A Ética do Perito no Exame Necroscópico

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas305-321

Page 305

Introdução

Realizar uma avaliação, em qualquer área, nunca é tarefa fácil.

Mais difícil, ainda, é quando se trata de proceder à determinação das alterações do corpo, traumáticas ou funcionais, que acabaram por levar uma pessoa ao óbito.

O profissional avaliador convive, todos os dias, com desafios oficiais quando enfrenta decisões éticas que poderiam alterar, drasticamente, o curso de sua carreira, do óbito dos examinados e das consequências nas famílias destes.

Emitir um Parecer ou lavrar um Laudo leva ínsito o conceito de tomar uma decisão. E tomar decisões, em última instância, nada mais é do que enfrentar e solver dilemas.

Com efeito, deve-se ter presente que ao profissional guindado a Perito – Médico, Odontólogo ou outro –, além do amplo conhecimento exigido na área científica em que atua, lhe é imposto (e a maioria das vezes ele não sabe disso, nem nunca lhe foi informado) um pesado ônus ético e moral.

O leitor menos avisado pode, em um primeiro impulso, questionar:

• o que é que tem a ver realizar uma avaliação necroscópica médico-legal, ou odonto-legal, com a ética ou com a moral ?

• isso não é algo fosfórico, que apenas serve para “enrolar” e fazer aparecer o trabalho como mais complicado do que ele realmente é ?

Aquele profissional por cuja cabeça tenham passado esses pensamentos, mesmo que seja em forma de flash, pense bem, pense duas vezes, se pretende e se tem condições de ser um Perito.

Page 306

Por quê ?

Porque se o Perito tem princípios e valores para decidir, avaliar e julgar, então, necessariamente, está submetido ao campo da Ética.

E por que a moral está sendo mencionada ?

Porque a Moral nada mais é do que a aplicação, na prática, in concreto, dos princípios éticos.

Ética e moral

Por mais que os humanos sejam seres gregários, isto é, que tendam, naturalmente, a viver em sociedade, a História demostra que, desde a Anti-guidade, a convivência grupal não tem sido fácil. Daí a necessidade de estabelecer regras para impor limites naturais a essa convivência. E essa foi uma tarefa que exigiu séculos até os filósofos normatizarem o conjunto de princípios, normas e regras que deveriam ser seguidos para que se estabelecesse um relacionamento entre os valores morais e a conduta humana, o perfil do profissional que atua ou pretende vir a atuar na perícia, fundando-se tais características, genericamente, nas duas formas de excelências de que nos fala Aristóteles:

• a excelência moral (honestidade, moderação, equidade etc.) e • a excelência intelectual (inteligência, conhecimento, discernimento etc.), conjunto esse que se transformou num ramo da filosofia – a Ética –, a partir do ethos (costume), extraído da maneira concreta de viver, vigente na sociedade.

O mesmo Aristóteles nos adverte que um homem deve ser reto e não tido como reto – para certas funções, entre as quais se inclui a perícia e o perito –, pelos reflexos que sua atuação causa no corpo social; tal condição não é classificada como desejável, mas sim como exigível e básica para que se cumpra o que aquele mesmo corpo social espera do ser individual.

Na Grécia, na época clássica, Aristóteles (Estagira, 384 a.C. – Atenas, 322 a.C.) doutrinou sobre a Ética, discutindo as ideias de seu mestre Platão, apenas passando do idealismo para o realismo: a ideia fundamental de Aristóteles, tanto quanto para seu mestre Platão, era o Bem Supremo. E esse bem

Page 307

supremo era identificado com a felicidade ou eudaimonia (em grego). Mas a felicidade não como forma abstrata, ideal, mas “a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem em convivência”.

A Ética é, pois, o conjunto de princípios teóricos e valores da nossa conduta na vida comunitária. É aquilo que orienta a capacidade de decidir, julgar e avaliar com autonomia.

Mantendo-nos fiéis à finalidade desta obra e para sermos práticos – adotando o pragmatismo de Cortella (2014) –, devemos ter presente que a Ética é um conjunto de princípios e valores que o Perito (bem como qualquer ser humano autônomo e livre) usará para responder, na execução do seu mister, as três grandes perguntas da vida humana: Quero ? Devo ? Posso ?

Sob esse ponto de vista, é fácil compreender que a Ética, conquanto seja algo comum aos seres humanos, ela é personalíssima, isto é, cada pessoa tem a sua ética, seu conjunto de princípios, e age em consequência dos mesmos.

Pode acontecer, entretanto, que a ética de alguém contrarie os princípios da “ética” que um grupo de pessoas compartilha e aceita. Diz-se, então, que essa pessoa é antiética, o que não quer dizer que “não tenha ética”, e sim apenas que seu conceito de ética não é o mesmo que o daquele grupo.

E o que é a moral do Perito ?

Como vimos, a forma concreta como a ética é vivida depende de cada cultura e, aqui, cada uma é sempre diferente da outra. Esse jeito diferente de viver conforme a ética é o que se chama de moral.

Ética, como vimos, existe uma só para todos os membros de determinado grupo.

Moral, existem muitas, consoante as maneiras diferentes como os seres humanos organizam a vida.

Vejamos um exemplo. O importante é fazer uma perícia (ética). A técnica e a maneira de processá-la variam (moral). Pode ser simples ou complexa, acidentária, previdenciária, securitária, cível, criminal, contanto que seja uma “atividade legal responsável pela produção de prova técnica em procedimentos administrativos ou em processos judiciais”.

Assim é com a ética e a moral.

Page 308

O conjunto de princípios e valores que o Perito usará para responder, na execução do seu mister, às três grandes perguntas da vida humana – Quero? Devo ? Posso ? – representará a Ética.

E o que será a Moral do Perito? Nada mais do que pôr em prática, efetivar, as respostas a essas perguntas.

Quero ? Devo ? Posso ?

Eis as três perguntas que o Perito, no trabalho tanatológico, deverá se fazer em cada caso que periciar e no qual deva tomar decisões ao encerrar o Relatório.

Quero fazer (proponho-me a fazer) um exame completo, minucioso, que leve a conclusões úteis e confiáveis para quem me incumbiu a tarefa ?

• Sim, com quase certeza, se eu contar com o Auxiliar adequado, com o instrumental necessário que me permita obter os resultados tempestivamente.

• Caso não, melhor eu desistir da perícia: o ganho previsto não compensará as dores de cabeça que terei de enfrentar...

Devo enumerar todos os achados, inclusive aqueles pregressos, crônicos e degenerativos, e que não se relacionam diretamente com o óbito ?

• Sim, embora saiba de antemão que isso poderá prejudicar, frontalmente, o periciando porque impedirá o estabelecimento do liame de causalidade atual entre o evento (trabalho, acidente etc.) e os achados (exame necroscópico).

• Se não, como Perito, não estarei sendo honesto porque, como médico, odontólogo etc., tudo quanto observe deveria constar do Laudo de Exame Necroscópico. Um dia a casa vai cair...

Posso ganhar tempo, adiar a entrega do Relatório, demorar a prestação jurisdicional, e até suavizar alguns itens, uma vez que meu colega, o Médico--Assistente, me solicitou favorecer seu cliente de longa data ?

• Sim. Caso assim eu proceda, lembremo-nos que na perícia médica honesta não se aplica o brocardo “tempus omnia solvit” [o tempo tudo

Page 309

resolve]. Por mais que o tempo passe, o resultado da avaliação pericial não mudará e a demora trará prejuízo para todas as partes envolvidas. • Se não: embora eu saiba que algumas partes ficarão temporariamente “gratas” pelo meu gesto (e talvez até me façam algum “agrado”), estarei prejudicando a Administração, o Juízo e pelo menos uma das partes, além de estar maculando de forma irreversível minha reputação como Perito qualificado.

Caracteres psicoéticos

Segundo Aristóteles, há duas naturezas de excelências: moral e intelectual. A moral é composta pela virtude, honestidade, seriedade, moderação etc. A intelectual compreende a educação, o conhecimento, inteligência etc. A associação entre as duas excelências permite ao perito agir de acordo com a moral e utilizar sua técnica a fim de realizar um trabalho íntegro e técnico.

Definidas e interligadas as bases conceituais da perícia, seu objeto e objetivos, poderemos ter uma ideia de quais características devem compor o perfil do profissional que atua ou pretende vir a atuar na perícia, fundando-se tais características, genericamente, nas duas formas de excelências de que nos fala Aristóteles: a excelência moral (honestidade, moderação, equidade etc.) e a excelência intelectual (inteligência, conhecimento, discernimento etc.).

Essas virtudes propiciarão a manifestação consciente do agente (o perito)...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT