As Sucessões Entomológicas

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas263-284

Page 263

Introdução

Toda vez que se observa um cadáver em decomposição, verifica-se centenas de espécies de animais, entre eles os artrópodes, são atraídas para se alimentar, viver ou procriar na matéria orgânica em decomposição, dependendo da preferência biológica e do real estado de decomposição. Primeiramente chegam as moscas (Diptera), a seguir os besouros (Coleoptera) e suas larvas, mas também concorrem ao alimento ou aos restos as traças, os isópodes, os opiliões e os nematóides, seguindo uma ordem cronológica.

Visto que os artrópodes são, sem dúvida, o maior e mais importante grupo biológico na face da Terra (seu elevado número se iguala ao das plantas), eles podem ser achados em uma grande variedade de localizações e em situações as mais diversas, como já visto anteriormente.

O estudo das moscas é um fato antigo, como pode ser visto na 14ª tabuleta da série de Hurra-Hubulla, que é uma lista sistemática dos animais terrestres selvagens do tempo de Hammurabi (por volta de 3.600 anos AC.) baseada por sua vez em uma lista suméria ainda mais antiga. Está escrita em caracteres cuneiformes e é o primeiro livro de zoologia conhecido. Entre os 396 animais citados, 111 são insetos e, deles, 10 são moscas. A “mosca verde” (Phaenicia) e a “mosca azul” (Calliphora), hoje em dia muito comuns em casos forenses, são aqui mencionadas pela primeira vez nessa “literatura” incipiente.

Nas civilizações antigas, as moscas aparecem em amuletos (Babilônia e Egito), como deuses (Baalzebub, O Senhor das Moscas), e é uma das pragas na historia bíblica do Êxodo. A metamorfose das moscas já era conhecida no antigo Egito, pois em um papiro encontrado no interior da boca de uma múmia havia a seguinte inscrição: “Os vermes não se transformarão em moscas dentro de ti” (Papiro de Gizeh nº 18026:4:14).

Page 264

No entanto, embora vários estudos sobre as atividades dos insetos sobre cadáveres humanos tivessem sido apresentados até 1878, quem primeiro passou a observar com profundidade que um mesmo cadáver, dependendo do estado em que se encontrava, podia estar colonizado por diferentes tipos de artrópodes foi o veterinário Pierre Mégnin, do Exercito francês.

Por sua formação militar, Mégnin denominou as diferentes colonizações sucessivas de legiões ou esquadras, comparando assim cada grupo de espécies, que chegava ao cadáver, a uma tropa do exército. Entretanto, há quem as chame de “ondas”, fazendo alusão ao constante ir e vir, fluxo e refluxo, das ondas do mar (das diferentes espécies).

A Sucessão Entomológica

Um fenômeno biológico importante que ocorre nos cadáveres são as sucessões de organismos que prosperam em diferentes partes. A sucessão pode, e deve, ser usada como base para se determinar a data da morte. Sobre o substrato uma rápida mudança ocorre pela presença de um cadáver em decomposição, verificando-se uma sucessão de insetos de diversas espécies.

Cada um desses sucessivos predadores deverá aguardar que seus antecessores ajam, de maneira a que deixem expostas partes, tecidos ou materiais que serão os utilizados para a sua alimentação. Muitos deles preferem uma fase bem definida da decomposição, e ainda é possível que a atividade de uma espécie prepare o substrato para aquela que vem depois ou que a sucede. Tal sucessão de espécies é a principal ferramenta na tarefa de se definir as datas. Além disso, os insetos mais importantes nesta disciplina têm desenvolvimento complexo e permitem avaliar, com muita precisão, a sua idade e, então, há quanto tempo eles estão no corpo.

Assim, por exemplo, os besouros que se alimentam de cartilagens e ligamentos terão que esperar até que os ossos e esses materiais estejam expostos. Na mesma esteira, besouros predadores ou parasitas que se alimentam, e.g., das larvas, terão de aguardar até que as moscas varejeiras cheguem e depositem seus ovos.

Page 265

O procedimento de se definir a data exige basicamente que se faça a identificação da espécie e que se tenha conhecimento dos tempos de desenvolvimento para o lugar onde se encontrou o cadáver.

As primeiras legiões de insetos chegam ao cadáver atraídas pelo cheiro dos gases desprendidos no processo da degradação dos aminoácidos, que por decarboxilação, desaminação, oxidação, redução e hidrólise acabam se transformando em produtos residuais do processo putrefativo, como o amoníaco, uréia, gás sulfídrico, escatol, indol etc.

Algumas das substâncias intermediárias formadas durante o processo de decomposição das proteínas são altamente fétidas, tornando-se responsáveis pelo cheiro característico dos corpos em putrefação.

Esses gases, mesmo em quantidades ínfimas, são detectados pelos insetos muito antes que o olfato humano seja capaz de notá-los, chegando-se mesmo a encontrar, em algumas ocasiões, oviposições em pessoas que ainda se encontram agonizando.

Saliente-se que, em contrapartida, a decomposição catalítica dos glucídios (açúcares ou hidratos de carbono) e dos lipídios (ácidos graxos) praticamente não exala odores nauseabundos.

Page 266

O uso de fases adultas de artrópodes para calcular o PMI máximo requer a existência de um padrão de amostragem básico, de como acontece a sucessão e quais são as espécies envolvidas. Esse padrão deveria ser estabelecido com base em experiências controladas, levadas a cabo no laboratório e no campo (Schoenly, 1996).

Os dados obtidos são úteis para referenciar o cálculo do PMI e interpolar a informação que se encontra no corpo e na cena do crime. Devem ser estabelecidos quais grupos de espécie estão presentes ou ausentes e compará-los com a linha de base estabelecida para a área (Schoenly, 1996).

Às vezes tal metodologia pode apresentar dificuldades, pois é necessário simular, em laboratório, as condições de campo da cena do crime. Porém, em algumas ocasiões, só se dispõe dessa informação.

Tal é o caso dos corpos esqueletizados, quando raramente se encontram larvas de moscas vivas. Nesses casos, normalmente são encontradas exúvias larvais de coleópteros, restos de seus excrementos e pupários de lepidópteros. O estado de conservação desses restos contribui, como dado importante, para a estimativa do PMI (Lord, 1997). O padrão de uma sucessão e a fauna envolvida variam com as condições regionais e às vezes também com o local. Por isso, devem ser realizadas experiências locais que permitam a sua estimativa correta.

As primeiras investigações que estabeleceram, de forma experimental, o ataque de insetos e as suas relações com os diferentes estágios da decomposição foram feitas por Bornemisza (1958) e Payne (1965), sendo este último quem usou, como modelo, o porco (Sus scrofa L.), que acabou por ser padronizado para a maioria dos casos de estudos de sucessão (Goff, 1993).

Na América do Sul, algumas investigações de campo foram realizadas sobre fauna cadavérica, mas com objetivos e metodologias diferentes. No Brasil, diversos estudos usando porcos domésticos foram efetuados em ambientes rurais (Souza & Linhares, 1997; Carvalho et al, 2000; Carvalho & Linhares, 2001). Em todos eles a mesma metodologia foi empregada, e tanto larvas como insetos adultos puderam ser coletados da carne putrefata dos mesmos. Nesses estudos pode ser encontrada uma lista exaustiva de insetos relacionados às sucessões cadavéricas no Apêndice 1. Também se registram, ao longo desse capítulo, as modificações que acontecem na fauna nas diferentes estações do ano.

Néstor Centeno, na Argentina, efetuou um trabalho de campo similar, estudando os processos de decomposição de corpos expostos em uma área rural (Centeno et al, 2002). Para tanto, adotou a metodologia sugerida por Hewadikaram & Goff (1991).

Page 267

Os resultados mostraram que a decomposição do corpo ocorre com uma estrutura semelhante à de um mosaico, onde diversas partes do corpo podem estar em estágios diferentes de putrefação, como já havia sido apontado, no hemisfério norte, por...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT