangue. A segunda traz os principais conceitos existentes sobre o tema. A terceira parte relaciona os conceitos expostos com as perguntas que o perito de local de crime deve responder na sua análise. Por último, têm-se algumas reflexões à guisa de conclusão.

Page 668

1. Breve histórico

A interpretação de manchas de sangue em locais relacionados à morte não é um assunto novo. O tema permeia o imaginário humano há tempos, seja do ponto de vista do senso comum, seja com uma abordagem técnico-científica. Com o objetivo de expor um breve estado da arte, pode-se propor uma análise histórica dividida em dois momentos distintos: um pré-científico, outro notadamente científico.

O primeiro momento se estende até meados do século XIX. Caracteriza-se pela inexistência de uma abordagem científica sobre o objeto de estudo. Não obstante, a sua importância para o ulterior desenvolvimento do tema não pode ser descartada.

De fato, antes de qualquer análise formal, as manchas de sangue já estavam associadas a locais de morte violenta. Sangue, morte e violência formam um triunvirato enraizado no senso comum há gerações. As inúmeras pinturas que retratam as diversas guerras que atravessaram a história humana dão uma dimensão dessa pré-noção. Não é raro, por exemplo, encontrarem-se nas pinacotecas do mundo obras em que gotículas de sangue se desprendem de uma espada empunhada por um guerreiro, repassando a idéia de movimento da cena para o observador. Tais gotículas configuram, sem dúvida, uma inter-pretação de manchas de sangue feita pelo artista.

Ainda no escopo da fase pré-científica, é interessante citar que o primeiro caso documentado de entomologia forense está intrinsecamente relacionado ao assunto aqui tratado. Um manual de medicina legal chinês datado do século XIII relata um caso em que um lavrador foi degolado com uma foice. Para descobrir-se o homicida, todos os lavradores da região foram obrigados a colocar suas foices ao ar livre. Em uma delas, pousaram-se moscas, atraídas pelos resquícios de sangue que ali estavam depositados. Note-se que, para engendrar esse raciocínio, certamente os “investigadores” desse homicídio tiveram que interpretar as manchas de sangue decorrentes do degolamento, inferindo que essa substância, por transferência, deveria estar aderida ao instrumento incriminado.

A partir da segunda metade do século XIX, a interpretação de manchas de sangue ganhou uma roupagem científica. Os principais estudos se desenvolveram na Europa e paulatinamente foram lastreando o que viria a se tornar uma nova ciência forense.

Page 669

Entre os estudos embrionários, destaca-se a análise feita por Eduard Piotrowski em 1895 (BEVEL; GARDNER, 2008, p. 5-6). Usando como cobaias coelhos vivos e aplicando um método científico rigoroso, Dr. Piotrowski conseguiu verificar que, em certas condições, as manchas de sangue produzidas seguem determinados padrões e regras. Nesses termos – concluiu o autor –, tais evidências não podem ser subestimadas em casos de morte violenta.

No século XX, um novo marco pode ser considerado. Em 1953, o Dr. Paul Kirk (Berkely, Califórnia) publicou um livro intitulado Crime Investigation, no qual um capítulo tratava especificamente de interpretação de manchas de sangue (Blood: Physical Investigation). Mas a grande importância desse autor está vinculada a sua participação no clássico caso Estado de Ohio x Samuel Sheppard (JAMES; ECKERT, 4).

Nesse caso, Samuel Sheppard foi acusado pela justiça norte-americana de ter assassinado sua esposa e filha enquanto ambas dormiam. O Dr. Paul Kirk atuou como testemunha de defesa e, a partir de uma análise rigorosa das manchas de sangue produzidas na cena do crime, conseguiu determinar a dinâmica do evento. Sua participação nesse caso marca a entrada da análise de manchas de sangue no mundo jurídico como prova material.

Hebert Leon MacDonell é considerado o pai da análise moderna. Sem dúvida, o crescimento do tema se deve muito aos seus estudos e publicações. Com uma abordagem teórica e prática, visando sobretudo recriar em laboratório as manchas de sangue encontradas em cenas de crimes, o autor contribuiu sobremaneira para o avanço científico desse objeto de estudo. Entre suas publicações, destacam-se: Flight Characteristics of Human Blood and Stain Patterns, em 1971; Laboratory Manual on the Geometric Interpretation of Human Bloostain Evidence, em 1973; e Bloodstain Pattern Interpretation, em 1982, obra revista e ampliada em 1992 e 1997.

Em 1983, pode-se destacar a criação da International Association of Bloodstain Pattern Analysts – IABPA. Trata-se de uma associação destinada ao desenvolvimento científico da análise de manchas de sangue, fomentando estudos e publicações na área. A IABPA atua, também, padronizando as terminologias empregadas, além de ministrar cursos teóricos e práticos sobre o assunto em vários países.

O Federal Bureau of Investigation (FBI), em 2002, criou o Scientific Working Group on Bloodstain Pattern Analysis (SWGSTAIN). Esse grupo tem como escopo principal estimular discussões técnicas sobre interpretação de manchas de sangue.

Page 670

Por fim, pode-se dizer que no Brasil a matéria ainda está no seu estágio inicial. Não há publicações de impacto ou fóruns de discussão de âmbito nacional. Faltam, notadamente, sistematização do conhecimento, empiria e cursos técnicos, elementos necessários para alavancar o tema e elevar os trabalhos periciais na área de morte violenta a um patamar científico de ordem superior.

2. O sangue

O sangue é composto por um líquido, o plasma, onde estão suspensos três tipos de células: glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas (figura 36.1). O sangue, dentro do corpo humano, circula no estado líquido; uma vez no ambiente externo, passa fisiologicamente para o estado de gel, devido à coagulação. O volume total de sangue no organismo humano varia conforme o sexo. Em homens, o volume total está entre 3.600 e 5.800 ml; em mulheres, esse volume transita entre 2.900 e 4.400ml (VERRASTRO, 2002, p. 3-4).

Do ponto de vista físico, o sangue, por suas características, é definido como um fluído coloidal. É um fluído pois tem a capacidade de escoar. O termo coloidal refere-se às células que estão em suspensão.

Para entender e interpretar as manchas de sangue, é fundamental conhecer suas propriedades físicas. São essas propriedades, associadas às leis da Física, que permitem estudar a formação dos diversos padrões de manchas existentes em uma cena de crime. Além disso, analisar as manchas de sangue sob o prisma dessas propriedades subsidia cientificamente a interpretação do expert.

Page 671

Para o escopo aqui proposto, duas são as propriedades físicas a serem catalogadas: viscosidade e tensão...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT