O Exame Necroscópico nos Casos de Morte Pós-tortura

AutorJorge Paulete Vanrell
Ocupação do AutorMedicina, Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciatura Plena em Pedagogia
Páginas417-430

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Definição

“A tortura é o sofrimento físico ou mental causado a alguém com emprego de violência ou grave ameaça, com o fim de obter informação, declaração ou confissão de vítima ou de terceira pessoa, outrossim, para provocar ação ou omissão de natureza criminosa ou então em razão de discriminação racial ou religiosa”, conforme define a Lei n° 9.455, de 7 de abril de 1997, que regulamenta o inciso XLIII do artigo da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

Já a Declaração de Tóquio, aprovada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, definia a tortura como sendo: “A imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer”.

A Convenção da Organização das Nações Unidas contra a Tortura, por sua vez, a define como “um ato pelo qual são infligidos, intencionalmente, a uma pessoa, dores ou sofrimentos graves, sejam eles físicos ou mentais, com o fim de obter informações ou uma confissão, de castigá-la por um ato cometido ou que se suspeita que tenha cometido, de intimidá-la ou coagi-la, ou por qualquer razão baseada em qualquer tipo de discriminação”.

Os procedimentos de tortura, na maioria das vezes, são pouco conhecidos ou até mesmo desconhecidos, já que sua divulgação se evita por parte dos que a praticam e até por parte dos que veem seus resultados. Isso, entretanto, não inclui os médicos-legistas, que, ratione officio, não só devem conhecer todas as modalidades de tortura como saber pesquisar seus efeitos imediatos e mediatos, e estar a par das sequelas que cada procedimento pode deixar, para poder, durante a vistoria pericial, buscá-las, quer no vivo, quer no morto.

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Os meios mais empregados na tortura, como maus-tratos – aplicados geralmente nos detentos e/ou interrogados –, soem ser:

• físicos (violência real e efetiva), • morais (intimidações, hostilidades, ameaças), • sexuais (cumplicidade com a violência sexual praticada pelos torturadores e/ou por outros detentos), e

• omissivos (negligência de higiene, alimentação e condições ambientais).

Recomendações em perícias de casos de tortura

França (2004) estabelece uma série de recomendações que, em todos os casos de perícias, no vivo ou no morto, com alegação ou presunção de tortura, deverão ser levadas em consideração e, consequentemente, proceder-se sempre da seguinte forma:

1) Valorizar de maneira incisiva o exame esquelético-tegumentar da vítima; 2) Descrever detalhadamente a sede e as características de cada lesão, qualquer que seja o seu tipo, e localizá-la precisamente na sua respectiva região;

3) Registrar em esquemas corporais todas as lesões eventualmente encontradas;

4) Detalhar, em todas as lesões, independentemente de seu vulto, a forma, idade, dimensões, localização e particularidades;

5) Fotografar todas as lesões e alterações encontradas no exame externo ou interno, dando ênfase àquelas que se mostram de origem violenta;

6) Radiografar todas regiões e segmentos agredidos ou suspeitos de ter sido alvo de violência;

7) Examinar a vítima de tortura sem a presença dos agentes do poder; 8) Trabalhar sempre em equipe; 9) Examinar à luz do dia (os exames não devem ter pressa para serem realizados);

10) Usar os meios subsidiários de diagnóstico disponíveis e indispensáveis, com destaque para o exame toxicológico;

11) Ter o consentimento livre e esclarecido do examinado (para vítimas vivas);

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12) Aceitar a recusa ou o limite do exame (para vítimas vivas); 13) Examinar com paciência e cortesia (para vítimas vivas); 14) Respeitar as confidências (para vítimas vivas); 15) Examinar com privacidade e em ambiente adequado (para vítimas vivas).

A maioria dessas recomendações, com as óbvias exceções, são aplicáveis também à perícia com o morto, quando os cuidados devem ser redobrados, a atenção aguçada e a isenção levada aos limites estabelecidos, ora pelas normas de procedimento mais duras, ora pela consciência humana e profissional dos examinadores.

A morte por tortura ou pós-tortura

Todas as mortes ocorridas em presídios, notadamente de indivíduos que faleceram sem assistência médica, no curso de um processo clínico de evolução atípica ou de morte súbita ou inesperada, devem ser consideradas a priori como “mortes suspeitas”. Com certeza essas mortes, especialmente quando súbitas, são as de maior complexidade na determinação da causa e do mecanismo da morte.

Quando da perícia em casos de morte súbita, em que se evidenciam lesões orgânicas significativas e incompatibilidade com a continuidade da vida, além da ausência de lesões ou alterações produzidas por ação externa, não há que duvidar de morte natural, mais bem chamada de “morte com antecedentes patológicos” ou de “morte orgânica natural”.

No entanto, se são diagnosticadas lesões orgânicas, mas essas alterações morfopatológicas não se mostram totalmente suficientes para explicar a morte, então com certeza estamos diante da situação mais complexa e difícil da perícia médico-legal, ainda mais quando não existe qualquer manifestação exógena que se possa atribuir como causa do óbito.

Excepcionalmente, pode ocorrer uma situação em que o indivíduo é vítima de morte súbita, não tem registro de antecedentes patológicos, nem lesões orgânicas evidentes na necrópsia, além de não apresentar manifestações de agressão violenta, registrada por aquilo que se denomina como “necrópsia branca”. Desde que se possa afastar, definitivamente, a causa violenta de

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morte, que se tenham tomado os cuidados necessários na pesquisa anatomopatológica e toxicológica, não há que fugir da morte por causa indeterminada. Ainda mais se existem os fatores não violentos de inibição sobre regiões reflexôgenas, predisposição constitucional e estados psíquicos inibidores.

No primeiro caso, quando da chamada “morte súbita lesionai”, em que o óbito é diagnosticado e explicado de forma segura pela presença de antecedentes patológicos, isso deve ficar confirmado de maneira clara, pois...

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